Mais de um milhão de crianças vive sem contato com ao menos um de seus pais. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, publicado em 2024, o Brasil tem 852 mil pessoas presas. Deste total, 59% têm descendentes.
Após decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) nessa sexta-feira (25), Rafael, de 6 anos, e Caio César, de 10, entrarão para essa estatística sombria. Sua mãe, a cabeleireira baiana Débora Rodrigues, passará um total de 14 anos atrás das grades.
Ao deixar a cadeia, Rodrigues estará com mais de 50 anos. Rafael, que ainda nem chegou ao Ensino Fundamental, já deverá estar na faculdade. O primogênito, por sua vez, já deverá carregar em seus braços o primeiro neto da cabeleireira.
A forma como Débora Rodrigues passará a próxima década de sua vida é resultado de uma ação que durou menos de 30 segundos. A mãe de Rafael e Caio César foi sentenciada a uma pena superior à de muitos homicidas porque, durante a manifestação bolsonarista de 8 de janeiro de 2023, sacou de sua bolsa um batom e escreveu, em uma escultura, a seguinte frase: “perdeu, mané”.
A pichação faz referência a uma frase dita por Luís Roberto Barroso, atual presidente do Supremo Tribunal Federal (STF). Dois meses antes da ação de Rodrigues, Barroso se dirigiu a apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), que havia acabado de ser derrotado nas eleições presidenciais, com os mesmos dizeres escritos pela cabeleireira.
“Perdeu, mané” não foi a única frase na qual Barroso, extrapolando sua função de juiz, demonstrou suas preferências políticas. Em julho de 2023, o presidente do STF afirmou que “derrotamos o bolsonarismo”, indicando que a mais alta Corte do País é movida por interesses políticos.
No julgamento que resultou na condenação de Débora Rodrigues, Barroso não votou. Isso porque a cabeleireira foi condenada na Primeira Turma do STF, e não no plenário. Mesmo assim, em declarações públicas, o ministro indicou ser favorável à sua condenação. Barroso disse que os brasileiros têm uma característica de ter “indignação profunda” na hora em que “os episódios acontecem” e que depois “vão ficando com pena”. Por isso, defendeu a condenação daqueles envolvidos na manifestação de 8 de janeiro, afirmando ainda que, caso contrário, “pode fazer parecer que, na próxima eleição, quem não estiver satisfeito pode pregar a derrubada do governo eleito e invadir prédios públicos”.
A Primeira Turma do STF condenou Débora Rodrigues por unanimidade. Todos os cinco ministros votaram por sua condenação.
No que diz respeito à pena, o relator, Alexandre de Moraes, defendeu que a cabeleireira fosse sentenciada a 14 anos de prisão, sendo acompanhado pelos ministros Flávio Dino e Cármen Lúcia. Cristiano Zanin propôs uma pequena redução da pena para 11 anos, mas foi voto vencido. A posição mais destoante, embora também favorável à condenação, foi a de Luiz Fux, que propôs uma pena de uma ano e seis meses. O voto de Fux também foi vencido.
Mesmo com todos os cinco votos apresentados, o julgamento no plenário virtual só será encerrado no dia 6 de maio, que é o prazo final do julgamento. O resultado oficial só sairá após essa data.
Trabalhando como cabeleireira há 18 anos, Débora Rodrigues não tem antecedentes criminais. Segundo contou em seu depoimento ao STF, ela não costumava participar de manifestações e foi por conta própria de sua cidade para Brasília rumo ao ato de 8 de janeiro de 2023 na Praça dos Três Poderes. Ela também conta que não invadiu nenhum prédio público, ao contrário de centenas de manifestantes daquele dia.
