Efeitos Sistêmicos da Desvalorização do Dólar

por Fernando Nogueira da Costa

Quando o dólar se deprecia diante outras moedas nacionais, os habitantes de seus países se tornam mais ricos mesmo caso não exerçam o poder de compra internacional? Essa é uma pergunta exigente de análise sob diferentes níveis de decisões no sistema monetário internacional e decompor a resposta com cuidado, dentro de uma abordagem sistêmica da complexidade.

Quando o dólar se deprecia em relação a outras moedas nacionais, isso significa cada unidade de dólar comprar menos das moedas estrangeiras. Consequentemente, bens e serviços importados se tornam mais caros, para os norte-americanos, e para os habitantes dos demais países, seus bens ficam mais baratos em dólar, possível de estimular exportações.

Ao considerar os habitantes de países cujas moedas se valorizaram frente ao dólar, se eles não exercem o poder de compra internacional, ou seja, não compram em dólar ou fora de seu país, o efeito imediato não é um enriquecimento real. Afinal, os preços internos em sua moeda local seguem regidos por sua própria estrutura produtiva e de preços.

Mas há efeitos sistêmicos importantes, porque as importações se tornam mais baratas. Um real mais forte, por exemplo, torna importações em dólar mais acessíveis e isso pode reduzir preços internos de bens importados ou influenciados por commodities (combustíveis, eletrônicos etc.). Ocorre uma redução do custo de vida e assim aumenta o poder de compra interno real mesmo sem gasto externo.

Com menor pressão inflacionária, uma moeda mais valorizada tende a conter a inflação de custos importados. Isso melhorara renda real das famílias, mesmo caso seus salários nominais não mudem.

Acontece valorização patrimonial relativa. Se um indivíduo tem patrimônio em moeda local valorizada (ações, imóveis), sua conversão em dólar aumenta, ainda se ele nunca realizar essa conversão. Isso altera a posição relativa internacional de riqueza, especialmente em rankings globais de milionários.

Discute-se se há um “efeito riqueza” psicológico e político. Mesmo sem consumir internacionalmente, o fortalecimento da moeda nacional cria a sensação de enriquecimento relativo, especialmente entre as classes altas com acesso à informação financeira global.

Aumenta o prestígio internacional da moeda e da economia local e talvez influencie o comportamento de consumo e investimento internamente. Em sistemas periféricos, essa valorização reforça o consumo de bens simbólicos internacionais, mesmo ainda sendo eles produzidos localmente.

Esta é uma vantagem frágil e potencialmente instável. A valorização cambial prejudica exportadores, minara indústria e aumenta o desemprego a médio prazo.

Em países com alta dependência de commodities, essa valorização costuma ser temporária e reverter rapidamente. Portanto, o “enriquecimento” é relativo e conjuntural, não necessariamente sustentável.

A conclusão sistêmica é os habitantes de países cujas moedas se valorizam em relação ao dólar tenderem a ficar relativamente mais ricos — mesmo sem comprar internacionalmente —, devido ao aumento do poder de compra doméstico, à desinflação e à revalorização patrimonial. Porém, trata-se de um efeito sistêmico e dinâmico, quase sempre transitório e dependente de como essa valorização se encaixa na estrutura produtiva e nas vulnerabilidades externas do país.

Outra dimensão ocorre quando os proprietários estrangeiros de ações nos EUA perderem capital com a perda de valores de mercado e eles poderem compensar se o dólar estiver apreciado diante a sua moeda nacional. Se não for o caso, ao contrário, haverá uma retroalimentação com profecia autorrealizável com a venda de ações e o repatriamento de capital.

Essa questão toca o cerne das interações entre os mercados financeiros globais, o sistema monetário internacional e os mecanismos de retroalimentação (feedback loops). Eles tornam os sistemas complexos tão sensíveis e, por vezes, instáveis.

Vou desconstruir a questão por partes e, em seguida, reconstruir a lógica sistêmica proposta na troca compensatória: perda de capital em ações ou títulos de dívida pública norte-americanos versus valorização cambial do dólar.

Imagine um investidor estrangeiro, por exemplo, europeu, com ações nos EUA: suas ações caem 10% em valor em dólares, mas, ao mesmo tempo, o dólar se valoriza 10% frente ao euro. O resultado líquido será nenhuma perda (ou mesmo um pequeno ganho) quando o investidor converter os dólares de volta para sua moeda. Logo, em termos de moeda doméstica, a perda pode ser compensada (total ou parcialmente) pela valorização do dólar.

Contudo, isso depende de quando o investidor realiza a conversão – se mantém dólares, ainda incorre risco cambial – se a valorização do dólar é suficiente para cobrir a perda, além da confiança futura no dólar e na bolsa de valores americana.

Quando essa compensação não acontece (ou é incerta), se o dólar não se valoriza o suficiente, ou o investidor acredita em o dólar se desvalorizar no futuro, a perda em ações se soma a uma possível perda cambial futura. Isso cria um incentivo a vender ações imediatamente para preservar valor.

A venda gera pressão baixista adicional nos ativos financeiros. O capital é repatriado e implica na maior venda de dólares no mercado cambial.

A retroalimentação (feedback loop) refere-se à profecia autorrealizável como fosse o seguinte mecanismo: queda de preços de ações → vendas por estrangeiros → repatriação → pressão sobre o dólar (venda) → queda do dólar → mais vendas para evitar perda cambial.

Este ciclo retroalimenta a crise, e os agentes, ao tentarem se proteger, antecipam os efeitos e os intensificam. Isso é um exemplo típico de profecia autorrealizável. O sistema entra em estado de instabilidade dinâmica, onde pequenos choques se amplificam.

É possível ocorrer o efeito contrário: valorização do dólar como refúgio. Tradicionalmente, desde o pós-guerra, em contextos de pânico global, o dólar (ou os Treasuries) é visto como “porto seguro”. Mesmo com perdas em ações, os estrangeiros costumavam manter seus ativos em dólar, apostando em nova valorização da moeda americana.

Isso sustentava o dólar e, temporariamente, até o valor dos ativos em dólar. Provocava o chamado “flight to quality”: fuga para ativos líquidos, seguros e denominados em dólar ou títulos de dívida pública do Federal Reserve (Banco Central dos Estados Unidos).

A anterior hierarquia monetária internacional como estabilizadora ou amplificadora está sendo questionada pelas retaliações econômicas e/ou tarifárias do governo de extrema-direita norte-americano. Os EUA, por emitirem a moeda de reserva global, atraem capitais em momentos de crise, mesmo quando sua economia estava em turbulência;

Isso permitia os EUA financiem déficits com facilidade e mantinham a centralidade do dólar. Já países fora do centro, no chamado Sul Global, sofriam mais intensamente com os ciclos de repatriação e desvalorização cambial.

A segunda conclusão sistêmica é a valorização cambial do dólar ter o potencial de, transitoriamente, compensar as perdas de capital em ações para investidores estrangeiros. Mas, se essa compensação não for crível ou suficiente, inicia-se um processo de vendas em massa, repatriação de capital e desvalorização do dólar.

Ele se realimenta e amplifica. Configura uma dinâmica típica de profecia autorrealizável em sistemas financeiros complexos. Esse mecanismo é central para entender crises financeiras globais e os fluxos de capital entre centro e periferia.


Fernando Nogueira da Costa – Professor Titular do IE-UNICAMP. Baixe seus livros digitais em “Obras (Quase) Completas”: http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/ E-mail: [email protected]

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Last Update: 29/04/2025