A estratégia econômica do segundo governo Trump
por Fernando Marcelino
A decisão do presidente Donald Trump de iniciar uma guerra comercial e impor tarifas que impactam a economia global provocou diversas acusações de “políticas econômicas irracionais”, que seria resultado de um autocrata imprudente que impunha tarifas por pura ignorância, loucura ou simples reflexo de estupidez. Isso, naturalmente, representa uma narrativa superficial.
As estratégias do governo Trump estão sintetizadas em alguns documentos, como o Projeto 2025. Nele estão diversas pistas sobre a direção futura da política, indicando que diversos esforços para combater o chamado “deep state” ainda precisam ser feitos. Além do desmantelamento da USAID, do Departamento de Educação e de várias outras agências, o Projeto 2025 sugere que cortes profundos também podem ocorrer no Departamento de Segurança Interna, entre outras organizações. No documento, existe um ensaio sobre “comércio justo”, de Peter Navarro, conhecido pelas posições anti-China que foi indicado como conselheiro sênior para Comércio e Manufatura de Trump. Ele aconselha o presidente desde antes da eleição presidencial de 2016, quando o candidato Trump prometeu reprimir práticas comerciais desleais que, segundo ele, destruíram empregos americanos e deixaram cidades americanas, antes poderosas, apenas uma sombra do que eram no passado. No relatório, Navarro sugere que os objetivos da política dos EUA poderiam se estender à reforma ou mesmo à abolição dos princípios comerciais que sustentam o sistema de comércio global. Ele insta Trump a mirar “aqueles países que têm déficits comerciais relativamente grandes com os EUA e aplicam tarifas relativamente altas”, sendo eles China, Índia, União Europeia, Vietnã, Tailândia, Taiwan, Japão e Malásia. Estes países deveriam ser alvos de grandes impostos. Navarro enfatizou a importância de focar na China e alcançar a grandeza americana, e criticou duramente a Organização Mundial do Comércio: “os EUA são explorados diariamente no mercado global, tanto por uma China comunista predatória quanto por uma OMC institucionalmente injusta e não recíproca. Enfrentar esses dois desafios contribuiria significativamente para restaurar a grandeza americana, tanto econômica quanto militarmente”, escreveu Navarro.
Em artigo chamado “A política econômica do governo Trump” (Valor Econômico, 4 de abril), Armando Castelar Pinheiro aponta que, em recentes podcasts, os ministros Scott Bessent, secretário do Tesouro, e Howard Lutnick, secretário de Comércio, organizam as linhas gerais pelas quais enxergam a política econômica de Trump se desenvolvendo nos próximos anos. Essa se sustenta, essencialmente, sobre quatro pilares. Primeiro, sai de cena a prioridade no consumidor e entra aquela no trabalhador americano. Assim, a meta é implantar um amplo programa de substituição de importações de produtos industriais, semelhante ao que os países latino-americanos adotaram no pós-Segunda Guerra. Com isso se encarecem as importações. A expectativa é que os exportadores de hoje invistam e passem a produzir esses bens nos EUA, gerando empregos para a classe média. O resultado final será, como a experiência ensina, produtos mais caros, mas os empregos estarão lá. Em que número, em um mundo em que os robôs e a inteligência artificial ganham espaço, é outra questão. Provavelmente, serão relativamente poucos. De qualquer jeito, como expressou Bessent, a visão agora é de que “o sonho americano não se baseia em produtos baratos”. E para compensar o custo mais alto dos bens e atrair novas plantas industriais, se pretende reduzir os impostos. A ideia é renovar a legislação, aprovada no primeiro governo Trump, que reduziu tributos, e isentar de imposto de renda quem ganha até US$ 150.000 por ano (85% da população). Energia barata, para empresas e consumidores, é outro objetivo citado de forma recorrente. Essas propostas levariam a uma economia liberal domesticamente, mas protecionista no comércio exterior.
