O que fazer se você é um taxista suburbano e, de repente, se dá conta de que ladrões esqueceram uma mala cheia de dinheiro no seu carro? Ou, então, se é um garimpeiro no interior de Goiás e encontra um diamante gigantesco que levará a uma disputa capaz de destruir a sua cidade? E, ainda, como fugir da vilã que ama seu marido e te sequestrou?
Bem-vindo ao maravilhoso mundo de Janete Clair (1925–1983), pioneira da ficção televisiva brasileira, cujo centenário de nascimento se comemora em 25 de abril. Sua primeira novela, O Acusador, foi ao ar em 1964, na TV Tupi. Quando morreu, em 1983, escrevia seu 21º folhetim, Eu Prometo, com a colaboração de Glória Perez.
A combinação entre fantasia e realismo social era a característica principal de suas tramas, sempre muito bem armadas e marcadas pela emoção e o romantismo. As histórias eram repletas de suspense e reviravoltas, mas, quase sempre, tinham um final feliz.
“Ela dizia que não tinha responsabilidade com a realidade, e sim que queria criar sonhos”, diz a atriz Elizabeth Savalla, que trabalhou com a escritora em duas novelas, O Astro (1977) e Pai Herói (1979). “‘Quer realidade?’, ela brincava, ‘veja o Jornal Nacional’.”

Nenê Bonet. Janete Clair. Editora Instante (240 págs., 74,90 reais) – Compre na Amazon
O estilo janetiano de estruturar um folhetim nasceu de sua própria experiência e intuição. Vinda do rádio, onde foi locutora, atriz e roteirista, escreveu novelas para a TV Tupi antes de chegar à TV Globo, em 1967.
Aquele era um momento no qual a televisão estava se sedimentando como indústria no País e buscava maneiras de fidelizar o público. A telenovela, ao se tornar diária, graças ao surgimento do videoteipe, na década de 1960, tornou-se uma ferramenta poderosa para isso. E Janete tinha especial habilidade para lidar com essa ferramenta.
A história de sua entrada na Globo é bastante conhecida. Em 1967, o ator Emiliano Queiroz escrevia a novela Anastácia, a Mulher Sem Destino e, ao criar centenas de personagens, foi se enredando numa trama confusa que, além de sair cara para a emissora, patinava na audiência. Janete era um nome em ascensão e a cubana Glória Magadan, toda poderosa do canal, chamou a novelista e disse: “Tenho um abacaxi”.

Influência perene. O Astro (2011) e Selva de Pedra (1986) são duas das novelas da autora a ter remakes. Apenas a Globo refilmou cinco de suas criações – Imagem: Arquivo/TV Globo
Depois de ler os cerca de 50 capítulos escritos e gravados, Janete não teve dúvida: deveria recomeçar do zero. Para isso, inventou um terremoto que matou quase todos os personagens, exceção feita a quatro deles. No dia seguinte, o capítulo iniciava com o letreiro “20 Anos Depois”. E ela começava a fazer história na televisão.
Esse é só um exemplo da competência e da criatividade da escritora, cuja forma de narrar ajudou a sedimentar o gênero e nele permaneceu. “Se cortarmos algumas tramas paralelas das novelas de Janete, deixando-as mais enxutas, elas são, praticamente, o mesmo formato das séries de hoje”, diz Mauro Alencar, doutor em Teledramaturgia pela USP, e responsável pela adaptação para romance de duas novelas de Janete, Selva de Pedra e Pecado Capital (Editora Globo).
Mauro Ferreira, autor da biografia Nossa Senhora das Oito: Janete Clair e a Evolução da Telenovela no Brasil (Editora Mauad), que detalha cada uma de suas novelas, destaca a capacidade da escritora de inventar histórias em cima de história e de usar novas tramas para superar adversidades.
