“O sonho de San Martin e Bolívar é uma profecia. É esse encontro de todo povo latino-americano, além da ideologia, um encontro com a soberania (…) A América Latina será vítima até que termine de se libertar de exploradores imperialistas.”
Papa Francisco
Ao longo da história do capitalismo, aquilo que aprendemos a nomear de América do Sul, desde os tempos de outrora ocupou a posição de fornecedora de recursos naturais e importadora de bens industriais. Nela se consolidou um padrão econômico periférico-exportador, marcado por uma industrialização tardia e conservadora, seguido por uma desindustrialização na era neoliberal, e uma produção de produtos primários como commodities agrícolas, minerais e hidrocarbonetos.
Hoje assistimos o nosso subcontinente, carinhosamente chamado de “nuestra América” em um futuro incerto. O sonho de integração sul-americana que parecia sair do papel na primeira década do século XXI, com os novos governos liderados por forças populares na prática está estagnado.
As iniciativas integracionistas, como foi o caso do Mercosul, da ALBA, e da UNASUL, entre outras, não se tornaram maduras. Entre os motivos podemos colocar a crise econômica de 2008, que ampliou a dificuldade de superação do modelo primário exportador, e o avanço da direita e extrema direita que utilizou recursos como Golpes de Estados em diversos países para a retirada de governos progressistas.
No cenário mundial marcado pela decadência do imperialismo de tríade e da hegemonia dos Estados Unidos como potência unipolar, pela ascensão da China que há 70 anos era uma das cinco Nações mais pobres do globo, e pela resposta do capital com a extrema direita e o fascismo como movimento político para manter a hegemonia Ocidental, precisamos observar as tensões, contradições e possibilidades que atravessamos a América do Sul.
Discutir o papel dos países sul-americanos no novo mundo que surge, é compreender nossa posição estrutural no sistema internacional de Estados e na divisão internacional do trabalho. Assim como entender que essa posição pode ser potencializada ou confrontada a partir de projetos políticos que possam ser implementados.
Aqui acreditamos que a atual crise do capitalismo global e do imperialismo dominante abre possibilidades históricas para projetos de desenvolvimentos regionais. É momento das forças de esquerda pensarem quais as opções de desenvolvimento para nosso país e nosso subcontinente. Assim como, observar de forma estratégica a importância da integração regional para o conseguirmos caminhar no Brasil para a soberania política e independência econômica.
Algumas considerações iniciais
As economias sul-americanas nunca superaram sua maldição inicial, e se mantém como pequenas unidades primário-exportadoras isoladas entre si. Com o acirramento político da
situação defensiva e crescimento da extrema direita na maioria dos países da região, e também com o aumento da desigualdade econômica internamente entre os países, a América do Sul se apresenta para o mundo sem unidade ou qualquer plano estratégico comum, capaz de organizar e orientar a inserção coletiva no novo mundo que está nascendo.
Para se ter uma ideia, na América do Norte, o comércio intrarregional é na casa dos 40% do seu comércio global, já na Ásia, de 58% e na Europa de 68%. Enquanto por aqui na América do Sul, chegamos apenas aos 18%. Ou seja, é inexistente uma cadeia global de valor e uma integração produtiva entre nossos países.
O nosso subcontinente sofre ainda com a pressão da dívida externa, e depende de financiamento estrangeiro, sendo vulnerável a flutuação global dos preços dos produtos que exportamos.
Por essas terras, os países que no século passado aproveitaram a crise do entre guerras e as modificações no sistema internacional para apostar no desenvolvimentismo via industrialização, não conseguiram superar o subdesenvolvimento. A “nova” inserção de suas economias nacionais no mercado mundial, seguiu se dando por meio de trocas desiguais.
Esses projetos nacionais de desenvolvimento, se caracterizaram por terem as frações burguesas que o conduziram ligadas ao capital primário exportador e pelo papel central do capital estrangeiro nesse processo. A industrialização tardia, foi conservadora, não enfrentou o capital estrangeiro e culminou em uma alta concentração de capital e hiper exploração da força de trabalho, gerando uma imensa massa marginal por fora dos processos produtivos.
Tempos de crise e possibilidades
A história é um laboratório, e ela mostrou que momentos como o que vivemos, onde ocorrem a possibilidade de transições de hegemonia, gera condições para revoltas, insurreições e projetos autônomos serem produzidos por nações oprimidas.