Porém, a visão mais consistente é elaborada por Stephen Miran. Ele é autor de um documento de 41 páginas escrito em novembro, após a vitória de Trump, e acessível online, intitulado Um Guia do Usuário para Reestruturar o Sistema Global de Comércio. Ele é agora o presidente do Conselho de Assessores Econômicos da Casa Branca, uma espécie de think tank do poder executivo dos EUA. A trajetória de Miran até a Casa Branca começou muito antes de seu serviço público. Após se formar na Universidade de Boston com foco triplo em economia, filosofia e matemática em 2005, fez doutorado na Universidade Harvard, onde estudou com o economista Martin Feldstein que trabalhou mandato do presidente Reagan. Antes de ingressar no governo, Miran foi estrategista sênior na Hudson Bay Capital, uma empresa de gestão de investimentos, e posteriormente cofundou a Amberwave Partners, uma empresa de gestão de ativos. Ele também atuou brevemente no Tesouro dos EUA como consultor de política econômica para o Secretário Steven Mnuchin, em 2020-2021.
Longe de ser um nome conhecido, Miran está rapidamente se tornando uma figura-chave na reformulação da postura econômica dos EUA no cenário mundial, especialmente no que diz respeito ao comércio. Em grande medida, as tarifas de Trump foram uma implementação política direta das ideias de Miran — concebidas para servir como uma ferramenta de dupla função: pressionar rivais comerciais e, ao mesmo tempo, revitalizar a receita interna. Mais importante ainda, visam obrigar grandes corporações a realocar suas operações e investimentos de volta para solo americano.
O ponto de partida de Miran desafia premissas fundamentais sobre a posição econômica dos EUA. Ele argumenta que, embora o status de moeda de reserva do dólar confira aos Estados Unidos um enorme poder geopolítico (como a capacidade de congelar ativos ou excluir países do SWIFT), ele traz desvantagens significativas: 1) Moeda supervalorizada: demanda global excessiva por dólares torna exportações dos EUA menos competitivas; 2) Declínio da indústria: esta sobrevalorização da moeda “esvaziou” a indústria norte-americana; 3) Aumento do déficit comercial: o dólar sobrevalorizado contribui para um déficit persistente e crescente na balança de transações correntes. Essa perspectiva representa uma grande mudança. A maioria dos economistas há muito considera o papel global do dólar vantajoso, permitindo que os Estados Unidos tomem empréstimos baratos e gastem além de suas possibilidades. Miran inverte essa situação, sugerindo que esse “privilégio” na verdade minou a base industrial e a segurança nacional dos Estados Unidos. Embora esse status conceda aos Estados Unidos o privilégio de fornecer liquidez global por meio de déficits comerciais, também inflaciona o valor do dólar. O resultado: diminuição da competitividade das exportações americanas, enfraquecimento dos setores industriais e crescentes vazios socioeconômicos no coração industrial dos Estados Unidos.
Para Marin, Trump deve proteger a produção nacional e manter o papel global do dólar. Portanto, a política monetária precisa atingir ambos os objetivos. Para que o dólar sirva aos mercados globais, os EUA precisam continuar a apresentar déficits comerciais. No entanto, esse mesmo mecanismo corrói sua base industrial, inflaciona a dívida e enfraquece o crescimento orgânico. O que antes era considerado um “privilégio” da liderança econômica global, argumenta Miran, tornou-se um fardo insustentável. Ele compara isso a uma forma tipicamente americana de “doença holandesa”, em que a demanda avassaladora pelo dólar reflete o impacto negativo de ganhos inesperados repentinos em recursos — como o petróleo em outras economias — que inflacionam artificialmente o valor da moeda e dizimam as exportações industriais. Nos EUA, essa dinâmica levou a um modelo centrado na exportação de ativos financeiros e na importação de bens, enriquecendo Wall Street e esvaziando cidades industriais como Detroit.
Para explicar esse paradoxo, Miran recorre ao “Dilema de Triffin” — um conceito econômico de longa data que destaca a contradição entre manter uma moeda global e garantir a estabilidade econômica interna. Se tata de uma proposição feita pelo economista belga Robert Triffin no início da década de 1960, que argumentou que a crescente demanda por dólares como ativo de reserva só poderia ser suprida pelos persistentes déficits em conta corrente dos EUA. Isso, por sua vez, significava que o dólar estava persistentemente supervalorizado em relação às exigências de equilíbrio na balança de pagamentos. Com o tempo, argumentou ele, esse fraco desempenho comercial minaria a confiança no preço fixo do ouro em dólar. E, de fato, isso se provou. Em agosto de 1971, em resposta à desvalorização do dólar, o presidente Richard Nixon suspendeu a conversibilidade do ouro. Após duras negociações, chegou-se a um acordo sobre novas paridades do dólar em relação a outras moedas importantes. Essas paridades não duraram e o antigo sistema de Bretton Woods, com taxas de câmbio fixas, porém ajustáveis, foi substituído pelas atuais taxas de câmbio flutuantes.
