O evangelho segundo os pobres: por que mataram o Papa Francisco
por Reynaldo Aragon e Sara Goes
A morte do Papa Francisco, anunciada em 21 de abril de 2025, marca não apenas o fim de uma vida dedicada à fé e à justiça social, mas também representa uma perda simbólica imensurável para o mundo. Seu falecimento encerra uma trajetória profundamente comprometida com a ética do Evangelho, e, dia após dia, por uma guerra cultural que operava nos subterrâneos da comunicação global. Desde os primeiros dias de seu papado, Francisco foi alvo de uma sofisticada máquina de desinformação e difamação que articulava think tanks ultraconservadores, setores da mídia corporativa, igrejas fundamentalistas e os novos exércitos digitais do neofascismo global. Seu pecado foi ter ousado recolocar o cristianismo no caminho da compaixão, da dignidade humana e da defesa dos pobres.
A velha mídia, em seus obituários mornos e protocolados, tenta agora reescrever o papel histórico de Francisco. Reduzem-no a um “líder espiritual gentil”, “homem de fé humilde” e “voz do diálogo”, omitindo deliberadamente seu vigoroso enfrentamento ao sistema financeiro global, suas duras críticas ao apartheid israelense e sua incansável denúncia das guerras, da desigualdade e do colonialismo. Apagam, com isso, sua aliança simbólica com os povos do Sul Global e com líderes populares como o presidente Lula, uma aliança que unia fé e política em torno da justiça social, da soberania e da autodeterminação dos povos. Ao moldá-lo em gesso, como um santo inofensivo, tentam sepultar com ele a potência de um Evangelho revolucionário que desafia as estruturas de dominação.
Francisco não foi apenas vítima do tempo, foi vítima do nosso tempo. Um tempo em que a guerra cultural transformou os algoritmos em campos de batalha e a fé em arma de propaganda. Um tempo em que líderes espirituais só são tolerados se se curvarem ao altar do capital ou do conservadorismo bélico. Francisco, ao contrário, encarnava a ética radical da compaixão, da inclusão e da denúncia, e por isso foi odiado. Por isso foi desconstruído em vida. Foi esvaziado em sua imagem pública, domesticado nos jornais, atacado por teólogos do ressentimento e falsos profetas do mercado. Foi tachado de comunista por seus opositores e de herege pelos que haviam transformado a fé num negócio das “celebridades da devoção”, como menciona em um artigo profético, Paola Jochimsen.
Mas essa operação que tentava limar sistematicamente seu legado falhou em sua essência: porque a memória de Francisco está viva, enraizada no coração dos que ainda lutam por um mundo mais justo, mais humano e mais livre.
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1. Francisco e a retomada do cristianismo anticolonial
A escolha do nome “Francisco” já era, em si, um manifesto. Quando Jorge Mario Bergoglio, jesuíta, assumiu o papado em 2013, rompendo séculos de eurocentrismo com sua origem latino-americana e assumindo o nome do santo de Assis, aquele que renunciou à riqueza para viver entre os pobres, sinalizava que seu papado não seria apenas uma continuidade estética, mas uma ruptura profunda. Era o prenúncio de uma guinada civilizacional na Igreja Católica. Um chamado ético, teológico e político: resgatar a espiritualidade do Cristo das periferias, dos esquecidos, dos miseráveis, dos migrantes, dos palestinos, dos indígenas, dos torturados, dos explorados. Francisco resgatava, portanto, não apenas uma figura histórica, mas uma linhagem anticolonial de cristianismo que se inscreve contra a dominação.
O Papa se insurgiu contra o modelo global de exclusão e contra a naturalização da miséria. Denunciou a financeirização da vida, criticou frontalmente o sistema neoliberal e os mecanismos de opressão do capital. Condenou a “economia que mata”, expôs o colonialismo cultural, defendeu a autodeterminação dos povos e, em diversas ocasiões, posicionou-se ao lado das lutas sociais. Não foram apenas palavras. Francisco promoveu encontros com movimentos populares, recebeu líderes da esquerda global, como Evo Morales e Lula, e abriu espaço dentro do Vaticano para ouvir quem há séculos era mantido do lado de fora dos palácios: camponeses, trabalhadores precarizados, ambientalistas, indígenas, mulheres. Ele transformou a própria estrutura do poder vaticano ao descentralizá-lo em nome da escuta, da compaixão e da justiça.
