A eleição à presidência do PT não será uma mera ratificação de um nome. Na ­segunda-feira 14, o deputado federal Rui Falcão lançou-se na disputa contra Edinho Silva, ­ex-prefeito de Araraquara, em tese o candidato preferido do presidente Lula. ­Vive-se ainda a expectativa da confirmação de um terceiro postulante, Washington Quaquá, que administra a fluminense Maricá. “Todo consenso forçado leva a enganos, enquanto o debate produz ideias novas”, afirma Falcão na entrevista ao redator-chefe, Sergio Lirio. O deputado defende um retorno às bases, a ocupação dos territórios, em contraposição à busca burocrática pelos eleitores em anos pares. “Um pé na institucionalidade, um pé na rua”, prega. A experiência anterior no comando da legenda qualifica a candidatura. Sob seu mandato, o PT obteve, em 2012, o melhor resultado nas urnas, quando elegeu 637 prefeitos, três vezes mais do que possui atualmente.

CartaCapital: Por que o senhor decidiu concorrer à presidência do PT?
Rui Falcão: Achei importante dar uma contribuição neste momento em que o ­País, como o resto do mundo, vive uma ofensiva da extrema-direita. O PT, talvez por erros de avaliação da conjuntura, anda muito preocupado em acabar com a chamada “polarização”, como se fosse escolha nossa. O partido ficou distante da rea­lidade local e tem feito política apenas nos anos pares, em época de eleição. Há um afastamento do cotidiano das lutas do povo e isso repercute nas ações do governo, hoje prisioneiro de um Congresso que consome boa parte dos investimentos em emendas parlamentares e obrigado a fazer certas alianças que dificultam a execução de suas propostas. Além disso, enfrenta situações esdrúxulas, como esta: mais de 140 deputados filiados a partidos com cargos no Executivo assinaram a urgência do projeto de anistia, coisa inconcebível. É preciso dar outro rumo ao PT, recuperar o nosso projeto estratégico, que é construir uma nova sociedade. Apesar de toda recuperação promovida pelo atual governo, ainda há bolsões de exclusão, de baixos salários, de trabalhadores em situa­ção análoga à escravidão. Nosso projeto originário falava da necessidade de ter um pé na institucionalidade e um pé nas ruas.

“A correlação de forças não é estática”

CC: Ter várias candidaturas ao comando enfraquece ou fortalece o partido e o governo?
RF: A melhor contribuição, seja para apoiar o governo, seja para reeleger o presidente Lula, é ter um partido combativo, aguerrido e mobilizado, que tenha informação, comunicação e, portanto, organização. E também para que, no interior do governo, fruto de uma ampla frente, a gente possa disputar os rumos. Vários partidos abrigados em ministérios discordam das linhas gerais do nosso programa, como se viu nesse episódio, lateral, de assinarem a urgência da anistia, projeto que não faz sentido nem para a maioria da sociedade, conforme indicam as pesquisas. A maioria nem quer anistia aos golpistas do 8 de Janeiro nem quer o perdão a Bolsonaro. O fato de eu defender uma linha de maior combatividade do PT pode ser atribuído a uma espécie de oposição ao presidente Lula, até porque se diz que ele apoia um dos candidatos, o Edinho Silva (ex-prefeito de Araraquara). Mas tenho testemunhos recentes do próprio presidente de confiança em mim. Então, não cabe qualquer tipo de manipulação ou increpação em relação a mim.

CC: Qual a possibilidade de a anistia ser aprovada no Congresso?
RF: É mais propagandístico que tudo. O presidente do Senado, Davi Alcolumbre, afirmou que não pautará o projeto. Além da urgência, o projeto precisa ser pautado e furar a fila de mais de 2 mil pedidos de regime de urgência e depois ser aprovado e passar pelo veto ou sanção do presidente Lula. Se o presidente vetar, o Congresso precisa derrubar o veto e ainda ouvir a opinião do Supremo Tribunal Federal, que de antemão classificou a proposta como inconstitucional.