A teoria de Miran pode ser resumida da seguinte forma. O dólar está supervalorizado, o que prejudica as exportações dos EUA. Mas, como o dólar é a moeda de reserva mundial, e os títulos do Tesouro — conhecidos como T-bills — são o instrumento financeiro dominante na Terra (ter T-bills é praticamente como ter dinheiro), é quase impossível que o dólar caia. Por isso, Miran aponta que “podemos estar à beira de uma mudança geracional nos sistemas financeiros e de comércio internacional”. Para ele, “a raiz dos desequilíbrios econômicos reside na persistente supervalorização do dólar, que impede o equilíbrio do comércio internacional, e essa supervalorização é impulsionada pela demanda inelástica por ativos de reserva”. No cerne da estratégia econômica de Miran está uma reformulação radical de como as tarifas podem servir aos interesses dos EUA não apenas como ferramentas de geração de receita, mas também como instrumentos de alavancagem estratégica.
Miran acredita que o dólar está supervalorizado. Então, para desvalorizá-lo, ele propõe o seguinte. Primeiro, as tarifas. Então, forçar os países do G-7 a concordarem em valorizar suas moedas em relação ao dólar. É o que ele chama de Acordos de Mar-a-Lago, uma referência aos Acordos do Plaza, uma referência ao hotel de Nova York onde Ronald Reagan conseguiu exatamente isso em 1985, embora naquela ocasião o dólar tenha caído muito e dois anos depois os Acordos do Louvre, outro hotel, desta vez em Paris, tiveram que ser parcialmente revertidos. O problema é que, se o dólar se desvalorizar, os mais de trinta trilhões de euros em letras do Tesouro perdem valor em relação a outras moedas. Isso poderia levar a uma crise financeira global e, no processo, forçar os Estados Unidos a reverter todo o processo. Então qual é a solução de Miran? Muito simples: que os Estados e bancos centrais do resto do mundo troquem seus atuais títulos do Tesouro dos EUA por novos. Esses novos títulos não seriam de no máximo 30 anos, mas sim cem ou perpétuos. Para Marin, também haveria outra opção: o título não pagaria juros. Seria literalmente um presente para os Estados Unidos. Em troca de quê? Miran não é tímido: em troca de acesso ao mercado americano e, também, proteção militar.
Sua abordagem às tarifas não visa apenas gerar receita — é um esforço estratégico para reavivar a capacidade industrial dos Estados Unidos, que tem se deteriorado constantemente diante da ascensão de potências econômicas como a China. As ambições de Miran não se limitam a tarifas ou acordos comerciais de curto prazo. Sua visão se estende a uma reengenharia completa das relações econômicas dos Estados Unidos — exigindo que os parceiros comerciais reavaliem suas moedas, aumentem os investimentos industriais nos EUA e, em alguns casos, apoiem a saúde fiscal americana comprando títulos do Tesouro com rendimento zero. Ele considera esses mecanismos essenciais para restaurar o equilíbrio econômico e garantir a prosperidade nacional a longo prazo.
O discurso que Miran proferiu em 7 de abril, na qualidade de presidente do Conselho de Consultores Econômicos dos EUA, ecoou muitos dos pontos que ele levantou em seu relatório de novembro de 2024. Em seu discurso, Miran se referiu repetidamente a Pequim como “nosso maior adversário”. Ele deixou claro que os Estados Unidos buscam a dissociação econômica e gostariam de criar novas cadeias de suprimentos que excluíssem a China. Assume que Washington está usando tarifas como alavanca para tentar forçar os países a pagar aos Estados Unidos para ajudá-los a manter seu império global. Ele argumentou ainda que essas tarifas não visam punir, mas sim combater comportamentos comerciais desleais, como dumping, subsídios estrangeiros e manipulação cambial, que prejudicam trabalhadores e empresas americanas. Se as receitas tarifárias puderem ser redirecionadas para a redução de impostos internos, afirma Miran, o resultado será um impulso competitivo para as indústrias americanas.
