Celso Furtado: “O mito do desenvolvimento econômico” e uma certa culpa religiosa na ciência brasileira
Cintia Neves Godoi, Sandro Luiz Bazzanella e Jairo Marchesan
O intelectual paraibano Celso Furtado (1920 – 2004) publicou, em 1970, o livro intitulado “O mito do desenvolvimento econômico”. Para o referido economista, de fato o desenvolvimento econômico era um mito na medida em que o avanço de países periféricos ao patamar de consumo dos países centrais seria trágico dado os limites ecológicos do desenvolvimento econômico.
O autor, formado em Direito, com doutorado em Economia, com uma trajetória de importantes cargos em governos no Brasil e em outros países, é uma referência central nas discussões acerca do desenvolvimento no Brasil.
No entanto, neste artigo, a ideia é problematizar se parte de seus argumentos não tem relação com um pensamento brasileiro (especialmente na ciência dedicada a discutir desenvolvimento, seja Economia, Geografia, Filosofia, História e em áreas interdisciplinares como Desenvolvimento Regional) que se vincula a um entendimento castrador das ambições sociais e políticas para o país.
Celso Furtado apresentará argumentos importantes que vão justificar o subdesenvolvimento não como uma etapa do processo de desenvolvimento ou não como condição a se alcançar o desenvolvimento, mas como condição de dependência de países periféricos que se relacionam com países ricos, considerados desenvolvidos do centro do mundo, que à época já se apresentavam divididos em países da Europa e Estados Unidos.
Para Celso Furtado, desenvolvimento poderia ser apreendido como
[…] um processo de mudança social pelo qual um número crescente de necessidades humanas – preexistentes ou criadas pela própria mudança – são satisfeitas através de uma diferenciação do sistema produtivo decorrente da introdução de inovações tecnológicas (FURTADO, 1964, p. 29).
Vejam, na citação acima do autor, o mesmo trata o desenvolvimento como um processo de mudança, mas, não explicita suficientemente como isso poderia ocorrer. Ou seja, não cita se seriam mudanças ou rupturas históricas das lógicas colonialistas ou metropolitanas de produção, distribuição e consumo ou se poderiam ser de ajustes ou de adaptabilidade ao modelo de produção.
Também o autor alega que:
A ideia de desenvolvimento, referindo-se a uma sociedade, comporta, sabidamente, toda uma gama de ambiguidades. De um ponto de vista descritivo, ela se refere ao conjunto de transformações nas estruturas sociais e nas formas de comportamento humano que acompanham a acumulação no sistema de produção. Descreve-se, assim, o processo cultural e histórico cuja dinâmica se apoia na inovação técnica (fundada na experiência empírica ou em conhecimentos científicos), posta a serviço de um sistema de dominação social (FURTADO, 2008, p. 83).
O modelo de desenvolvimento econômico brasileiro seguiu comandos ou ordens impositivas e seculares de países europeus, e, posteriormente, estadunidense. Este fenômeno também se manifestou nos demais países que conformam a América Latina, bem como países do continente africano submetidos a intensos processos de colonização, violenta escravização de povos e seus extensos territórios.
Celso Furtado vai apontar a necessidade de uma série de elementos para considerar o desenvolvimento como possível e chama a atenção para o fato de que nem todos os países se apresentam em condições de articular estratégias de desenvolvimento em suas trajetórias. Ainda, nesta direção, Furtado parece argumentar que o fenômeno do desenvolvimento é uma condição que assiste determinados países que se encontram na centralidade da dinâmica produtiva e econômica que se apresenta como hegemônica e, por este motivo países que periféricos a este modo de organização política, econômica e social dificilmente teriam acesso ao desenvolvimento se tentassem replicar o receituário dos países desenvolvidos.
