A tentativa do governo dos EUA de deter, através do aumento explosivo de tarifas, o acelerado progresso da China nas últimas décadas, intensificou o debate sobre o fim da hegemonia norte-americana na geopolítica global. Apesar do estilo atabalhoado e arrogante de Trump, vale lembrar que o esforço de recuperar a indústria norte-americana, principalmente via tarifas, é o seu programa desde sempre. Durante a última campanha eleitoral, ele deixou claro a intenção de desenvolver ações para a retomada da indústria norte-americana, principalmente por meio do aumento de tarifas. O atual presidente dos EUA representa setores do capital norte-americano que, predominantemente, não ganham dinheiro com a globalização, o que também explica a iniciativa.

O sentimento de que a China irá superar os EUA, não surgiu com o MAGA (na tradução, “Tornar a América Grande Novamente”), slogan fortemente associado a Donald Trump. Na realidade, os EUA adotam medidas para contenção da China há muitos anos. Barack Obama, por exemplo, apesar do tratamento cordial, que evitou uma guerra comercial aberta, tomou uma série de medidas contra a China, chamadas eufemisticamente de “política de contenção”. Entre 2008 e 2012, em pleno governo de Barack Obama, Washington adotou uma série de tarifas sobre a importação de bens chineses, que foram, inclusive, questionadas pela China na Organização Mundial do Comércio (OMC). Reclamação esta que, obviamente, não deu em nada.

Da mesma forma, durante o governo de Joe Biden, os Estados Unidos implementaram rigorosas medidas comerciais, diretamente contra os chineses. Em maio de 2024, por exemplo, a administração Biden anunciou um aumento significativo nas tarifas de importação sobre uma variedade de produtos provenientes da China, com o objetivo declarado de proteger a indústria americana. O aumento nas tarifas incluía: veículos elétricos, baterias de lítio, semicondutores, painéis solares, aço e alumínio. ​Na realidade, as hostilidades mais graves começaram com o governo Obama, aumentaram no primeiro governo Trump e cristalizaram durante o governo Biden, com uma agressão, principalmente, nos campos tecnológico e militar.

Os EUA precisam desesperadamente deter o desenvolvimento da China. A produção industrial do gigante asiático alcançou US$ 4,8 trilhões em 2024, contra US$ 2,4 trilhões nos EUA. Ou seja, a China já produz o dobro dos EUA, em manufaturas, sendo, de longe, a maior potência industrial do mundo. E com o detalhe de que Pequim vem investindo cada vez mais em bens de alta tecnologia (química fina, inteligência artificial, fármacos, engenharia de precisão etc.). Esse tem sido um processo muito veloz: em 2001, os EUA respondiam por 28,4% da produção industrial global; em 2023, essa participação tinha caído para 17,4%. Os dados não são muito precisos, mas a China chega a formar anualmente pelo menos o dobro de engenheiros que os Estados Unidos formam, o que impulsiona seu desenvolvimento tecnológico e sua capacidade de inovação e competência em setores localizados na fronteira tecnológica.

Se calcula que o conglomerado produtivo asiático, que, além da China, inclui Japão, Coreia do Sul, Sudeste Asiático e Índia, passou a somar entre US$ 30-35 trilhões de PIB, ultrapassando a produção americana isoladamente. O PIB total da ASEAN (Associação de Nações do Sudeste Asiático), composta por 10 países, está estimado em US$ 4,2 trilhões para 2025, enquanto o PIB ajustado pela Paridade do Poder de Compra (PPC) deve alcançar US$ 13 trilhões. O conglomerado asiático é essencial nas cadeias globais de produção, exportação de alta tecnologia, indústria de bens de consumo, manufatura, serviços etc. Liderado pela China, esses países vêm se destacando também, em áreas de vanguarda como inteligência artificial, energias renováveis e semicondutores.

Esse bloco se destaca também por um outro aspecto chave, que são as complementariedades econômicas: a China como potência industrial, Índia em tecnologia de serviços, Sudeste Asiático em manufatura, Coreia do Sul e Japão em tecnologia e inovação. Claro que os aspectos econômicos estão condicionados pela geopolítica. Os EUA têm relação muito próxima com vários países asiáticos, como Japão, Coreia do Sul, Filipinas, Tailândia etc. Inclusive militar, pois a proporção de bases militares dos Estados Unidos na Ásia-Pacífico em relação ao total mundial é de aproximadamente 25%, isto é, um quarto de todas as cerca de 800 bases americanas fora do país estão localizadas nessa região. Sobre esse tema, os que classificam a China como uma nação imperialista deveriam atentar para um detalhe: o país possui, atualmente, apenas uma base militar fora do território nacional, e ainda assim, com objetivos humanitários. É uma base militar localizada em Djibuti, no Chifre da África, que foi inaugurada em 2017 visando missões antipirataria e humanitárias.