Para Miran, “a maioria dos economistas e alguns investidores” que “descartam as tarifas como contraproducentes, na melhor das hipóteses, e devastadoramente prejudiciais, na pior. Eles estão errados. Uma das razões pelas quais o consenso econômico sobre tarifas é tão equivocado é que quase todos os modelos que os economistas usam para estudar o comércio internacional pressupõem a ausência total de déficits comerciais ou pressupõem que os déficits são de curta duração e se autocorrigem rapidamente por meio de ajustes cambiais”. Miran diz que, de acordo com os modelos padrão, os déficits comerciais causarão o enfraquecimento do dólar, o que reduzirá as importações e impulsionará as exportações, eventualmente eliminando o déficit comercial. Se isso acontecer, as tarifas podem ser desnecessárias, pois o comércio se equilibrará ao longo do tempo e, nessa visão, intervir com tarifas só pode piorar a situação. Na estrutura de Miran, as tarifas não servem apenas para proteger as indústrias nacionais; elas desempenham diversas funções estratégicas. As tarifas poderiam ajudar a gerar os quase US$ 5 trilhões necessários para estender esses cortes sem aumentar o déficit. A proposta para a China é particularmente agressiva: um aumento mensal perpétuo nas tarifas até que as demandas dos EUA sejam atendidas. Essa tática de pressão crescente seria acompanhada de esforços para convencer outras nações a aderir ao regime tarifário contra a China.
Miran afirmou que os Estados Unidos fornecem dois principais “bens públicos globais”: um, um “guarda-chuva de segurança” supervisionado pelos militares dos EUA; e dois, o dólar e os títulos do Tesouro, que são usados como o principal ativo de reserva no sistema financeiro internacional. “Ambas são custosas para nós”, reclamou. Miran insistiu que “é necessário melhorar a divisão de encargos em nível global”, acrescentando que “se outras nações quiserem se beneficiar do guarda-chuva geopolítico e financeiro dos EUA, então elas precisam fazer a sua parte e pagar a sua parte justa”. Em suma, os países estrangeiros devem ajudar a “arcar com os custos” da administração do império americano. Em suas palavras: “O presidente Trump deixou claro que não tolerará mais que outras nações se aproveitem do nosso sangue, suor e lágrimas, seja na segurança nacional ou no comércio. Para continuar a fornecer esses dois bens públicos globais, é necessário melhorar a repartição dos encargos a nível global. Se outras nações quiserem beneficiar-se do guarda-chuva geopolítico e financeiro dos EUA, precisam de contribuir e pagar a sua quota-parte. Os custos não podem ser suportados apenas pelos americanos comuns, que já doaram tanto”.
Para Miran, um dólar mais fraco restaurará a grandeza industrial dos Estados Unidos. Um influxo de investimento estrangeiro turbinará a economia americana. O financiamento sem juros ajudará a domar a dívida nacional e a distribuir a responsabilidade pelo financiamento da segurança global. Em sua narrativa, a enxurrada de novas barreiras comerciais de Trump não visa alcançar uma concessão estratégica específica ou benefício econômico de curto prazo. O objetivo é, em vez disso, forçar outros países a se sentarem à mesa para um grande acordo. Pode haver alguns solavancos ao longo do caminho, à medida que consumidores e empresas lutam para se ajustar às novas restrições; o tumulto resultante pode até desencadear uma recessão global. Mas isso é intencional. Quanto mais Trump puder se retratar como um louco disposto a afundar a economia mundial, mais temerosos e desesperados outros países ficarão por qualquer tipo de alívio. Assim que os líderes estrangeiros estiverem praticamente implorando pelo fim da loucura induzida por tarifas, Trump os convocará para seu complexo na Flórida, onde apresentará uma série de exigências. Primeiro, os parceiros comerciais dos Estados Unidos devem se engajar em um esforço coordenado para elevar o valor de suas próprias moedas em relação ao dólar, uma medida destinada a tornar os produtos americanos mais baratos para vender no exterior. Países que têm grandes superávits comerciais com os Estados Unidos, como Alemanha e China, também podem ser obrigados a fazer grandes investimentos para construir fábricas no coração dos Estados Unidos. Bancos centrais estrangeiros concordarão em trocar seus atuais títulos da dívida americana por “títulos do século” que não pagam juros por 100 anos, na prática fornecendo financiamento gratuito aos Estados Unidos.