De tal argumentação se se desdobra o argumento, de que os países classificados pelos desenvolvidos como subdesenvolvidos teriam que trilhar seus próprios projetos de desenvolvimento em vez de insistirem em vincularem-se aos imperativos e determinação dos países desenvolvidos. E, por isso mesmo chama a atenção para o fato de que o estudo do subdesenvolvimento
[…] não pode realizar-se isoladamente, como uma ‘fase’ do processo de desenvolvimento, fase essa que seria necessariamente superada sempre que atuassem conjuntamente certos fatores. Pelo fato mesmo de que são das economias desenvolvidas, isto é, das economias que provocaram e lideraram o processo de formação de um sistema econômico de base mundial, que os atuais países subdesenvolvidos não podem repetir a experiência dessas economias. É um confronto com o desenvolvimento que teremos que captar o que é específico ao subdesenvolvimento. Somente assim poderemos saber onde a experiência dos países desenvolvidos deixa de apresentar validez para os países cujo avanço pelos caminhos do desenvolvimento passa a depender de sua própria capacidade para criar-se uma história. (Furtado, 1968)
Além disso, o autor em questão apontava que suas questões centrais não estavam necessariamente nas categorias e conceitos de análise da organização social, mas em “problemas reais”, e na sua necessidade de “compreender melhor o mundo para agir sobre ele com mais eficácia”. Conforme abaixo:
Porque, no centro de minhas reflexões estavam problemas reais, a pesquisa econômica foi sempre para mim um meio de preparar a ação, minha ou de outros. Compreender melhor o mundo para agir sobre ele com mais eficácia. Isso significa que os fins últimos devem estar sempre presentes ao espírito (FURTADO, 1983, p. 36)
É preciso considerar que “problemas reais” são problemas históricos, situados num determinado tempo e num determinado espaço, resultante de relações de poder que se estabelecem entre os seres humanos, sob determinadas condições relacionais, sejam elas sociais, políticas, econômicas, culturais, produtivas, religiosas, entre outras variáveis que constituem a cotidianidade de um tecido social. Assim, seguindo a perspectiva de Hegel “o real somente é real se for racional, e o racional somente é racional se for real”. Ou dito de outra forma, a realidade se constitui como campo de análise possível, quando passamos a compreender as convenções, as estratégias e relações humanas que se estabelecem num determinado tempo e espaço ensejando uma cosmovisão.
No entanto, ao que tudo indica, quando escreve “O Mito do Desenvolvimento Econômico”, suas alegações acerca das pressões e limites do crescimento parecem indicar caminhos diferentes dos utilizados para pensar as possibilidades do desenvolvimento em países ricos. Não se trata de analisar as estruturas, instrumentos e dinâmicas que fizeram com que países ricos acendessem na produção e acumulação de riqueza, mas sim de dar enfoque aos problemas e perigos de uma sociedade que buscasse o crescimento econômico. O autor acima referenciado em seu livro argumenta que:
O custo, em termos de depredação do mundo físico, desse estilo de vida [dos países centrais] é de tal forma elevado que toda tentativa de generalizá-lo levaria inexoravelmente ao colapso de toda uma civilização, pondo em risco as possibilidades de sobrevivência da espécie humana. (FURTADO, 1974, p. xx)
Desta maneira, o autor apresenta críticas à busca pelo patamar de consumo dos países centrais, aos modelos de industrialização que se colocavam como dependentes, à centralidade das exportações, dentre outras questões que hoje, se analisarmos a trajetória da China, por exemplo, poderíamos considerar que não eram especificamente estes os problemas centrais da estrutura produtiva, mas sim a apropriação da geração da riqueza por grupos e elites que não revertiam esses esforços, bem como os bônus em investimentos, em grandes obras, em elementos vinculados ao valor de uso e não a valor de troca, da distribuição da terra, da renda, dentre outras questões. Por exemplo, o autor afirma que:
Cabe, portanto, afirmar que a ideia de desenvolvimento econômico é um simples mito. Graças a ela tem sido possível desviar as atenções da tarefa básica de identificação das necessidades fundamentais da coletividade e das possibilidades que abre ao homem o avanço da ciência, para concentrá-las em objetivos abstratos como são os investimentos, as exportações e o crescimento. (FURTADO, 1974, p. xx)
Mas, que sentido tem apenas conhecer ou de reconhecer as necessidades fundamentais da coletividade sem questionar a centralidade e o controle do modo de organização capitalista. Ou seja, de que adianta conhecer e reconhecer as estruturas sociais, políticas e econômicas brasileiras, concentrar a crítica às formas de produção e circulação sem ponderar, questionar ou propor sobre a impossibilidade de outro modo de funcionamento de um Estado dedicado ao funcionamento de um sistema de produção e reprodução do capital para concentração deste por elites?
