Criação de Uma Moeda Lastreada em Commodities II

por Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

Commodities e moedas compartilham características. É possível dizer que commodities são quase moedas e que moedas são quase commodities. De fato, para determinados grupos, as commodities tornam-se unidades de medida, o que é uma das características da moeda. Não é de espantar que produtores de soja transformem insumos e mão de obra em sacas de soja, pois é em torno da soja que seu mundo gira, assim a soja adquire um aspecto inerente às moedas, que é ser unidade de medida. A soja pode ser armazenada e o proprietário do silo cobra a perda técnica, que é a perda de propriedades do bem ao longo do tempo. Para o produtor de soja, a mercadoria adquire mais uma característica compartilhada com a moeda, a de reserva de valor. Como a soja é consumida no mundo todo, ela tem uma característica que a moeda não tem, a universalidade, enquanto a moeda, graças ao seu curso legal, pode não ser aceita como pagamento a não ser no país de origem. A moeda, por sua vez, é meio de troca, característica que não necessariamente a mercadoria assume, pois pode não ser interessante receber soja como pagamento.

Ocorre que o ouro é uma commodity, talvez, o estado da arte entre as commodities, haja vista que ela as tem todas, assumindo o curso livre. O ouro é volátil como todas as commodities, talvez não em função de safra como a soja, nem como do nível mundial de atividade econômica como o petróleo, porém, fortemente influenciado pelas condições políticas do momento. Mesmo assim, foi lastro por milênios sem discussão.

Graças à universalidade, o dólar assumiu todas as características das commodities sem as limitações físicas do ouro. Assim discutir se uma moeda pode ou não ser lastreada numa commodity chega a ser primário, visto que o próprio ouro é commodity, condição que o dólar assumiu por todos os motivos descritos na matéria anterior.

A grande dificuldade para desbancar a moeda estadunidense é justamente o fato de as demais moedas do mundo não serem commodities, como foi a libra esterlina antes do dólar.

Para que o comércio seja “polimonetário” sem que haja restrições de liquidez, será preciso que todos os países tenham reservas de todas as moedas do mundo. Para entender melhor isso, imaginemos que o Brasil pretendesse negociar com o Peru. Suponhamos agora que o Brasil só aceitasse reais e que o peru só negociasse com soles. O Brasil precisaria ter reservas em soles para importar do Peru, o que, por sua vez, teria de ter reservas em reais para comprar do Brasil. Imaginemos agora que o Brasil aceite compras a descoberto do Peru, ficando com créditos em soles; enquanto o Peru aceite operações de câmbio a descoberto com o Brasil, ficando com créditos em reais. Teremos dois problemas a resolver. O primeiro é a que taxa de câmbio essas operações ocorreria. O segundo problema qual seria o saldo limite para que a posição devesse ser liquidada. Traduzindo do economês, qual seria o saldo limite do cheque especial que o Brasil concedeu ao Peru, ou que o Peru concedeu ao Brasil. Esse valor tende a não ser equânime entre os dois negociadores. É que, se o Peru tiver um déficit recorrente com o Brasil, o sole perderá valor em relação ao real; assim como se o Brasil tiver déficits recorrentes nas transações com o Peru, quem perderá valor será o real. Isso só se resolve elegendo um terceiro objeto de reserva de valor que possua a universalidade que ambas moedas não têm. Foi justamente essa dificuldade que levou o mundo ao padrão ouro e, por conta de suas limitações físicas, além do poder das armas, fez com que o mundo aceitasse o dólar como substituto.

A ideia de mineração obrigatória em que se baseiam as criptomoedas traz de volta a limitação física que expulsou o ouro do papel como lastro. Tudo indica que as limitações seriam ainda maiores porque, como algoritmo impõe dificuldade crescente para encontrarem-se novos registros, o custo de mineração seria forçosamente crescente, ultrapassando o valor dos bitcoins recuperados, o que, em sendo a criptomoeda universalmente aceita, provocaria uma crise econômica sem precedentes na História.

Resumindo, enquanto não se conseguir uma moeda que adquira a universalidade que as commodities têm, a desdolarização continuará sendo um alvo para um futuro incerto. Os estadunidenses sabem disso e a geopolítica gira em torno do privilégio do dólar, como se verá na próxima matéria.

Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou o mestrado na PUC, pós graduou-se em Economia Internacional na International Afairs da Columbia University e é doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo. Depois de aposentado como professor universitário, atua como coordenador do NAPP Economia da Fundação Perseu Abramo, como colaborador em diversas publicações, além de manter-se como consultor em agronegócios. Foi reconhecido como ativista pelos direitos da pessoa com deficiência ao participar do GT de Direitos Humanos no governo de transição.

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Last Update: 29/04/2025