A lógica é que Washington ameaça impor tarifas elevadas aos países, a menos que eles concordem em fazer concessões significativas que beneficiem a economia americana em detrimento da sua própria, como parte de um hipotético “Acordo de Mar-a-Lago”. Em sua visão, linhas claramente traçadas entre os aliados e os adversários dos Estados Unidos inaugurarão a estabilidade global. “Tal arquitetura marcaria uma mudança nos mercados globais tão grande quanto Bretton Woods ou seu fim”, escreve Miran, referindo-se ao acordo de 1944 que deu origem ao regime comercial moderno e à decisão de 1971 de retirar o mundo do padrão-ouro. Para Marin, o Acordo de Mar-a-Lago entrará para os anais da história como o acordo do século.
Os limites da economia política de Marin
Para Miran, o governo Trump não está tentando desmantelar o império americano; pelo contrário, quer fortalece-lo. “Nosso domínio militar e financeiro não pode ser considerado garantido, e o governo Trump está determinado a preservá-los”, disse ele. Quando Miran propôs que os países “simplesmente assinassem cheques para o Tesouro”, ele se refere à ideia de que governos estrangeiros deveriam comprar títulos do Tesouro americano de prazo muito longo, como títulos de 100 anos, com baixos rendimentos. Estes se desvalorizariam com o tempo, com a inflação, subsidiando Washington. O plano de Miran é uma forma direta de impor uma dominação da economia mundial na qual o resto do mundo paga aos Estados Unidos em troca de poder vender-lhe coisas e ter seu guarda-chuva defensivo. Um plano tão arriscado quanto ousado. E algo que Wall Street e a City de Londres elevaram ao status de um texto sagrado que orienta o que Trump quer fazer.
Na mente de Miran, a manipulação cambial de governos estrangeiros é em grande parte responsável pelo declínio da indústria americana. A “supervalorização” do dólar americano é a razão do grande déficit comercial dos Estados Unidos. Essa supervalorização torna as exportações dos EUA menos competitivas, as importações dos EUA mais baratas e prejudica a indústria americana”. É uma visão curiosa, porque até agora a visão dominante tem sido a de que o dólar é um “privilégio exorbitante”, como disse Valerie Giscard d’Estaing, então Ministra da Economia francesa e futura Presidente francesa, na década de 1960. Dada a demanda global por dólares, os Estados Unidos podem tomar emprestado muito mais do que qualquer outro país sem sofrer uma crise de dívida, e podem produzir muito mais dólares do que seria inicialmente saudável para sua economia, porque sempre haverá demanda por letras do Tesouro e dólares americanos fora de suas fronteiras.
A teoria econômica – como Miran e outros do círculo trompista explicam – está cheia de furos. A análise empírica dessa nova visão sobre o comércio é limitada e, com as poucas evidências disponíveis, encontra pouco ou nenhum suporte para as hipóteses. Primeiro que as ligações entre o papel do dólar como moeda de reserva, o déficit crônico em conta corrente dos EUA e a fraqueza do emprego e da produção industrial estão erradas. Os EUA estão longe de ser o único país de alta renda com queda na participação do emprego na indústria. Segundo que o novo acordo monetário proposto permitiria, de fato, que os EUA combinassem a emissão de uma moeda de reserva com seus objetivos setoriais melhor do que quaisquer alternativas plausíveis. Terceiro que não está tão claro que Trump será capaz de manter qualquer acordo que tenha alcançado. Afinal, ele abandonou a Ucrânia, colocou em dúvida o compromisso com a OTAN e lançou um ataque ao Canadá e outros aliados. O tratamento dado por Trump aos aliados dificilmente dará garantias de que o cumprimento de tal acordo trará estabilidade. Mesmo que alguns países o cumpram, isso não resolverá o problema do déficit dos EUA. Não é possível resolver simultaneamente o problema do déficit e manter o dólar americano desvalorizado como moeda mundial. Diversos países ao redor do mundo não concordariam com coisas que não fossem do seu interesse econômico porque os EUA queriam. E os estrategistas de Trump parecem não ter percebido que, depois das tarifas, do Afeganistão e agora da Ucrânia, ninguém confia nos Estados Unidos para fornecer acesso ao mercado ou proteção militar.