“Eu fui andando um trecho… são 8 km […] E no caminho teve um casal que tava de carro, e ele ofereceu carona pra mim e pra mais duas patriotas que estavam comigo, que eu conheci lá. E aí a gente entrou no carro e foi até próximo à Esplanada. Depois seguimos mais um trecho a pé […] Quando eu cheguei lá, já tinha bastante gente dentro dos prédios. E eu fiquei um pouco assustada, porque eu não imaginei que ia… eu imaginei, na minha cabeça, que todos iam sentar lá naquela praça e ficar lá. Mas eu vi… quando eu vi pessoas lá dentro e eu vi vidraças quebradas, aquilo me deixou um pouco em pânico […] Eu acredito que, após a escrita, eu devo ter ficado cerca de meia hora, 40 minutos ali. E aí, ainda, os policiais ainda não tinham feito um cerco. Depois fizeram o cerco. Teve bastante daquele gás que arde o olho. E aí eu fui… foi a hora que eu fui saindo, que eu fui pra avenida.”
O STF não apresentou quaisquer provas que contradissessem o seu depoimento. Mas isso tampouco foi necessário. Afinal, o STF não alegou que Rodrigues tivesse invadido algum prédio, nem que tivesse quebrado qualquer objeto.
O que justifica, então, uma pena tão alta para a moça?
Para a Primeira Turma da mais alta Corte do País, os 30 segundos gastos por Rodrigues para escrever uma frase em uma escultura foi o suficiente para acusá-la de ter cometido cinco crimes: deterioração de patrimônio tombado, dano qualificado, golpe de Estado, abolição violenta do Estado Democrático de Direito e associação criminosa armada. De todos esses crimes, o único que está diretamente relacionado ao ato de escrever uma frase de batom em uma estátua é a deterioração de patrimônio tombado. Ainda assim, seria preciso levar em consideração que a deterioração é mínima, uma vez que o material utilizado é facilmente removível.
Débora Rodrigues foi enquadrada nos demais crimes porque o relator Alexandre de Moraes, seguindo recomendação da Procuradoria-Geral da República (PGR), atribuiu à cabeleireira uma “intenção” de realizar um golpe de Estado:
“Está comprovado, pelo teor do seu interrogatório policial e judicial, bem como pelas provas juntadas aos autos, que DÉBORA RODRIGUES DOS SANTOS buscava, em claro atentado à Democracia e ao Estado de Direito, a realização de um golpe de Estado com decretação de ‘INTERVENÇÃO DAS FORÇAS ARMADAS’ e, como participante e integrante da caravanas que estavam no acampamento do QGEx naquele fim de semana e invasor de prédios públicos na Praça dos Três Poderes, com emprego de violência ou grave ameaça, tentou abolir o Estado Democrático de Direito, visando o impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais, tudo para depor o governo legitimamente eleito, com uso de violência e por meio da depredação do patrimônio público e ocupação dos edifícios-sede do Três Poderes da República.”
Conforme o próprio Alexandre de Moraes, todo o “armamento” encontrado junto com os manifestantes daquele dia foram pedaços de madeira, estilingues, bolas de gude e esferas de aço. A rigor, apesar de qualquer interpretação de Moraes sobre as intenções de Rodrigues, ela não poderia ser condenada por organização armada.
Participar de um ato público e viajar para participar deste ato também não é crime, independentemente do que os outros manifestantes façam naquela manifestação.
O regime jurídico brasileiro não admite a responsabilização penal coletiva, isto é, a ideia de que uma pessoa possa ser punida criminalmente apenas por fazer parte de um grupo no qual outra tenha cometido um crime. O princípio da responsabilidade penal individual, previsto tanto no Código Penal quanto na Constituição Federal, estabelece que a pena deve ser pessoal, ou seja, ninguém pode ser responsabilizado por um ato que não praticou. Isso está diretamente relacionado ao princípio da culpabilidade, que exige que haja dolo ou culpa comprovada individualmente, e ao princípio da individualização da pena, que garante que cada acusado deve ser julgado com base em sua própria conduta, e não por associação.
Quando o STF imputa a todos os participantes de uma manifestação os mesmos crimes praticados por um ou alguns indivíduos, sem individualizar a conduta de cada um, há uma violação clara de diversos princípios constitucionais, como o devido processo legal, a ampla defesa, o contraditório e a presunção de inocência. Há, assim, uma ditadura.