Faz dois dias que Jéssica de Mello, 34 anos, está sem água no barraco onde mora. Ela corre atrás de caminhões pipa que passam pela ocupação Farroupilha, em Porto Alegre, para cuidar dos três filhos desalojados desde 3 de maio de 2024, quando a enchente histórica que alagou Porto Alegre expulsou todos de casa.
“Saímos com a ajuda de amigos carregando uma TV e a roupa do corpo. Perdemos documentos, perdemos tudo”, diz Mello à DW.
Quando a água ainda estava na altura dos joelhos, Mello diz ter ligado para a Defesa Civil pedindo resgate. Por causa de um câncer, ela só tem um pulmão e não pode carregar peso. A resposta foi que deveria aguardar sete dias.
Teoricamente, a antiga casa da família estava numa área “à prova” de grandes enchentes. O dique Sarandi, avistado da janela, barraria a água em excesso como parte do sistema de proteção contra cheias de Porto Alegre, projetado para suportar inundações de até 6 metros de altura causadas por cheias do rio Jacuí e Guaíba.
“Está sendo muito difícil. Depois da enchente, teve um grande incêndio na ocupação e minha casa só não pegou fogo porque a igreja de concreto segurou as chamas”, diz Mello, que aguarda a liberação de um apartamento de um programa de moradia popular.
Sistema de proteção vulnerável
A construção do sistema de proteção contra cheias começou na década de 1970 como resposta a uma outra grande inundação que, até então, era considerada a mais destrutiva da história. Em 1941, a água chegou a 4,76 metros de altura e desabrigou mais de 70 mil habitantes, cerca de 25% da população de Porto Alegre à época, apontam informações da prefeitura.
A fortaleza construída para poupar a capital do Rio Grande do Sul de uma nova calamidade tinha 68 quilômetros de diques, 14 comportas de vedação e 19 casas de bombas. O chamado muro da Mauá, de quase três quilômetros de extensão e seis de altura – três abaixo da terra – fechava o anel de proteção.
Em maio de 2024, em seu teste mais importante, o sistema sucumbiu diante dos 5,3 metros de inundação – abaixo da cota máxima de 6 metros. O centro histórico e diversos bairros ficaram submersos, inclusive onde Mello residia. À época, especialistas ouvidos pela DW apontaram a falta de manutenção e o descaso público como principais causas para a falha.
“Até hoje, algumas comportas estão sem as chapas que bloqueiam a água”, afirma Fernando Dornelles, professor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Um estudo de revisão, contratado pela prefeitura, está em andamento para apontar o que deu errado e como o sistema deve ser reconstruído. Mas alguns resultados prévios já são conhecidos entre os especialistas da área.
“Já foram descobertas várias ligações de drenagem para fora do sistema, o que não pode”, afirma Dornelles. A drenagem de água da chuva de dentro da área protegida tem que sair via casas de bomba. Se houver conexão direta, como o que foi encontrado, basta o rio do lado de fora do sistema de proteção subir para que o refluxo inunde o que está do lado de dentro, explica o engenheiro civil.
Estudo para reconstrução
Vicente Perrone, diretor do Departamento Municipal de Água e Esgoto (DMAE), afirma que o estudo contratado foi dividido em nove etapas e ficará pronto em meados de 2026. Ele revê os novos parâmetros de volume de chuvas e sua frequência para propor um novo sistema de proteção contra cheias.
“Ele vai nos ajudar a bolar alternativas mais modernas para o sistema, sugerir áreas prioritárias e métodos construtivos para regiões que não estão cobertas pelo sistema”, explica Perrone, citando soluções como diques e casas de bombeamento.
Questionado pela DW sobre a falta de manutenção adequada no anel de proteção projetado na década de 1970, o diretor do DMAE diz que não havia clareza se o conjunto das estruturas tinha capacidade de receber o volume de chuva registrado na ocasião.
“Não tem que buscar culpados ou achar motivos políticos para isso. A gente precisa entender as razões de tudo e o que aconteceu para tomar atitudes de formas orquestradas para que qualquer chuva não cause os problemas que a gente teve”, responde.
Acima de Perrone no comando de Porto Alegre, o prefeito Sebastião Melo (MDB) defendia a derrubada do muro da Mauá, parte do sistema de proteção, desde 2019. Em outubro de 2024, depois das enchentes, ele foi reeleito.