Neste cenário, Trump e suas políticas podem ser um verdadeiro tiro de bazuca nos pés. As medidas adotadas por Trump podem provocar o efeito inverso que o esperado. Isso porque o crescente déficit norte-americano em transações correntes não decorre da falta de tarifas, mas reflete a deterioração da posição competitiva das empresas norte-americanas em termos nacionais e internacionais. Essa deterioração foi enfrentada especializando-se na intermediação financeira global. As multinacionais norte-americanas vieram receitas e lucros crescerem, mas esse crescimento ocorreu principalmente no exterior e essas empresas só podem manter sua participação no mercado global se reinvestirem o lucro no exterior. Assim, as causas de longo prazo da redução de competitividade não foram enfrentadas, fazendo os EUA perderem competitividade de pouca tecnologia e uso intensivo de mão de obra, como também nas atividades de alta tecnologia e uso intensivo de conhecimento, que são a espinha dorsal da vantagem comparativa dos EUA. A questão de fundo é que a China tem grande superávit comercial porque são competitivos. E, por isso, os EUA querem fazer com o resto do mundo o que fizeram com o Japão em 1985 [os acordos Plaza, que levaram à valorização do iene], matando a expansão japonesa. Simplificando, o plano é essencialmente fazer com que outras economias importantes concordem em valorizar suas próprias moedas e ajudar a desvalorizar o dólar americano. Espera-se que isso alcance as metas declaradas pelo governo dos EUA de tornar os produtos produzidos nos Estados Unidos mais competitivos e impulsionar sua indústria de manufatura. No entanto, isso também tornaria as exportações dos participantes menos competitivas.
A ex-economista-chefe do Departamento de Relações Exteriores e Comércio Jenny Gordon apontou que as ideias delineadas por. Miran dificilmente resultariam na redução dos déficits e no retorno dos bons empregos – que eram a motivação principal. Para ela, a lógica era falha por uma série de razões: 1) Os EUA precisariam tomar dinheiro emprestado para reinvestir em seu setor manufatureiro, o que aumentaria o valor do dólar americano — o oposto do que o acordo pretende fazer; 2) A mudança nos padrões de consumo, a tecnologia e o envelhecimento da população contribuíram tanto, se não mais, do que o comércio global para afastar os empregos bem remunerados do coração industrial da América; e 3) O plano faria com que os países abandonassem o dólar americano como moeda de reserva, e o Trump disse que não quer isso.
Para Michel Hudson, em vez de apoiar o crescimento da indústria americana, o efeito das tarifas e outras políticas fiscais de Trump será proteger e subsidiar a obsolescência e a desindustrialização financeirizada. Sem reestruturar a economia rentista e financeirizada para levá-la de volta ao plano de negócios original do capitalismo industrial, com mercados livres da renda rentista, como defendido pelos economistas clássicos e suas distinções entre valor e preço e, portanto, entre aluguel e lucro industrial, seu programa não conseguirá reindustrializar os Estados Unidos. De fato, ameaça empurrar a economia americana para uma depressão – para 90% da população, pelo menos. Trump não tem planos de recriar tal economia industrial. Em vez disso, ele defende a filosofia econômica oposta: enxugamento do governo, enfraquecimento da regulamentação pública, privatização da infraestrutura pública e abolição do imposto de renda progressivo. Este é o programa neoliberal que aumentou a estrutura de custos da indústria e polarizou riqueza e renda entre credores e devedores. Donald Trump deturpa este programa como sendo favorável à indústria, e não à sua antítese.