Mas foi justamente por isso que se tornou um alvo. O cristianismo anticolonial que Francisco representava ameaçava uma teologia imperial, branca, patriarcal e excludente que se aliou, historicamente, aos donos do poder. A Igreja que ele representava era incompatível com os projetos do “cristofascismo” que se alastram pelo mundo. Era, de fato, seu oposto: onde os fundamentalistas pregam o castigo, ele pregava a misericórdia; onde pregam a guerra santa, ele propunha a paz e o diálogo inter-religioso; onde justificam a exclusão dos migrantes, ele exigia pontes, não muros; onde associam fé ao armamento e ao lucro, ele apontava para o cuidado, o planeta e o pobre.
A luta de Francisco não foi apenas espiritual. Foi uma batalha cultural. Ao ecoar as vozes do Sul Global dentro do coração da Igreja, ele escancarava a hipocrisia dos que usaram o nome de Cristo para justificar impérios. Francisco propôs uma inversão radical: tornar o Evangelho novamente revolucionário, retomar sua força como potência de subversão da ordem injusta. E por isso, tornou-se um símbolo incômodo, como mostram os ataques que sofreu do trumpismo, do bolsonarismo, dos olavistas, de setores reacionários da Cúria Romana e de colunistas furiosos que o acusaram de “socialista”, “esquerdista”, “comunista”, “populista”.
Francisco nunca respondeu ao ódio com o ódio. Como verdadeiro herdeiro da tradição da libertação, encarnava aquilo que o teólogo peruano Gustavo Gutiérrez ensinava: a fé cristã exige a opção pelos pobres e essa opção, quando vivida com autenticidade, transforma-se inevitavelmente em denúncia dos sistemas que produzem e reproduzem a miséria. Francisco representava essa denúncia viva. E sua liderança espiritual, profundamente humana e insurgente, devolveu dignidade a uma Igreja que há décadas caminhava para o fosso do cinismo e da irrelevância.
Sua trajetória, portanto, não pode ser lida apenas nos termos religiosos. Ela pertence ao campo da disputa global por sentidos. Francisco recolocou o cristianismo numa chave ética de resistência, aproximando-se do que alguns chamam de “iluminismo cristão”: uma tentativa de reconciliar fé e razão, tradição e justiça, espiritualidade e emancipação. Ele denunciou os poderes que instrumentalizaram Deus para legitimar a opressão e, por isso, entrou na mira das forças que vivem da mentira, do medo e da manipulação simbólica.
2. O Papa e a guerra cultural: alvo prioritário da extrema-direita.
A ascensão de Francisco ao papado coincidiu com a intensificação de uma das maiores frentes da guerra cultural global: a reconfiguração do cristianismo como instrumento de dominação ideológica pela extrema direita. Desde 2013, o pontífice passou a ser retratado, em círculos reacionários, como um traidor dos valores “tradicionais” da fé católica. Em um mundo atravessado pela polarização radical e pela ascensão de governos ultraconservadores, Francisco tornou-se rapidamente uma ameaça à reapropriação do cristianismo como doutrina de ordem, hierarquia e supremacia. E por isso passou a ser perseguido com uma intensidade poucas vezes vista na história moderna da Igreja.
A campanha contra Francisco não partiu apenas de dentro do Vaticano, onde setores da Cúria o consideravam uma “anomalia argentina” a ser contida, mas se articulou internacionalmente. Olavo de Carvalho, ideólogo do bolsonarismo, dedicou páginas e vídeos a atacar o Papa, acusando-o de marxista, globalista e agente da “subversão cultural”. Nos EUA, Steve Bannon declarou guerra aberta ao papado de Francisco, criando iniciativas como o Dignitatis Humanae Institute, um think tank católico sediado em um mosteiro na Itália, onde planejava formar uma “nova elite cristã” contra o que chamava de degeneração progressista da Igreja. A intenção era clara: sabotar o pontífice e fomentar uma restauração reacionária da doutrina católica em consonância com os valores do trumpismo e da supremacia branca.
Esses ataques não eram pontuais, eram estratégicos. Operavam sob a lógica das guerras híbridas e da desinformação, onde a narrativa vale mais do que os fatos e onde a repetição sistemática de distorções constrói, aos poucos, um imaginário social deformado. Francisco foi rotulado de traidor da civilização ocidental, de defensor de “invasões migratórias”, de aliado do comunismo, de relativista moral, de promotor da “agenda globalista anticristã”. Em redes bolsonaristas, canais religiosos fundamentalistas e mídias alinhadas à nova direita, sua imagem foi progressivamente esvaziada de complexidade e associada ao colapso moral do Ocidente.