Vejamos rapidamente como a própria América Latina é uma prova disto. O processo de independência que varreu nosso subcontinente se deu no quadro da transição hegemônica de 1790-1820, diante da disputa entre Reino Unido e França pela liderança do mundo colonial que se formava e da crise do império espanhol. As elites que se formavam deste lado do Atlântico, souberam aproveitar a situação de decadência de suas metrópoles e as disputas entre as principais potências da época para a libertação e independência de seus países.
Pouco mais de um século depois, o imperialismo se apresentava como fase superior do capitalismo, e com a disputa interimperialista para ver qual potência assumiria a liderança diante do declínio britânico, entre 1912-1945, novas oportunidades são criadas pelos povos oprimidos e explorados do mundo todo. Na América Latina podemos colocar a Revolução Mexicana de 1910, a tentativa de projetos de desenvolvimento nacionais, em especial o
brasileiro, primeiro com Vargas e depois da Segunda Grande Guerra, principalmente com JK, onde houve um desenvolvimento associado/tutelado pelos EUA.
Agora, para aproveitarmos a janela que se abre, é preciso superar obstáculos políticos como a falta de uma estratégia regional. Sabemos que governos de extrema direita, como foi o de Jair Bolsonaro e como é o de Javier Milei, são completamente submissos ao imperialismo estadunidense e contrários a toda e qualquer tentativa de integração sul americana. Porém, mesmos os atuais governos progressistas carecem de elaboração política para enfrentar o destino que a colonização tenta impor ao nosso subcontinente. Esses governos não conseguem avançar em pautas comuns, ter uma ação conjunta ou enfrentar uma suposta “Vocação Agrária”, inclusive setores do próprio governo brasileiro apostam nessa ideia (vide a insistência no infame acordo Mercosul – União Europeia). Outros, como o de Boric no Chile, ocupam o papel de ser porta-voz sul-americano das leituras internacionais do Partido Democrata.
Nosso subcontinente se olha diante do tempo e tem a possibilidade repetir seu passado, aprofundando a condição dependente e seu subdesenvolvimento, ou podendo construir um novo futuro buscando a integração regional, a soberania e a justiça social.
Nas linhas que seguem desenvolvemos dentro de nossos limites, algumas ideias, contradições e possibilidades, pensando na transformação da utopia de Simón Bolívar em uma condição material para nosso tempo.
A nossa relação com a China: eppur si muove
Hoje, é impossível pensar a geopolítica sem pensar de forma estratégica na China. Isso significa ser necessário entender o desafio histórico deste país, e a especificidade de sua formação econômica social.
A discussão sobre o caráter da China e o que a sua ascensão implica para o sistema mundo, ganha cada vez mais importância.
O surgimento da China, um país do Sul Global, como potência mundial é algo inédito na história do imperialismo. Sua ascensão traz sinais da derrocada do mundo Ocidental emergido sob ferro, fogo e sangue da colonização. No cenário geopolítico, se antes víamos o anúncio da globalização neoliberal como o fim da história, e os EUA como potência unipolar responsável pela tutela global, hoje é diferente. O domínio hegemônico do imperialismo de tríade, organizado e liderado pelos EUA dando espaço para seus sócios menores, União Europeia e Japão, cai por terra.
Para nós, povos da periferia do sistema, a ascensão de um cenário multipolar e a perda da influência do imperialismo estadunidense é algo positivo.
O papel da China na América do Sul é um marco diferencial em comparação ao século XX, onde nossos países viveram sob domínio e controle de Washington.
O gigante asiático virou um ator central em nosso subcontinente. Nas três primeiras décadas deste novo século o fluxo comercial entre países sul-americanos e a China
cresceu de US$15 bilhões em 2001, para cerca de US$500 bilhões em 2022. A participação chinesa nas importações de países sul-americanos cresceu mais de 700%. Números assombrosos. É a América do Sul, depois da Ásia, o segundo maior destino de investimento chinês.
Hoje, as relações comerciais entre China e América do Sul, já superou a relação do nosso subcontinente com os EUA. A China é a maior parceira comercial do Brasil, do Chile e do Peru e está entre os três maiores parceiros comerciais de todos os países da região. Além disso, oito países sul-americanos (20 em toda América Latina) já fazem parte da iniciativa Nova Rota da Seda: Argentina, Peru, Bolívia, Chile, Guiana, Suriname, Uruguai e Venezuela. A atuação chinesa no desenvolvimento econômico no continente é um fato.
Podemos afirmar, que vem da China o principal centro cíclico da economia sul-americana. Se durante séculos os olhos de nossa economia estavam voltados para o Atlântico, hoje isso mudou. Os olhares se desviam ao Leste e Sudeste Asiático, em uma virada na direção do Pacífico.