Hudson critica a crença de que as tarifas, por si só, podem reanimar a indústria americana. Na realidade, esconde a inexistência de planos para lidar com os problemas que causaram a desindustrialização dos Estados Unidos. Não há reconhecimento do que tornou o programa industrial original dos EUA e da maioria das outras nações tão bem-sucedido. Esse programa baseava-se em infraestrutura pública, aumento do investimento industrial privado e salários protegidos por tarifas, além de forte regulamentação governamental. A política de corte e queima de Trump é o inverso – reduzir o tamanho do governo, enfraquecer a regulamentação pública e vender a infraestrutura pública para ajudar a pagar os cortes de imposto de renda de sua classe de doadores. Isto é apenas o programa neoliberal sob outra roupagem. Trump o apresenta de forma equivocada como um apoio à indústria, não à sua antítese. Sua iniciativa não é um plano industrial, mas sim um jogo de poder para extrair concessões econômicas de outros países, enquanto reduz os impostos de renda dos ricos. O resultado imediato será demissões generalizadas, fechamento de empresas e inflação dos preços ao consumidor.
Trump está, portanto, promovendo uma narrativa simplista e descaradamente falsa sobre o que tornou a política de industrialização americana do século XIX tão bem-sucedida. Para ele, o que é grandioso é a parte “dourada” da Era Dourada, não sua decolagem industrial e social-democrata liderada pelo Estado. Sua panaceia é que tarifas substituam o imposto de renda, juntamente com a privatização do que resta das funções governamentais. Isso daria a um novo grupo de barões ladrões carta branca para enriquecer ainda mais, reduzindo a tributação e a regulamentação governamental sobre eles, ao mesmo tempo em que reduz o déficit orçamentário com a venda do domínio público restante, desde terras de parques nacionais até os correios e laboratórios de pesquisa.
Em nítido contraste com a desindustrialização ocidental, destaca-se a bem-sucedida decolagem industrial da China. Hoje, o padrão de vida na China é, para grande parte da população, tão alto quanto o dos Estados Unidos. Isso é resultado da política do governo chinês de fornecer apoio público aos empregadores industriais, subsidiando necessidades básicas (por exemplo, educação e assistência médica), trens públicos de alta velocidade, metrô local e outros transportes, melhores comunicações de alta tecnologia e outros bens de consumo, além de seus sistemas de pagamento. Mais importante ainda, a China manteve o setor bancário e a criação de crédito no domínio público, como um serviço público. Essa é a política fundamental que lhe permitiu evitar a financeirização que desindustrializou os EUA e outras economias ocidentais. Como diz Milton Pomar, a diferença fundamental entre a China e as demais grandes economias é que o sistema financeiro chinês não manda na China. A China é que manda em seu sistema financeiro.
A postura agressiva de Trump minou ainda mais a confiança no dólar no exterior e está causando sérias interrupções na cadeia de suprimentos da indústria americana, interrompendo a produção e causando demissões no país. Embora as tarifas possam levar a um dólar mais forte no curto prazo, se Trump as mantiver perpetuamente, isso provavelmente levará a um crescimento estruturalmente menor, e o valor de equilíbrio do dólar a longo prazo provavelmente será menor do que seria de outra forma. A erosão estrutural das instituições e a renúncia dos EUA à sua posição dominante no cenário mundial enfraquecem a posição de reserva do dólar. Embora no curto prazo o dólar provavelmente esteja seguro devido à falta de alternativas, no médio prazo, a pressão para o fim de sua dominância aumentará e, com isso, de parte de seu valor. Significaria um período de caos econômico internacional, enquanto os países lutam para encontrar alternativas ao dólar. Poderia até mesmo desencadear uma crise financeira global, minando a confiança no mercado do Tesouro dos EUA, assim como a desvalorização dos empréstimos subprime minou a confiança no mercado hipotecário em 2008. Como disse o economista Mark Sobel: “O dólar pode de fato cair, mas não da maneira que Trump gostaria”.
Fernando Marcelino é analista internacional, especializado em China. Pós-doutor em Urbanismo e Políticas Públicas. Autor de livros como “A Revolução das Cidades Inteligentes na China”, “Estratégias de desenvolvimento no Sul Global”, “Para onde vai a esquerda?” e “Reflexões sobre o Socialismo Chinês”.
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