No início da década 1970, por exemplo, o departamento de censura do governo militar encrencou com o casamento do personagem Christiano (Tony Ramos), em Selva de Pedra (1972). O problema era que, embora a mulher dele fosse dada como morta, o público sabia que ela estava viva. Para os censores, se levasse ao ar o casamento de Cristiano com Fernanda (Dina Sfat), a Globo apresentaria um caso de bigamia.
“Janete não se lamentou. Inventou um novo gancho”, conta Ferreira. “Fernanda é abandonada no altar e começa a perseguir o ex-futuro marido para se vingar. A novela tornou-se mania nacional e a audiência foi tão alta que chegou a ter picos de 100%.”
“As novelas de hoje em dia continuam sendo repletas de reviravoltas e ganchos janetianos”, afirma Alcides Nogueira
Mas os enfrentamentos com a censura nem sempre tiveram final feliz. Fogo Sobre Terra (1974), que questionava o lema do progresso a qualquer custo ao mostrar a desapropriação de toda uma cidade para a construção de uma barragem, foi mutilada ao ponto de a autora dizer que os capítulos não faziam mais sentido.
“As novelas dela tocavam em questões políticas e, por isso, ela realmente teve dificuldades com a censura”, diz Ferreira, citando, como outro exemplo Irmãos Coragem (1970), passada em uma cidadezinha do interior dominada por um coronel desonesto e violento. Foi, inclusive, com Irmãos Coragem que a Globo alcançou pela primeira vez a liderança no horário nobre.
Casada com o dramaturgo e novelista Dias Gomes (1950–1983), autor de O Bem-Amado (1973), Janete vivia no Rio de Janeiro e escrevia em casa. Enquanto Gomes criava as novelas a serem exibidas às 22 horas – que, por terem menor audiência, ofereciam mais brechas para que se lidasse com questões políticas –, Janete fazia as “novelas das 8”, transmitidas na sequência do Jornal Nacional e voltadas a um público mais amplo.
Não era raro que Janete fosse criticada pelos intelectuais e pela imprensa por ser, supostamente, alienada. Mas, como pontua Laura Mattos, autora de Herói Mutilado: Roque Santeiro e os Bastidores da Censura à TV na Ditadura (Companhia das Letras), isso, definitivamente, não correspondia à realidade.
“Dentro do que era possível fazer naquele momento, ela era muito crítica à realidade social”, diz Laura. “Ela sofria uma patrulha ideológica tanto da ditadura quanto da esquerda. E mais: uma das coisas que a levavam a ser duramente criticada e diminuída era o fato de ser mulher e muitas vezes lidar com assuntos ligados ao universo feminino.”
Renata Dias Gomes, neta de Janete e roteirista de novelas, reforça essa leitura: “Ela foi muito censurada por suas pautas políticas”. Renata diz ainda que a avó sempre pregou a libertação da mulher. “Embora fosse uma romântica, que acreditava no final feliz, ela defendia o direito de as mulheres trabalharem e serem independentes, como ela era na vida.”

Vida familiar. Janete foi casada com o também novelista Dias Gomes, com quem teve uma filha, Denise Emmer – Imagem: Acervo Pessoal Família Dias Gomes
O único romance publicado pela Janete, Nenê Bonet (1980), é basicamente sobre isso. A protagonista é uma mulher que, para escapar de um casamento infeliz, se refugia em um bordel de luxo, no Rio dos anos de 1920. O marido, ao descobrir onde ela está, consegue interná-la numa clínica psiquiátrica.
Publicado, semanalmente, na revista Manchete antes de virar livro, Nenê Bonet ganhou uma reedição especial, pela Instante, em comemoração do centenário da autora. O volume traz textos de Denise Emmer, escritora e filha de Janete e Dias Gomes, e de Mauro Alencar.
Avançado para as questões sociais, seu olhar era também ousado e original em termos de linguagem. “Ao lado de Daniel Filho (diretor de várias novelas da autora) e Boni (José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, diretor da Globo à época), ela deu a brasilidade ao folhetim”, diz Alencar.