Depois da inundação, órgãos como a Defesa Civil, secretarias e Câmara de Vereadores passaram a trabalhar de forma mais coordenada, diz Perrone. O diretor reconhece que o sistema ainda tem fragilidades, mas afirma que está perto de alcançar uma tranquilidade na sua operação.
“A gente tem pressa. Temos uma inquietude em organizar as licitações, fazer da forma mais rápida e buscar recursos porque estamos falando de bilhões de investimento, e hoje o Dmae não conta com esse caixa”, afirma.

Moradores de Porto Alegre usam estragos da enchente para protestar contra a gestão do prefeito Sebastião Melo.
Foto: Anselmo Cunha / AFP
Ajuda da natureza
Diante da urgência da reconstrução em pontos da cidade após as enchentes, Heverton Lacerda, presidente da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan), diz não entender como prefeitura e Assembleia Legislativa liberaram 27 milhões para um evento privado em Porto Alegre, o South Summit, que cobrava ingressos de até 5 mil reais.
“Como é que estão dando dinheiro público para investir em um evento privado e os projetos da reconstrução não estão andando como a gente imagina?”, questiona Lacerda, que protocolou junto a outras entidades da sociedade civil uma ação no Ministério Público e Tribunal de Contas do estado para investigar o evento que ocorreu em meados de abril.
Outro problema apontado pela Agapan é a exclusão da natureza no projeto de reestruturação após a tragédia. A regeneração de sistemas de proteção de natural, como a recomposição das matas nas encostas de morros e margens dos rios, seria fundamental para evitar novas enchentes.
“São estratégias para firmar a terra, evitar que a água corra com grande velocidade, evitar a erosão das lavouras para dentro dos rios fazendo com que fiquem assoreados”, detalha Lacerda, expondo os altos gastos em andamento para o desassoreamento de rios.
Para a Agapan, mesmo depois dos impactos vividos em Porto Alegre com as chuvas de 2024, a visão sobre governar o estado não mudou. “No conjunto das coisas, parece que o governo está encaminhando bonito. Mas o governo e sua base parlamentar não mudaram nada a pressão que fazem sobre o meio ambiente”, afirma.
Falta de transparência
Fernando Dornelles, professor da UFRGS, diz que é incerto o que pode acontecer na capital gaúcha se muita chuva cair. O estudo de revisão do atual sistema de proteção vai demorar para ser concluído e, quando a prefeitura souber o que fazer, as obras de engenharia devem levar anos.
Já se sabe que o dique do Sarandi, por exemplo, que protegia a região onde Jéssica morava, vai precisar de um alteamento de 1,5 metro. Segundo a prefeitura, a primeira fase da obra foi concluída e será retomada após a remoção das famílias em situação irregular.
“Visto que estamos com vários pontos abertos no sistema, se o Guaíba subir hoje, Porto Alegre vai inundar. Qual é o plano da cidade para se proteger emergencialmente? Uma cheia de 3,5 metros já vai causar um grande problema”, diz Dornelles em entrevista à DW.
A população precisa conhecer o plano, caso ele exista, argumenta o professor. Construir barreiras físicas de emergência não é apenas fazer uma pilha de sacos de areia. “Existe uma técnica para isso. As pessoas precisam estar preparadas, saber quanto de material será necessário, quantas pessoas serão necessárias e em quanto tempo precisam fazer tudo”, complementa.
Heverton Lacerda, da Agapan, concorda. “A gente não sabe se diques, comportas, sistemas de bombas estão funcionando. E se a prefeitura treinou o pessoal para utilizar. Tem pouca informação e não é confiável”, afirma.
À espera de um recomeço
É no barraco improvisado de dois cômodos que Jéssica de Mello cuida do filho de nove anos que sofre de esquizofrenia. Por causa das sequelas deixadas pelo câncer, ela tem dificuldades para trabalhar. O marido dela às vezes faz alguns bicos em reformas de casas. Basicamente, a família sobrevive com doações.
Logo após a enchente, Mello e outras pessoas desabrigadas tiveram uma reunião com o prefeito e ouviram a promessa de que seriam retiradas da vila alagada em no máximo quatro meses. Em dezembro passado, ela foi sorteada num programa de moradia popular, mas o apartamento ainda não foi entregue à família.
“Eu queria sair daqui logo. Meu plano é vender salgados, bolo, trabalhar em algo que eu não precise fazer muito esforço porque só tenho um pulmão. Lá vai ser bom também porque fica bem perto do hospital psiquiátrico onde meu filho faz tratamento e numa parte alta da cidade, acho que não vai ter enchente”, diz Mello à DW.