Esse processo operou por meio da criação de um “anti-Papa” nas sombras: um Francisco falsificado, transformado em caricatura, inimigo da fé e da tradição. A propaganda digital produziu montagens, fake news e interpretações manipuladas de falas suas, sempre destacando supostas heresias ou alianças espúrias. O objetivo era claro: deslocar Francisco para fora do campo legítimo da autoridade religiosa. Ao não compactuar com o cristianismo belicista, armamentista, misógino e xenofóbico da extrema-direita, ele foi transformado em inimigo. Seu crime não foi dogmático, mas político: ter dado à fé um corpo sensível e comprometido com a justiça.
Esse ataque sistemático se insere numa estratégia maior de captura ideológica das religiões. A extrema direita mundial entendeu que a guerra cultural não se vence apenas com tanques, mas com templos, púlpitos e plataformas. O Papa Francisco, ao se posicionar contra a lógica da cruzada contemporânea, que utiliza a fé como escudo para o ódio e o lucro, tornou-se um obstáculo para a teologia da dominação. Por isso, era preciso destruí-lo simbólica e narrativamente.
A tentativa de destruição de sua imagem operou em paralelo a uma construção oposta: a exaltação de figuras como Viktor Orbán, Donald Trump, Javier Milei e Jair Bolsonaro como defensores da “fé verdadeira”. Essa oposição forçada entre Francisco e os falsos messias da modernidade autoritária revela como a guerra cultural reconfigurou os polos de legitimidade religiosa. O Papa, antes centro indiscutível de autoridade moral, passou a ser tratado como uma figura lateral, ou mesmo perigosa, por setores que assumiram como missão salvar o cristianismo… do próprio Papa.
3. A desconstrução simbólica de Francisco: o roteiro de Bannon
A desconstrução simbólica de Francisco não foi um acaso da opinião pública, nem um fenômeno espontâneo de redes sociais inflamadas. Foi, em grande medida, o resultado de um roteiro meticulosamente desenhado por ideólogos da nova extrema-direita, em especial Steve Bannon. A arquitetura narrativa que reduziu Francisco a um “Papa perigoso” seguiu as diretrizes do que Jeffrey C. Alexander chama de “gramática apocalíptica binária” da guerra cultural: uma estrutura discursiva que opõe o bem absoluto ao mal radical, e que identifica, nesse embate, os verdadeiros cristãos como guerreiros de uma civilização em risco. Francisco, por contrariar essa lógica, foi transformado em inimigo interno, um traidor na fortaleza.
Bannon, como bem demonstrado no artigo “Vociferando contra o Iluminismo” (2018), não é um conservador tradicional, mas um revolucionário reacionário. Um mitólogo do caos, que utiliza o discurso religioso para legitimar o conflito permanente. Seu projeto de guerra híbrida consiste em destruir toda forma de autoridade moral e racional que desafie o ressentimento mobilizador das massas. Nesse projeto, o Papa Francisco era um obstáculo grave. Não apenas porque pregava valores opostos como paz, empatia, acolhimento, mas porque ainda o fazia com autoridade espiritual global. Era um líder carismático com poder de irradiar contranarrativas. E por isso, precisava ser neutralizado.
A máquina simbólica construída por Bannon e replicada por suas ramificações no Brasil, na Europa Oriental e nos EUA operou uma verdadeira engenharia de deslegitimação. A tática era clara: desfigurar lentamente a imagem pública de Francisco por meio de distorções sistemáticas, extrações de contexto, exageros e montagens. Um Papa que defendia a Palestina se tornava “inimigo de Israel”; um líder que recebia movimentos populares era “comunista infiltrado”; um defensor da ecologia era “globalista ambiental radical”. A lógica é a da simplificação bélica: se ele não é um de nós, é inimigo da civilização.
Mas havia algo ainda mais estratégico: ao desconstruir Francisco, os operadores da guerra cultural visavam não apenas atacar um indivíduo, mas esvaziar o conteúdo ético-político que ele representava. Sua crítica ao capitalismo, por exemplo, foi ocultada ou desmoralizada com o rótulo de “marxismo disfarçado”. Sua defesa de migrantes e refugiados foi enquadrada como “submissão ao multiculturalismo suicida”. O próprio Vaticano passou a ser alvo de fake news que associavam Francisco a conspirações anticristãs, muitas delas impulsionadas por redes ligadas a grupos como QAnon, Força Jovem do bolsonarismo, ou canais de YouTube alinhados à alt-right americana.
