A escatologia é, para grande parte do mundo evangélico, uma chave interpretativa onipresente. Guerras, terremotos, pandemias, eleições, tratados internacionais — tudo pode ser lido como prenúncio do fim. Israel é visto como o “relógio profético de Deus”, e cada movimentação no Oriente Médio gera um novo ciclo de sermões apocalípticos.

A eleição de Donald Trump foi recebida em vários púlpitos como cumprimento de profecias bíblicas; já o avanço de pautas ambientais ou de direitos civis é, não raro, tratado como sinal do governo do Anticristo. A morte de um papa, nesse cenário, deveria ser mais um desses gatilhos. Mas com Francisco, não foi.

O silêncio — ou, no máximo, a reação protocolar — de muitas lideranças evangélicas diante de sua morte revela um esvaziamento: o discurso escatológico, tão dependente de antagonismos e imagens fortes, não encontrou em Francisco o inimigo simbólico necessário para se retroalimentar. E talvez por isso tenha falhado em fazer da sua morte um “sinal dos tempos”.

A última vez que o mundo assistiu à morte de um papa no exercício do cargo foi há vinte anos, em abril de 2005, com João Paulo II. Naquele momento, o falecimento do pontífice mobilizou parte expressiva do campo protestante conservador, que rapidamente interpretou o evento à luz das profecias do Apocalipse. A escatologia popular evangélica, profundamente influenciada pela teologia dispensacionalista, leu a morte do polonês como mais um sinal do fim dos tempos.

Sua partida foi rapidamente absorvida pelas engrenagens da escatologia popular evangélica. Pregações apocalípticas, livretos urgentes, vídeos proféticos e até relatos de sonhos reveladores circularam entre fiéis, pastores e comunidades. Em muitas dessas interpretações, João Paulo II era identificado como o “último papa antes do arrebatamento” ou como peça-chave no cumprimento das profecias finais. Sua figura austera e solene correspondia ao imaginário que associa o papado ao poder religioso global e à iminente manifestação do Anticristo. 

O que mudou, então, na forma como os evangélicos se relacionam com a figura papal — e por que Francisco não gerou o mesmo tipo de reação escatológica? Parte da resposta está no próprio perfil de Bergoglio, que colocou o papado longe do lugar em que a escatologia evangélica costuma operar. Setores mais moderados passaram a enxergá-lo com respeito, ainda que à distância, por seu compromisso humanitário.

Já os segmentos mais apegados à teologia tradicional e à leitura literal das Escrituras viram nisso uma ameaça: um papa que falava como profeta bíblico, mas sem invocar marcos dogmáticos clássicos. A ambiguidade transformou Francisco em um personagem de difícil enquadramento para o mundo evangélico — nem herói, nem inimigo claro.

O legado escatológico do dispensacionalismo — sistema de interpretação bíblica amplamente difundido entre os evangélicos brasileiros a partir do século XX, sobretudo por meio de influências norte-americanas — construiu uma lente apocalíptica sobre o catolicismo romano. Nessa lógica, o papa ocupa um lugar específico no roteiro do fim dos tempos.

Identificado com o falso profeta do Apocalipse ou com a liderança espiritual da “grande Babilônia” que cairá antes da volta de Cristo, o papado é interpretado como dispositivo central da narrativa do juízo final. É uma estrutura simbólica fixa, que não depende da personalidade ou das ações concretas do pontífice em questão. Francisco, Bento ou João Paulo: o cargo precede o homem. 

Com Francisco, essa lógica foi tensionada — e em certos aspectos, subvertida. Apesar de morrer em plena era das redes sociais, sob algoritmos prontos a amplificar rumores, a partida do argentino não provocou o mesmo tipo de mobilização simbólica. A razão está menos na tecnologia e mais na teologia: Francisco simplesmente não se encaixava nos arquétipos do mal necessários para sustentar esse tipo de narrativa escatológica.

Falou das periferias geográficas e existenciais, dos migrantes esquecidos, dos trabalhadores precarizados, das juventudes descartadas pelo sistema. Construiu uma liturgia do cuidado em lugar do dogma. Esse tipo de discurso — radicalmente simples — não ativa os gatilhos proféticos clássicos do fundamentalismo evangélico, que se alimenta de discursos contra supostas heresias explícitas, escândalos morais ou imaginárias alianças do Vaticano com a “nova ordem mundial”. 

Diante desse perfil ético, humilde e próximo dos pobres — e do esvaziamento progressivo do discurso apocalíptico, o que se viu entre as grandes lideranças das denominações pentecostais e neopentecostais foi, majoritariamente, o silêncio. Também silenciaram os representantes políticos das alas conservadoras do mundo evangélico, que costumam se pronunciar com fervor diante de qualquer evento de impacto global ligado ao Vaticano.

Não houve ataque, indignação ou análise profética. Criticar Francisco publicamente, afinal, exige coragem retórica: sua trajetória desarma, seu testemunho constrange, sua coerência ética desmonta o discurso fácil. Diante de um papa que denunciava injustiças e recusava o espetáculo da fé, faltaram argumentos e sobrou silêncio.

Francisco morreu — e o fim dos tempos, dessa vez, não veio. Nem trombetas, nem bestas, nem videntes em estado de emergência. O papa das periferias, dos gestos simples, partiu sem cumprir o papel que lhe era reservado no imaginário apocalíptico. Talvez porque, ao invés de se encaixar nas profecias, ele tenha preferido encarnar o evangelho.

Sua morte expôs o esgotamento de uma escatologia que já não encontra mais inimigos à altura de suas fantasias — e que, sem antagonistas evidentes, revela-se cansada, repetitiva e pouco convincente. Diante de um papa que viveu como testemunha do amor ao próximo e da justiça social, restou o silêncio. O juízo final pode até estar marcado — mas, por ora, o fim dos tempos pode esperar.

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Last Update: 27/04/2025