A morte do Papa Francisco marca o encerramento de um dos pontificados mais simbólicos do pós-Concílio Vaticano II — um tempo em que a Igreja Católica, sob sua liderança, buscou mais uma vez recordar-se do essencial: o Evangelho como ponte, não como muro. Francisco será lembrado como o bispo de Roma que preferiu o título de servo à glória do poder, e que viu na fragilidade humana o caminho mais fecundo para a teologia da misericórdia.
Seu ecumenismo não foi apenas diplomático, mas profundamente evangélico. Ele não buscou a unidade das Igrejas a partir de fórmulas doutrinárias complexas, mas de uma mística do encontro: a certeza de que Cristo precede todos os nossos caminhos e que o Espírito sopra onde quer, inclusive fora dos limites visíveis de Roma. Esse espírito animou seus passos em direção a Constantinopla, Moscou, Genebra, Cairo e Bagdá — sem jamais esquecer os pequenos, os povos indígenas, os migrantes, os esquecidos da história.
Em um ano particularmente simbólico para a cristandade — quando a Páscoa foi celebrada na mesma data por católicos, ortodoxos e outras tradições orientais — e em que se recordam os 1700 anos do Concílio de Niceia (325 d.C.), sua ausência nos eventos jubilares por motivos de saúde evocou, com força, o antigo drama do primeiro bispo de Roma, o Papa Silvestre, que também não pôde comparecer ao Concílio, mas enviou delegados como sinal de comunhão. Francisco, à sua maneira, reviveu esse gesto, demonstrando que a autoridade de Pedro se expressa, muitas vezes, mais no serviço silencioso do que na presença imponente.
As manifestações dos patriarcas orientais sobre sua morte ressoaram como testemunho eloquente de sua capacidade de gerar pontes. O Patriarca Ecumênico Bartolomeu I o recordou como “o irmão do Oriente que Deus deu ao Ocidente”, enquanto o Patriarca copta Tawadros II destacou “o amor concreto aos pobres como verdadeiro caminho de comunhão”. Mesmo o patriarca de Moscou — com quem o diálogo esteve por vezes suspenso por tensões políticas e eclesiológicas — enviou uma nota de condolência tocante, ressaltando a busca do Papa “por uma paz que ultrapassa fronteiras e conflitos”.
O ecumenismo de Francisco não foi ingênuo nem voluntarista. Ele nasceu da escuta profunda do Evangelho, da convicção de que a unidade dos cristãos não é um anexo do apostolado, mas parte de sua própria natureza. Como afirmou no encontro com os líderes cristãos em Bari, “a unidade não é uma estratégia, mas uma exigência evangélica”. Ele revalorizou a dimensão sinodal da Igreja, promovendo encontros de escuta e discernimento coletivo — algo que tem raízes na prática eclesial do primeiro milênio, quando as Igrejas ainda não estavam divididas.
Francisco jamais esqueceu que a Igreja de Cristo nasce do lado aberto de Jesus. E como corpo nascido da entrega, ela não pode se fechar sobre si mesma. Sua eclesiologia pastoral, inspirada em teólogos como Henri de Lubac, Romano Guardini e Yves Congar, compreendia que a missão da Igreja passa por se tornar “hospital de campanha”, lugar de acolhida antes que de julgamento. Nessa chave, seu pontificado insistiu que a fé autêntica não teme a diferença — cultural, religiosa, moral — mas se compromete com ela, sobretudo quando ela vem marcada pela dor e pela injustiça.
Neste sentido, sua voz profética não se calou diante da indiferença global: da Amazônia ao Mediterrâneo, da crise climática às guerras esquecidas, Francisco falou como um pai — mas também como um irmão — dos povos. E fê-lo com gestos: lavando os pés de imigrantes, abraçando leprosos, visitando prisões, indo ao Cazaquistão e à República Democrática do Congo. Sua encíclica “Fratelli Tutti” tornou-se quase um manifesto do humanismo cristão do século 21.
Na aurora deste jubileu e à luz da Páscoa comum, sua morte ressoa como semente lançada à terra. Uma semente de unidade. Uma semente de esperança. Francisco não foi apenas um reformador. Foi um sinal. E como todo sinal evangélico, sua potência não está no poder que acumulou, mas nas vidas que tocou. No silêncio que escutou. Nos muros que derrubou. E, acima de tudo, na ponte que se tornou.
* Laio Correia Morais é católico, advogado e chefe de Gabinete do Ministério da Fazenda
Artigo publicado inicialmente no ICL Notícias