Assistimos uma ampliação do comércio entre a América do Sul e a Ásia-Pacífico, com diversos mega-projetos na área de infraestrutura desempenhando um papel cada vez mais importante. Um exemplo disto é o porto de Chancay, no Peru. Por meio de investimentos chineses são construídos portos, estradas, ferrovias e gasodutos.
Vale aqui colocar que diferente da política EUA, que tutelou e dominou a América do Sul ao longo do século XX, que atuava com a imposição forçada, força militar e total subordinação dos governos para sua regra. A China atua diferente, sem o linguajar típico do imperialismo, e sem uso da força, o país asiático atua por meio de captar as necessidades locais e oferecer negócios a partir disto.
Aqui não falamos e não acreditamos que a China seria o farol da libertação dos povos e Nações da América do Sul do lugar que ocupamos na divisão internacional do trabalho. Mas colocamos três coisas.
A primeira é que as condições de negociação da China e dos países imperialistas são totalmente diferentes. Não existe imperialismo sem colonialismo, e não existe colonialismo sem o uso da força e domínio militar sob um povo e território. Algo até hoje inexistente nas relações econômicas estabelecidas por Pequim com outros países.
A segunda é que a relação China e América do Sul, no cenário de crise da hegemonia Ocidental no sistema mundo, abre possibilidade para emergir projetos nacionais de integração regional. Os novos mecanismos e alianças internacionais como o BRICS e seu banco, a nova rota da seda, podem gerar diversificação de investimentos na região e inclusive transferência tecnológica.
Terceiro, a relação com a China não deixa de ser contraditória. Os acordos do país com nossa região podem gerar dependência econômica e o reforço do papel primário exportador de nossas economias. Essa contradição se resolve por meio da política e elaboração de um projeto regional estratégico.
Infelizmente o cenário que se aponta pela crescente desindustrialização, falta de integração e disputas internas nos países da região, é a oferta de capital chinesa avançar em detrimento do capital estadunidense e também do brasileiro, que teve papel relevante na área de infraestrutura na primeira década do século. Assim como, uma maior integração com a China no papel subalterno, pode intensificar o perfil primário de exportações e abandono do comércio intra-regional. Coisas que precisamos ficar atentos.
A China não tem um padrão de desenvolvimento imperialista. Mas como dissemos, não será ela que libertará nosso território.
Acreditamos que os povos fazem sua história e são eles os autores de sua libertação. Porém nessa caminhada para sua liberdade e achar os meios de seu desenvolvimento, os povos e as Nações oprimidas podem encontrar melhores terrenos e parceiros para esta luta. Acreditamos que é isso que a China significa para a nossa região: um parceiro em potencial para uma tarefa histórica. Em outras palavras, é uma possibilidade. Portanto, a contradição que apontamos de nossa relação com a China é algo que existe e que a sua superação é um desafio que interessa acima de tudo a nós mesmos.
O grande x da questão, é que na medida que a dinâmica de desenvolvimento das forças produtivas se deslocam cada vez mais para o Pacífico, Leste e Sudeste Asiático, tendo a China como principal dinamizador dessa tendência, a relação chinesa com a América do Sul se torna cada vez mais importante, assumindo contornos estratégicos. Dito isso, como podemos usar essa nova realidade a nosso favor?
Decifrar, ou ser devorado.
Uma estratégia de desenvolvimento para a América do Sul, deve partir primeiro do questionamento do lugar e papel que ocupamos nos últimos séculos. Buscando criar condições para romper com o destino que nos foi condenado.
Aqui apontamos o duplo caráter da atuação chinesa na América do Sul. Onde por um lado se tem a possibilidade de elevar relações estratégicas entre economias de países sul-americanos e a China, sendo ela um parceiro para a superação da condição dependente das nossas economias. Por outro, se pode aprofundar um perfil primário exportador, junto da desindustrialização.
Os países da América do Sul nesse tempo histórico se vêem diante da pergunta desenvolver sua dependência ou construir sua soberania e um desenvolvimento autônomo concretizando a oportunidade histórica que esse período de transição abre.
A relação com a China e com o novo mundo que surge dependerá do projeto que definirmos internamente nos nossos próprios países. Estamos lidando com o fato de não termos projetos próprios de desenvolvimento e soberania nem de integração regional a médio e longo prazo. Estamos colhendo os frutos da crise estratégica da esquerda, das derrotas na luta de classes e da situação defensiva que muitos de nossos países se encontram.