Ainda que a China seja incomparável em termos de escala de produção industrial, o país já disputa com países como Alemanha, não apenas em produção de bens baratos, mas também em áreas de tecnologia de ponta e inovação industrial. Empresas globais, símbolos sagrados do capitalismo imperialista, mantém suas maiores plantas industriais em território chinês. É o caso da Apple, considerada um padrão de sucesso pela inovação e alcance mundial de seus produtos, que mantém a maior parte dos dispositivos como iPhones, iPads e MacBooks, produzida na China. É o caso também da General Motors (GM), uma das maiores e mais tradicionais montadoras dos Estados Unidos, que opera diversas joint ventures (como a SAIC-GM) no país, fabricando milhões de veículos para o mercado chinês e para exportação. Pode-se mencionar várias outras empresas gigantescas, como a Nike, que utilizam a China como base de sua produção, e a partir dessas plantas, atendem mercados no mundo todo.

O modelo chinês de política econômica conseguiu resultados nunca vistos na história do desenvolvimento econômico mundial, que podem ser sintetizados em um dado concreto: em cerca de 30 anos, esse modelo impulsionou a renda per capita de menos de US$ 1.000 para mais de US$ 13.000 (em PPC, chega a US$ 16.000). Curiosamente, os ingredientes mais importantes dessa surpreendente receita de progresso – controle da economia pelo Estado, sistema financeiro estatal e câmbio controlado – são apontados pelos analistas econômicos ocidentais, como “problemas” e “limitações” do modelo chinês.

Como toda economia complexa e dinâmica, a chinesa enfrenta também dificuldades importantes. Há neste momento uma desaceleração nos investimentos imobiliários e em 2023, as vendas de propriedades diminuíram 16,5% em relação ao ano anterior. Fora dos maiores centros urbanos há excesso de imóveis e queda na demanda, fatores ligados, dentre outras coisas, ao envelhecimento populacional e à desaceleração da migração interna. O setor, que já representou 12% do PIB na China, pode encolher para até 5%, segundo algumas análises. Uma outra dificuldade é a desaceleração dos investimentos em infraestrutura, fator de impulsão, ao longo de décadas, da economia chinesa. Os dados revelam que, gradativamente, a economia vem diminuindo a dependência desse setor para alavancagem do PIB.

Nesse contexto, a decisão de Trump, de impor super taxas nas importações de produtos chineses, atinge em cheio um dos motores fundamentais do crescimento desse país. As exportações sempre foram um dos pilares fundamentais do dinamismo econômico chinês. Há cálculos que apontam que tarifas de 60% ou mais poderiam reduzir o crescimento do PIB chinês em até 2,5 pontos percentuais, o que pode significar uma queda pela metade, ou mais, do crescimento previsto para este ano. Mesmo considerando o arsenal de instrumentos de economia política que o governo chinês dispõe para responder aos ataques (que é muito considerável), não há como negar que a medida do governo americano, se mantida do jeito que está, atinge uma das colunas vertebrais do desenvolvimento do país.

Desde 2023, o consumo interno vem se destacando como o novo “motor” da economia chinesa. Dados revelam que, no ano passado, o consumo interno respondeu por 44,5% do crescimento, acima do setor de infraestrutura e das exportações. Para um crescimento do PIB de 5% no ano passado, o consumo contribuiu com 3,5 pontos percentuais, bem acima das exportações e investimentos. Já como uma adequação às crescentes pressões do governo norte-americano, que vinha ainda na gestão Joe Biden, para este ano o governo chinês estabeleceu uma meta de crescimento de 5%.

Com uma balança comercial que, no ano passado, possibilitou US$ 1 trilhão de superávit para a China com o restante do mundo, a elevada dependência do setor externo passa a ser um problema. Principalmente a partir dos ataques do governo Trump. A aposta no crescimento do mercado interno é uma oportunidade para melhorar a distribuição de renda e a China já está operando isso, como mostram os indicadores. Numa economia centralmente planificada e com planejamento de longo prazo, como é o caso, está sendo possível desenvolver ações que melhoram gradativamente o perfil de distribuição de renda.

O tarifaço promovido por Donald Trump, foi dirigido principalmente à China, acusada de ser a responsável pelas imensas fragilidades dos Estados Unidos, como a desindustrialização, desigualdade de renda e a perda dos empregos industriais. Trata-se de uma questão de fundo. A ascensão de Trump ao governo dos EUA, é fruto direto de uma contradição do sistema americano, praticamente sem solução: nas últimas décadas, para manter a lucratividade das grandes corporações multinacionais, a política adotada levou à decadência da economia nacional, com perda da indústria, aumento do desemprego e imensa concentração da riqueza nacional.

O surgimento de movimentos como o MAGA é fruto dessa contradição. Por isso, nas últimas eleições norte-americanas, uma parcela expressiva dos trabalhadores americanos votou no representante do Partido Republicano. Ao tentar reindustrializar o país e recuperar empregos, a política de Trump acaba entrando em choque com as grandes corporações, que se tornaram inimigas diretas da população dos EUA, trabalhadores e classe média. É muito difícil que a política tarifária de Trump decole, pois as pressões internas são imensas e o tempo é escasso. Além disso, o antagonista move as peças do tabuleiro com astúcia e cuidado, típicos de uma civilização, que ao longo de 5.000 anos enfrentou toda sorte de dificuldades.

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Last Update: 23/04/2025