Luís Roberto Barroso, presidente do Supremo Tribunal Federal, interrompeu o descanso no feriado de Páscoa para dar uma resposta pública, em nome da Corte, à revista The ­Economist no Sábado de Aleluia. Três dias antes, o semanário inglês havia publicado um texto intitulado “Suprema Corte do Brasil está em julgamento”. Era sobre a situação criminal de Jair Bolsonaro. Trazia declarações exclusivas do capitão e realçava certas ideias propaladas por ele: vai virar mártir em caso de condenação, o STF estaria a fazer política, o juiz Alexandre de Moraes abusaria do próprio poder e blablablá. “O enfoque dado na matéria”, diz a nota de Barroso, “corresponde mais à narrativa dos que tentaram o golpe de Estado do que ao fato real de que o Brasil vive uma democracia plena, com Estado de direito, freios e contrapesos e respeito aos direitos fundamentais.”

A Economist é porta-voz do neoliberalismo (tem sido compreensiva com o cruel experimento de Javier Milei na Argentina, por exemplo) e em questões econômicas não tem por que reclamar do Supremo brasileiro. Em 2017, Barroso participou de um evento em Londres e atacou a legislação trabalhista nacional com um dado fantasioso: o Brasil concentraria 98% das causas do mundo a opor patrões e empregados. Seu colega de toga Gilmar Mendes acaba de amordaçar a Justiça do Trabalho ao paralisar todos os processos contrários à “pejotização” da mão de obra. Em fevereiro, o STF iniciou o julgamento de uma ação que dificulta a execução de dívidas trabalhistas de empresas e falta só um voto para a festa patronal. Barroso e Mendes ainda vão votar, ou seja, os trabalhadores já podem começar o luto.

Trata-se de um plano B diante dos entraves ao projeto original

A posição da Economist no caso de Bolsonaro é resultado de uma campanha internacional, e de conexões idem, do ex-presidente destinada a emparedar o STF e salvar-se. Para levar adiante esse plano, Eduardo Bolsonaro vive em autoexílio nos Estados Unidos. Em 1º de abril, o jornal Financial Times, do mesmo grupo que controla The Economist, publicara a reportagem “O arriscado julgamento de Jair Bolsonaro” e, nela, Barroso dizia coisa parecida com a resposta à revista. “Fomos um dos raros casos no mundo em que um tribunal, com o apoio da sociedade civil, da imprensa e de grande parte da classe política, conseguiu impedir uma ruptura democrática.” Registre-se que a revista americana New Yorker, de esquerda, publicou, em 7 de abril, um perfil de Alexandre de Moraes com um olhar completamente diferente, vide o título: “O juiz brasileiro enfrentando a extrema-direita digital”.

No front interno, a extrema-direita luta para socorrer Bolsonaro com uma anistia no Congresso. Incapaz, por ora, de dobrar o presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta, do Republicanos da Paraíba, e conseguir que ele coloque a lei em votação, resolveu atacar em outro flanco, e sem alarde. Quer paralisar via Parlamento a ação penal 2668, aberta pelo Supremo contra Bolsonaro, cinco militares e dois delegados. O pretexto é justamente um dos dois delegados, Alexandre Ramagem, que comandou a Agência Brasileira de Inteligência no governo do capitão e é deputado federal pelo PL do Rio de Janeiro.

Fio da navalha. Motta busca meios de driblar a urgência do PL – Imagem: Marina Ramos/Agência Câmara

Em 1° de abril, a cúpula do PL reuniu-se em Brasília e decidiu ingressar com um pedido legislativo de suspensão da ação penal contra Ramagem. Desde 2001, a Constituição permite ao Congresso, pelo artigo 53, sustar processos judiciais contra um parlamentar enquanto ele estiver em mandato. O prazo para a providência é de 45 dias contados a partir do momento em que for avisado formalmente de que o Judiciário aceitou uma denúncia contra um deputado ou senador. No caso de Ramagem, a notificação pelo STF ocorreu em 31 de março. A autorização para brecar um processo raramente é usada. Em março, o Supremo tornou réus três deputados do PL acusados de desvio de verbas orçamentárias e já informou a Câmara. Até a a conclusão desta reportagem, na manhã da quinta-feira 24, o PL não havia proposto sustar a ação contra o trio.

O partido tentará paralisar a ação penal 2668 como um todo, não só na parte que atinge Ramagem, a boia para Bolsonaro. O plano ficará claro quando despontar na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara o parecer sobre a suspensão. O relatório será da lavra de um bolsonarista de Alagoas, Alfredo Gaspar, do União Brasil. Ex-chefe do Ministério Público alagoano, ele comanda o grupo parlamentar Brasil–Hungria. Em fevereiro de 2024, o capitão tinha tido o passaporte apreendido por ordem do STF e escondera-se por dois dias na embaixada húngara em Brasília. “Precisamos permitir que Jair Bolsonaro seja candidato (a presidente em 2026)”, declarou Gaspar da tribuna da Câmara em 8 de outubro de 2024.

Segundo escalão. A Primeira Turma do STF tornou ré a equipe “executiva” do golpe. Ainda há 19 denunciados à espera de uma decisão da Corte Suprema – Imagem: Antonio Auguto/STF

O parecer deve ser entregue na CCJ em 30 de abril. “Semana que vem vai ser o fim do mundo aqui”, afirma o líder do PT na Câmara, Lindbergh Farias, do Rio de Janeiro. O petista espera que, até lá, o Supremo esclareça quais são os fatos que pesam contra Ramagem antes e depois da diplomação como deputado, em 19 de dezembro de 2022. Aquela previsão legal de suspensão de um processo contra congressista vale só para fatos posteriores à diplomação. Na acusação da Procuradoria-Geral da República, a maior parte dos fatos contra Ramagem refere-se ao seu período na Abin, antes da eleição, portanto. Em 14 de abril, Farias requereu por escrito ao juiz Moraes, relator da ação penal 2668, que esclareça a cronologia contra Ramagem e o que seria atingido na hipótese de a Câmara brecar a ação penal.