Identidade. Para enfrentar o mercado e a extrema-direita, Lula tem a sua base – Imagem: Ricardo Stuckert/PR

CC: Qual seria, então, o objetivo dos bolsonaristas?
RF: Eles cumprem o papel de oposição permanente, escolhendo cada tema para desgastar o governo e afirmar as suas propostas. Por isso o PT não pode aceitar certas situações. É preciso nos contrapormos com a mesma intensidade, o que o novo líder do partido na Câmara, ­Lindbergh Farias, tem feito no cotidiano com muita capacidade e energia. Ministros, a exemplo do que fazia Flávio Dino na Justiça, precisam fazer a defesa do governo e destacar as nossas iniciativas, nos distinguindo da oposição e lembrando, a cada momento, em que estado encontramos o País. O presidente Lula assumiu um Brasil em ruínas. É necessário dialogar com o povo, compartilhando suas angústias e problemas. Por que não conseguimos avançar mais em questões estruturais? O slogan da campanha era união, reconstrução e transformação. O item transformação foi elidido, por conta da oposição no Congresso e do grande empresariado. É preciso explicar. Dizer “olha, pessoal, eu entendo as preocupações, mas não posso fazer mais do que fiz sem o apoio de vocês”. Fazer uma comunicação convocatória para romper o desânimo, o desencanto, recuperar a esperança. A correlação de forças não é estática.

CC: Como seria a reconexão do partido com as bases? Imagino que não seja mais viável reproduzir o modelo dos anos 1980, quando o PT nasceu.
RF: Precisamos, antes, observar se ocupamos o território. Muito pouco, diria. Como falei antes, isso só acontece em momentos episódicos, em anos pares, salvo algumas exceções. Claro, não se trabalha mais com grandes concentrações de trabalhadores, mas os sindicatos haviam começado a se movimentar para uma compreensão mais ampla dos filiados, a dimensão da cidadania. O trabalhador não fica só na fábrica. Ele usa transporte, depende do serviço de saúde, da previdência… Ele tem demanda, sonhos, e é preciso dar conta, esteja onde estiver. As ideias neoliberais, que precisam ser combatidas, levaram à fragmentação e ao fim da ideia do coletivo, de comunidade. Vigora o individualismo, o egoísmo social. Não se trata da individualidade a que cada um tem direito. É individualismo, o “eu sou empresário de mim mesmo”, “eu me basto”. Isso vem associado à rejeição do papel do Estado, que só atrapalharia. Tudo isso influi na ação política. Nesse contexto, o partido precisa adequar-se. Não podemos apenas ceder ao senso comum. O PT sempre se propôs a ser uma legenda transformadora, capaz de proporcionar melhores condições de vida à maioria.

O fascismo “não se combate com flores”

CC: O senhor concorda com a crítica de que falta uma ideia nova neste terceiro mandato do presidente Lula?
RF: Acho que falta, por isso defendo um debate mais profundo no partido. Todo consenso forçado leva a enganos, enquanto o debate produz ideias novas. Por que com tantas iniciativas e uma diferença tão grande, que ninguém nega, em relação aos governos Temer e Bolsonaro, não há um forte engajamento em defesa das nossas propostas? Algumas hipóteses. Parte das conquistas estão na conta e a população acha que o governo não faz mais do que a obrigação. Uma parcela do eleitorado acredita que seus avanços são fruto do esforço pessoal ou de um milagre divino. Por isso, precisamos de um projeto civilizatório de futuro. Quando falo em ideias novas, falo de projetos. A redução da jornada de trabalho sem redução de salário é uma dessas ideias novas, aplicada com sucesso em vários países. Os jovens se perguntam em qual mundo vão viver daqui a 20 anos. Será neste mundo de aquecimento global, de guerras, de expulsão de migrantes, de racismo, do retorno de ideias fascistas? Essas coisas não se combatem com flores. O racismo e o fascismo foram derrotados no passado com luta social, com guerra, com ação dos trabalhadores.

CC: O senhor acha possível reproduzir, em 2026, a mesma frente em torno do presidente Lula que derrotou Bolsonaro em 2022? Ou o governo e o PT terão de buscar outro caminho?
RF: Estamos diante de um duplo cerco. Um do mercado, que quer impor o seu receituário. Outro das forças políticas, que trabalham para desgastar o governo. A ação desse duplo reforço pode custar a eleição de 2026. Ou melhor, em relação a essas duas frentes, precisamos mudar para ganhar. Primeiro, não aceitar o programa do mercado. Não há indulgência para o PT na Faria Lima. Segundo: combater a extrema-direita com rigor, com um partido que auxilie o presidente Lula a extirpar esse pessoal. Isso não exclui as alianças eleitorais, que dificilmente vão repetir a frente atualmente expressada no interior do governo. Nossa maior preo­cupação deveria ser com o eleitorado e, principalmente, com a nossa base social, que anda arredia. O primeiro passo não é fazer aliança por cima, é recuperar por baixo. Não é o terceiro andar. É o piso. •

Publicado na edição n° 1359 de CartaCapital, em 30 de abril de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Pé nas ruas’

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Last Update: 24/04/2025