Diante desse enigma, em nosso país a tarefa é construir um modelo de desenvolvimento que integre a Nação com o resto do continente. Que responda a demanda chinesa por matéria prima mas permite a diversificação de nossa matriz produtiva e o crescimento do comércio intrarregional. Que coloque o Estado como polo dinâmico de acumulação e rompa com a lógica do grande capital como ator central do desenvolvimento. É construir um bloco hegemônico com enraizamento social. Na luta pelo desenvolvimento e integração sul-americana, a principal tarefa é vencer as forças de extrema-direita e também o neoliberalismo que nos querem na eterna posição de fazenda do mundo.
Entre trilhas estreitas, achar o caminho
Nessa atual quadra histórica, onde podemos ver uma quebra na hegemonia mundial, o papel que os Estados sul-americanos desempenharam pode ser colocado em três cenários e caminhos.
O primeiro seria atrelar nossa sorte ao destino da potência imperialista que tutelou e dominou essas terras ao longo do século XX. Em outras palavras, aceitar nossa condição subordinada e periférica, se submetendo economicamente, politicamente e militarmente aos desejos dos EUA.
Vale aqui um parêntese em destaque. Os Estados Unidos ainda são a principal potência mundial. Apesar de sua decadência e da derrota na guerra da Ucrânia. É Washington que dá as cartas e nesse momento tenta refazer o desenho e distribuição de capital ao redor do mundo por meio do tarifaço.
O resultado da política da maior potência imperialista é incerto. Os EUA não entregarão seu posto de potência unipolar de forma tranquila. Nesse momento Trump tenta um rearranjo com um novo mapa geopolítico e econômico do mundo, que redesenha a correlação de forças, com perda de influência da Europa, tentativa de deslocar a Rússia, colocando as zonas do Ártico e Pacifico como espaços de disputa. Pode-se até assumir a existência de um mundo multipolar, mas seu objetivo é reafirmar a predominância estadunidense, tal qual foi feito nos anos 80, onde “se mudou a regra do jogo, mas o dono e o vencedor da partida continuou o mesmo”. Nesse momento, impedir a integração de nosso subcontinente e nossa relação estratégica com a China é de fundamental importância para os planos imperialistas.
Voltando ao assunto do texto, a segunda conjectura seria mudarmos de igreja, mas continuarmos nos mesmos pecados. Uma aliança individual na base de acordos unicamente bilaterais de cada Estado com Pequim, não feitos a partir de planos de longo prazo, mas apenas na base de possibilidades de mercado. O que pode gerar um crescimento conjuntural de alguns por cento no PIB, mas não mudaria nossa condição de países dependentes.
O último cenário que visualizamos seria nossos países aproveitarem a crise e transformações que passa o sistema mundo para construir projetos soberanos, de justiça social, independência política e de integração regional, realizando mudanças estruturais na região.
Diversas iniciativas poderiam ser elaboradas neste momento. Destacamos duas:
A necessidade da desvinculação do dólar nas transações feitas entre os países sul-americanos. Ferramentas como o Banco da Alba, Novo Banco de Desenvolvimento do BRICS, podem ser alternativas para alcançarmos a soberania monetária. Algo imprescindível para enfrentar a dependência financeira, volatilidade econômica e inflação interna fruto da financeirização e do papel do dólar no cenário internacional.
A necessidade de construção de uma relação comercial e integração econômica produtiva entre os diferentes países. Assim como uma infraestrutura pública intra regional que auxilie o desenvolvimento do comércio. É possível avançarmos para a complementaridade da produção, onde teríamos um aumento de produção e redução dos custos de operação. Essa iniciativa poderia ser utilizada em diversas áreas, como na geração de energia, serviços, e na luta para se alcançar a soberania alimentar.
A superação de problemas históricos que a América do Sul carrega não se dará da noite pro dia, ou em uma iniciativa de dois ou quatro anos de algum governo da região. É um processo de médio e longo prazo que ao olhar universal está se abrindo em nosso tempo presente. Cabe a América do Sul decidir se vai aproveitá-lo e como irá fazer.
Se os colonizadores do Norte, e seus aliados que habitam nossos países afirmam que nosso destino é o nosso passado, produzir e trabalhar para enriquecê-los. Nós dizemos que não. Afirmamos como disse o Álvaro Garcia Linera, que nosso destino é lutar. Lutar, vencer, cair, levantar e lutar novamente, até que acabe a vida. Acreditamos que somente os povos sul-americanos poderão escrever sua própria história, e que o caminho se faz e se encontra caminhando.