Entre os deputados, acredita-se que a suspensão será aprovada na Câmara, por um motivo simples: corporativismo. Interessaria à maioria proteger um dos seus. Comenta-se ainda que o caso de Ramagem vai misturar-se com o de Glauber Braga, do PSOL do Rio. Glauber fez greve de fome de 9 a 17 de abril, em protesto contra a cassação no Conselho de Ética. Abandonou-a após Motta ter topado não levar o assunto ao plenário sem que antes a CCJ examine um recurso do psolista. O que era para ser uma sobrevida de 60 dias, a pausa anunciada por ­Motta, mostrou-se ilusão. O relatório sobre o recurso foi apresentado na comissão na quinta-feira 24. Deverá ser votado no dia de debate da suspensão da ação penal contra Ramagem. “Os bolsonaristas fizeram chegar a nós a proposta de salvar o Glauber e o Ramagem juntos”, disse a ­CartaCapital um deputado governista.

Bolsonaristas propõem uma troca: Glauber Braga por Ramagem

Assim como é crença geral que a maioria da Câmara topa socorrer o deputado do PL (e, por tabela, Bolsonaro), a avaliação nos bastidores é de que a anistia ao capitão também passa, caso seja levada à decisão plenária. Motta, segundo um deputado petista, está numa saia justa. Anistiar o capitão significa devolvê-lo ao jogo eleitoral. Seria o fim de qualquer pretensão de Tarcísio de Freitas, o governador paulista, concorrer a presidente pelo direitismo em 2026. Freitas e Motta pertencem à mesma legenda, o Republicanos. “A votação da anistia vai expor uma traição: ou ao Bolsonaro ou ao Tarcísio”, comenta o petista.

Na quarta-feira 23, o líder do PL na Câmara, Sóstenes Cavalcante, do Rio, disse que “o tempo agora acabou”. E deixou no ar que sua bancada aprontaria alguma, caso Motta não discutisse a votação da anistia na reunião de líderes do dia seguinte. “O limite do PL com ele chegou ao limite”, declarou, de forma redundante. Cavalcante conseguiu as assinaturas mínimas necessárias de deputados em um pedido para a anistia ser votada com urgência. Cabe a Motta decidir o destino do pedido. Há mais de 2 mil pleitos iguais em favor de outras propostas. A boia para Bolsonaro teria de furar a fila. Um dia após receber o pedido de urgência, ­Motta afirmou que ouviria os líderes partidários. Estes sabem, e o chefe da Câmara também, que o STF vai encarar como grito de guerra. “Em um cenário de crise internacional, não podemos ter uma crise institucional”, comentou Motta horas antes do ultimato de Cavalcante.

Biombo. O perdão a Ramagem virou uma bandeira oportunista dos bolsonaristas – Imagem: Vini Loures/Agência Câmara

A anistia sonhada pelo bolsonarismo é um resumão de oito projetos apresentados entre novembro de 2022 e novembro de 2024. O primeiro deles, o principal, é do deputado que foi líder de Bolsonaro na Câmara, o major Vitor Hugo, atualmente vereador em Goiânia. Os outros sete autores são Adilson Barroso, cabo Gilberto Silva, Hélio Lopes, José Medeiros, Marcelo Crivella, Marcos Pollon e Ramagem. Coube a Rodrigo Valadares, do União Brasil de Sergipe, condensar os projetos e parir um relatório em setembro de 2024 (a proposta de Pollon ainda não existia). O parecer não deixa dúvida: a oposição usa a situação de gente comum condenada pelo Supremo para salvar Bolsonaro tanto na área criminal quanto na eleitoral. A anistia, afirma o relatório, abrange “crimes com motivação política e/ou eleitoral”, vale para “todos que participaram de eventos subsequentes ou eventos anteriores” ao 8 de Janeiro de 2023 e assegura “os direitos políticos” a quem se beneficiar da lei. Tradução: alcança toda a trama anterior ao quebra-quebra em Brasília, inclusive a condenação de Bolsonaro na Justiça Eleitoral, em 2023, a oito anos fora das urnas.

Enquanto o capitão e seus aliados fazem de tudo pela anistia, o Supremo converteu em réus, na terça-feira 22, mais seis acusados de tentativa de golpe. São eles o general Mário Fernandes, aquele que havia imprimido no Palácio do Planalto um plano de captura de Moraes e Lula, o coronel Marcelo Costa Câmara, que monitorava o paradeiro do juiz no fim de 2022, Filipe Martins, assessor de Bolsonaro que deu pitacos no decreto golpista, Silvinei Vasques, ex-chefe da Polícia Rodoviária Federal, e os delegados Fernando de Souza Oliveira e Marília Ferreira Alencar, que foram do Ministério da Justiça no governo do capitão e eram da cúpula da Secretaria de Segurança Pública de Brasília em 8 de janeiro de 2023. A patota compunha, segundo a Procuradoria, um núcleo de gerência de ações desenhadas pela quadrilha do golpe. Até o fim de maio, a Corte decidirá se mais 19 denunciados, integrantes de outros dois núcleos, também se tornarão réus. •

Publicado na edição n° 1359 de CartaCapital, em 30 de abril de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Surge uma boia nova’

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Last Update: 24/04/2025