No início de abril, a deputada federal Erika Hilton (PSOL-SP) enfrentou uma série de situações transfóbicas criadas pelo governo dos Estados Unidos que, na prática, impediram que ela viajasse ao país para participar de uma conferência sobre o Brasil, patrocinada pela Universidade de Harvard e pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT).

Primeiro, questionaram o caráter “oficial” de sua visita, como representante do Congresso brasileiro. Depois, emitiram o seu visto com seu nome e foto, que atestam que é uma mulher, mas com o sexo constando como “masculino”. Semanas depois, a mesmíssima coisa ocorreu com a também deputada federal Duda Salabert (PDT-MG).

Ambas são mulheres trans, com seus nomes sociais e identidade de gênero já retificados em seus RG´s, e o fato da não aceitação disto pelo governo norte-americano é um indicativo não só da intolerância e desrespeito desse Estado burguês em relação à transgeneridade, como também caracterizam um ataque à soberania de outros governos onde, em função de nossas lutas, conseguimos direitos mínimos, mas importantes, como o reconhecimento de nossa identidade pelo Estado.

Uma situação que, no caso dos Estados Unidos, ganhou dimensões catastróficas depois da eleição de Donald Trump que, ainda antes da posse, em 24 de dezembro, prometeu pôr fim àquilo que ele chamou de “loucura transgênero”, o que passou a fazer já no primeiro dia de mandato, quando assinou um decreto presidencial afirmando que o país reconhece apenas “dois sexos, masculino e feminino, considerados imutáveis desde o nascimento”.

Algo que tem repercutido de forma violentamente negativa no interior do próprio país, com a humilhação e perseguição de pessoas trans nos órgãos e cargos públicos e no seu cotidiano, a exemplo da atriz Hunter Schafer, da aclamada série de TV “Euphoria”, que, há poucas semanas, ao ter que renovar seu passaporte, também teve seu gênero alterado para “masculino”.

Um sistema que nos vê como “mercadorias” descartáveis

Evidentemente, o que possibilita que coisas como estas aconteçam, até mesmo com pessoas como Érika Hilton, uma parlamentar trans alinhada com uma política de conciliação de classe, ou uma atriz mundialmente conhecida, é o fato de vivermos em uma sociedade em que as vontades dos grandes donos do mercado ditam as políticas públicas, as leis e a forma como elas aplicadas (ou não).

Leis irracionais que, pautadas nos interesses e valores do mercado capitalista e dos bilionários que o controlam, não incluem a humanização de pessoas trans; mas, quando querem e “precisam” (ou seja, quando lhes interessa explorar a mão de obra “barata” e marginalizada), adotam políticas de “inclusão parcial” (paralelas à manutenção da exclusão da enorme maioria), apenas para tentar nos usar como fontes de lucro.

E é por isso mesmo que as leis que eventualmente garantem nossos direitos são marcadas por “idas e vindas”, como está acontecendo neste momento. Em síntese, elas respondem à própria “lógica” das mercadorias no sistema capitalista, que condiciona tudo aos interesses políticos da classe dominante e varia de acordo com seus interesses.

Uma lógica que, por exemplo, ao mesmo tempo que segrega e marginaliza a população trans, auxilia na manutenção e na obtenção de lucros milionários por parte de um setor do “mercado” que explora os corpos trans, principalmente os das mulheres trans: o da prostituição e da pornografia.

A crise do capitalismo e a intensificação dos ataques da ultradireita

Diante de ataques como os que estão sendo feitos pelo governo Trump é preciso reafirmar que a manutenção da discriminação e da segregação da população trans auxiliam no processo de divisão interna da classe trabalhadora.

Ao tentar separar a classe trabalhadora cisgênera (que se identifica com o sexo estabelecido no nascimento) dos trabalhadores e trabalhadoras transgêneros, a burguesia sempre tem como objetivo impor divisões políticas e morais dentro da própria classe trabalhadora, instaurando conflitos e disputas, algo importante para classe dominante, principalmente em momentos de crise, quando a disputa por empregos se acentua.

Também são em momentos de crise que o setor mais “irracional”, conservador e fundamentalista da burguesia, sua extrema direita, vem à tona, procurando esconder e mascarar as causas do caos social em que vivemos com discursos e práticas que responsabilizam e culpabilizam os setores historicamente marginalizados (ou as pífias políticas públicas criadas para minimizar a discriminação, resultantes de décadas de lutas) pela falta de perspectivas e oportunidades para o conjunto da população.

E a armadilha é sempre a mesma: dizer que os supostos custos financeiros para incluir, minimamente, a população trans são “gastos desnecessários” e “desperdícios” que acabam sendo jogados para as costas das pessoas “decentes” e “normais” ou, ainda, afirmar que os “benefícios” concedidos a estes setores (imigrantes, negros e negras, povos originários, pessoas LGBTI+, em particular) são responsáveis pela precarização ou perda de direitos trabalhistas e socias pelo conjunto da classe trabalhadora.

Para tal, como temos visto mundo afora, a ultradireita tem utilizado todos os meios que tem às mãos; a começar pelas redes sociais, mas também os governos, parlamentos e instituições públicas (principalmente em áreas como a Educação e a Saúde) – como nos Estados Unidos, em vários países da União Europeia, na Argentina ou no Equador –, para propagar ideologias e valores conservadores.

Neste processo, lamentavelmente, muitas vezes esta ultradireita se apoia em preconceitos e ideologias já cristalizados nas cabeças de trabalhadores e trabalhadoras, pregando absurdos, como a ideia de que as “ideologias de gênero” visam transformar toda população cisgênero e hétero em LGBTI+, quando sabemos que, na verdade, os poucos avanços que foram feitos nesta área visam apenas desenvolver políticas públicas para enfrentar a discriminação e educar os filhos da classe trabalhadora para não reproduzir as ideologias discriminatórias criadas e propagadas há tempos.

O ataque a uma de nós e um ataque contra toda a classe trabalhadora

O episódio envolvendo a deputada Érika Hilton, que jogou o holofote sobre os demais exemplos citados acima, demonstra como, em última instância, as políticas institucionais do Estado burguês não acolhem as necessidades da população trans, já que, como dizia Lênin, na democracia burguesa, todas e quaisquer liberdades democráticas conquistadas assumem, sempre, um caráter temporário, desvirtuado e incompleto, sendo varridas em momentos de crise ou de acordo com os interesses da classe dominante.

Além disso, o episódio também expõe o nível de transfobia dos Estados Unidos sob o governo Trump e seus atuais comparsas, a começar por Elon Musk que, vale lembrar, renegou uma de suas filhas, em função de sua transgeneridade.

Uma transfobia ultraconservadora e fundamentalista que, ainda, carrega altas doses de arrogância e petulância imperialista, já que tenta se sobrepor à soberania de outros países, como o Brasil, que reconhece a identidade de gênero das pessoas trans, uma importante conquista que tivemos, depois de anos de lutas apoiadas, inclusive, pela classe trabalhadora e outros setores marginalizados e discriminados historicamente, como negros e mulheres.

Por isso mesmo, a solidariedade à deputada é fundamental. A defesa de seus direitos é, também, uma luta de toda a classe trabalhadora. Não só contra a transfobia, mas também contra a arrogância da principal potência capitalista e imperialista.

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Last Update: 23/04/2025