Antes de Janete, as novelas se passavam em lugares exóticos e tinham diálogos pomposos e interpretações empostadas. Depois do sucesso de Beto Rockfeller, de Bráulio Pedroso, na Tupi, a Globo resolveu modernizar seus folhetins. Para isso, contou com a ajuda de Janete. Véu de Noiva (1969) é considerado um marco dessa mudança.
Cabe lembrar que Janete teve dois colaboradores que carregariam parte de seu estilo por muitos anos ainda: Gilberto Braga (1945–2021), autor de sucessos como Vale Tudo (escrita em parceria com Agnaldo Silva e Leonor Bassères), que está neste momento com um remake no ar, e Glória Perez, também responsável por títulos de grande audiência.
Alcides Nogueira, que assinou, com Geraldo Carneiro, o remake de O Astro (2011), diz ser essa tão falada “modernidade” de Janete que leva suas novelas a, ainda hoje, despertar interesse.
“Não foi difícil adaptar Janete, pois ela e Ivani Ribeiro (autora de Mulheres de Areia e A Viagem) foram as primeiras a trabalhar com essa estrutura que temos até hoje”, diz Nogueira. “As novelas de hoje em dia continuam sendo repletas de reviravoltas e ganchos janetianos.”
Atualmente, conta Nogueira, os autores costumam colocar um “gancho” – momento suspenso para prender a atenção do público – no final do capítulo de cada dia. Janete criava um gancho desses por bloco.
O remake de O Astro foi um sucesso. Ganhou o Emmy Internacional e manteve uma boa média de audiência para o horário em que foi exibida, às 22 horas.
A primeira versão da novela tinha sido marcada por uma mobilização de parte do País para tentar descobrir quem havia matado o patriarca Salomão Hayala. Depois do último capítulo, que colocou o País diante da televisão, Carlos Drummond de Andrade (1902–1987) escreveu uma crônica na qual, elogiosamente, chamou Janete de “usineira de sonhos”, mas também clamou as pessoas a “cuidar da vida, que o Brasil está lá fora esperando”.
O Astro foi o quinto remake de Janete produzido pela Globo, que, antes, tinha feito Selva de Pedra (1986), Direito de Amar (1987), baseado numa radionovela, Irmãos Coragem (1985) e Pecado Capital (1998). O SBT fez Vende-se Um Véu de Noiva (2009), inspirado na radionovela.
Chegou a ser noticiado, em 2023, que a MAX faria um remake de Pai Herói. Embora o projeto não tenha sido confirmado, as derivações de Janete já chegaram ao streaming, em produções originais das plataformas estrangeiras, como Beleza Fatal (MAX) e Pedaço de Mim (Netflix).
O GloboPlay, por sua vez, tem uma vasta oferta de Janete Clair – pura. Estão disponíveis na íntegra, na plataforma, os originais de Pai Herói, Pecado Capital (1975) e O Astro; todos os remakes feitos pela Globo; e trechos de Fogo Sobre Terra, que é parte do projeto Fragmentos, com obras que não foram preservadas na íntegra.
Parte do percurso da dramaturga é também recuperado na exposição Janete Clair 100 Anos da Usineira dos Sonhos, em cartaz no Museu da Imagem e do Som (MIS), do Rio de Janeiro, a partir de 28 de abril.
“Estará disponível um material muito raro, que pertence à família, como textos escritos à mão, sinopses originais, capítulos com marcações da censura”, diz sua neta Renata.
Janete morreu aos 58 anos, de câncer, e seu velório levou milhares de pessoas ao Theatro Municipal do Rio de Janeiro, comprovando, nas palavras de Mauro Alencar, ser ela a novelista “mais bem-amada do Brasil”. •
Publicado na edição n° 1359 de CartaCapital, em 30 de abril de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A bem-amada’