A Mostra Internacional de Cinema de São Paulo
por Walnice Nogueira Galvão
Talvez as pessoas nem mais se lembrem como era a distribuição de filmes no Brasil, quando a Mostra começou, em 1977. Os filmes nunca chegavam aqui e se por acaso chegassem, isso se daria vários anos após seu lançamento, de tal modo que estávamos sempre desatualizados com relação ao movimento cinematográfico mundial. Ficávamos à mercê do lobby distribuídor , com acesso regular e permanente apenas ao infantilizado cinema de Hollywood .
Sem falar nos anos de ditadura e de censura, quando, para ver filmes realmente importantes, tínhamos que viajar para o exterior. Assim foram vistos, que eu me lembre, A batalha de Argel, que mostrava a guerra anticolonial dos argelinos expulsando o imperialista francês; ou Z e Missing, de Costa Gavras, sobre respectivamente a repressão na Grécia e no Chile, Todos politicamente importantes. Mas até alguns que nem tratavam de política, como O último tango em Paris ou O império dos sentidos
E aí surge aquele maravilhoso D. Quixote encarnado em Leon Cakoff. Cinéfilo apaixonado, quase obsessivo, com fé na missão civilizacional do cinema, foi aos poucos inventando e construindo aquele que viria a se tornar um dos maiores e mais respeitados festivais de cinema do mundo.
O festival começou modesto, e devagar, em 1977, com 16 filmes e 6 curtas. O público seria o júri de melhor filme desde o início, a par com o júri oficial e mais tarde internacional. Treino de democracia, foi tomando gosto pelo voto, sob ditadura… Só para dar uma ideia: hoje a edição anual ultrapassa 330 filmes, que ocupam 35 salas espalhadas pela cidade. Sua origem foi no Masp, onde Leon era programador de cinema.
No seu auge, nossa vida individual cessava por 15 dias. Era uma correria para assistir, esbaforidos, uma seleção pessoal, em salas no Centro e na Vila Mariana, passando pela Augusta e Paulista. Mas viam-se ali os filmes que acabavam de sair e eram trepidantes nas metrópoles do planeta.
Assun veio a se desprovincianizar o gosto, elegendo a qualidade como critério básico não negociável.
Público constante têm sido os estudantes, jovens em geral, cinéfilos em botão, futuros cineastas, lado a lado com veteranos de cabelo branco. As sessões no vão livre do Masp ficaram famosas. Suas filas geraram não poucos casamentos…
Sempre à beira do colapso, entre sustos, percalços, perseguições da censura. Ou então era o diretor do Masp, Pietro Bardi, que de repente resolveu retirar seu beneplácito… O ponto mais baixo deve ter sido a edição sem um filme brasileiro sequer, graças ao presidente Collor, que extinguiu a Embrafilme. Rivalizam com essa duas outras apenas virtuais, devido à pandemia.
Hoje o comando cabe a Renata de Almeida, viúva de Leon, que morreu aos 63 anos, e sua parceira de longa data na organização dos festivais. Não esquecer que a Mostra muito deve a uma equipe de dedicados trabalhadores e patrocinadores. Foi até possível criar um programa de convites a realizadores estrangeiros.
Assim o público foi-se familiarizando com cinematografias que nos eram alheias, que se tornaram moda e passaram a ter distribuição regular no país. Foi o que aconteceu primeiro com os chineses e iranianos, depois com os romenos, e ainda depois com os africanos e sul-coreanos
Os cuidados de Leon se estenderam à documentação, registro e memória. Tratou de escrever ou compilar vários volumes sobre temas ligados ao festival. Cada Mostra teve seu catálogo e seu cartaz, caprichadíssimo, com desenho assinado pelos maiores cineastas do mundo.
Seu exemplo frutificou. Veja-se o novíssimo filme em episódios Viva o Cinema! Uma história da Mostra de São Paulo, documentário dirigido por Gustavo Rosa de Moura e Marina Person, esta uma antiga e constante colaboradora.
Hoje é uma honra para um cineasta estrangeiro ser escolhido como alvo da retrospectiva anual, entre muitas outras iniciativas que são filhotes da Mostra.
Foi assim que a Mostra cresceu e se impôs, colocando São Paulo no circuito planetário do cinema e conquistando seu lugar na agenda cultural da cidade. E conferindo a Leon Cakoff o galardão de herói civilizador.
Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH-USP