Por isso mesmo, cabe destacar a necessidade de estudos mais aprofundados também para considerar se há aí uma forma de interpretar o Brasil que não via nas possibilidades da época elementos que poderiam sim ter sido apropriados de forma diferente pela elite política e produtiva do país. Ou se há uma apropriação indevida das ideias de Furtado. Ou ainda, mais importante se não houve, em Furtado, um esforço de criticar profundamente o capitalismo como sistema político, econômico de exploração e de violência que impedia que países periféricos de fato pudessem tomar para si o seu destino, e pudessem avançar na perspectiva da construção de um projeto autônomo e soberano de desenvolvimento. Além disso, e a partir daí, problematizar não sobre possíveis impactos dos limites do crescimento ao mundo caso países periféricos buscassem progresso, mas sim, problematizar sobre o combate ao modelo capitalista de organização política, econômica e social, estimulando, por exemplo, modelos de sociedade organizações sociais, políticas, econômicas e jurídicas amparados em perspectiva socialista, ou comunista.
Obviamente, considerando que sim, também fizeram e fazem uso das organizações produtivas territoriais por vezes impactantes, mas que, com projetos de desenvolvimento nacional, buscam minimizar impactos ambientais e sociais, e não negligenciar as desigualdades sociais, a produção de pobreza e miséria. Pois como é sabido, nada mais impactante ambiental e socialmente do que a existência e permanência da secular pobreza e da miséria, que submete contingentes de seres humanos à condição de vida precarizada, indigna de ser vivida.
Assim, parece castrador o pensamento de não considerar a desigualdade como inerente à lógica do sistema capitalista e, estimulada pelo modelo de sociedade de plena produção e consumo, como “problema real” na hora de falar sobre limites do crescimento e do consumo. Este tipo de pensamento parece se desdobrar em algo como: bem, não podemos “pesar” na saúde do planeta, melhor permanecermos não tão desenvolvidos. Ou mesmo, bem, vamos focar nossos esforços nas discussões acerca de como remediar, mitigar ou nos adaptar aos problemas ambientais e sociais do desenvolvimento, e não nos caminhos possíveis para avançar no processo de ruptura das estruturas e condições colonialistas estadunidenses e europeias que geraram e geram contínua exploração humana, ambiental, social, política, cultural, dentre outras para nossa sociedade… Enfim, este pensamento de analisar o processo e os limites do crescimento parecem ser amenos, suaves, confortáveis, e parecem ter encontrado terreno fértil na sociedade e academia brasileira, paradoxalmente permanecendo encerrado nos mesmos limites que identificou.
Portanto, será que cabe problematizar esta necessidade de cuidado? Não teríamos nós brasileiros o direito de acessarmos justiça social, direitos sociais, direitos humanos? Teríamos nós que abdicar do crescimento econômico para não impactar o planeta? Porque teríamos que ficar presos à querela do crescimento econômico imposto pelos países desenvolvidos, desconsiderando nossas singularidades sociais, políticas e econômicas que nos permitiriam avançar na constituição de um projeto de desenvolvimento nacional assentado em nossa diversidade e potencialidade?
Este tipo de pensamento nos parece perigoso. Por isso, parece que vale a pena pensar em nossa culpa religiosa, que tanto nos oprime, e que é tão presente em nosso cotidiano, sempre colocando algo assustadoramente incerto, impalpável, distante, quando buscamos deixar de sobreviver para viver com dignidade.
Referências:
FURTADO, Celso. Dialética do desenvolvimento. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1964.
FURTADO, Celso. Auto-retrato intelectual. In: OLIVEIRA, Francisco (coord.). Celso Furtado. São Paulo: Editora Ática, 1983, p. 32-37. Coleção Grandes Cientistas Sociais.
FURTADO, Celso. O mito do desenvolvimento econômico. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974.
FURTADO, Celso. Subdesenvolvimento e estagnação na América Latina. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
FURTADO, Celso. Criatividade e dependência na civilização industrial. São Paulo: Companhia das Letras, 2008
Cintia Neves Godoi, geógrafa, doutora em Geografia
Sandro Luiz Bazzanella, filósofo, Doutor em Ciências Humanas
Jairo Marchesan, geógrafo, Doutor em Geografia.
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