A produção desse imaginário não se limita a memes ou vídeos virais. Envolve think tanks como o Instituto Acton, a Heritage Foundation, a TFP (Tradição, Família e Propriedade), que têm operado de forma articulada na tentativa de restaurar uma “Igreja do Ocidente” moldada à imagem e semelhança de um projeto neocolonial, patriarcal e capitalista. Esses grupos não têm qualquer interesse na espiritualidade, seu compromisso é com o poder. E sabem que, para conquistá-lo, precisam dominar os símbolos. E não há símbolo mais poderoso na cristandade que o Papa. Derrotá-lo simbolicamente era condição para avançar na captura ideológica dos fiéis.
Ao desfigurar Francisco, Bannon e seus aliados não apenas enfraqueciam um Papa: criavam espaço para a ascensão de um novo tipo de líder religioso, moldado à estética do ressentimento, à linguagem do medo e à moral da punição. Um “pastor do ódio” que, diferente de Francisco, fala aos algoritmos e não às consciências. Esse novo líder já está entre nós, seja em figuras midiáticas como Ben Shapiro ou Jordan Peterson, seja em setores da Igreja que flertam com o neofascismo digital, seja nos próprios púlpitos evangélicos e católicos de onde se grita contra os pobres, os migrantes, as mulheres e os direitos humanos em nome de um Cristo sem compaixão.
A guerra contra Francisco é, em última instância, a guerra contra tudo que o cristianismo poderia ser de mais humano. Sua imagem foi desconstruída não porque falhou, mas porque incomodou. E incomodou profundamente porque provou que é possível uma fé comprometida com a justiça sem prescindir da tradição. Isso é intolerável para quem precisa do caos como linguagem política.
4. O iluminismo cristão contra o obscurantismo tecnofascista
Francisco não foi apenas um líder espiritual progressista, foi, acima de tudo, um pensador político em tempos de brutal regressão civilizatória. Sua leitura do mundo incorporava, com lucidez rara, a urgência de um novo humanismo. Um humanismo de raízes espirituais, mas de vocação iluminista, capaz de conciliar fé com razão, tradição com justiça, transcendência com dignidade material. Enquanto setores da extrema direita religiosa operavam uma regressão ao autoritarismo teocrático legitimando o ódio, o castigo e a violência como virtudes, Francisco propunha um cristianismo lúcido, atento às causas estruturais da miséria, crítico da idolatria do mercado e, sobretudo, alinhado à liberdade de consciência.
Essa postura o colocava como antípoda da lógica tecnofascista que organiza o novo poder. Em vez de manipular algoritmos e afetos para manter as massas na ignorância ou no fanatismo, Francisco apostava na escuta, na razão e na pedagogia política. Ao contrário da nova direita digital que constrói sua força a partir do medo, da simplificação e da desinformação, ele apelava à complexidade da realidade, à compaixão informada, à responsabilidade moral. Era uma voz dissonante no cenário dominado por slogans furiosos, por fórmulas binárias e pela espetacularização da crueldade.
O tecnofascismo que se espalha pelo mundo opera pela desumanização. Ele transforma o diferente em ameaça, o pobre em peso morto, o imigrante em invasor, o feminismo em perversão, os direitos humanos em fraqueza. Francisco fez exatamente o contrário: humanizou os invisíveis, deu rosto aos descartados, abraçou os inimigos e denunciou, sem medo, os fabricantes do ódio. Ao fazer isso, reconectou o cristianismo à sua matriz original, aquela que questiona o poder, desafia os impérios e caminha ao lado dos que não têm lugar.
Foi essa reconexão com os princípios iluministas como liberdade, igualdade, fraternidade, que tornou sua figura ainda mais intolerável aos olhos dos que desejam reconstruir o Ocidente como fortaleza étnica, patriarcal e elitista. A extrema-direita global, que combate o Iluminismo em nome de uma suposta ordem sagrada, viu em Francisco um traidor: alguém que recusava o reacionarismo estético da tradição sem espírito, que negava a apropriação ideológica do cristianismo como instrumento de guerra. Para eles, o Papa era uma ameaça porque lembrava que a fé pode ser libertadora e não disciplinadora.
Nesse cenário, Francisco pode ser compreendido como um dos poucos líderes do século XXI que tentaram unir espiritualidade e esclarecimento, compaixão e racionalidade, sem cair nas armadilhas do cinismo. Seu papado foi, nesse sentido, uma tentativa de restaurar o cristianismo como força ética, crítica e emancipatória. Uma força capaz de dialogar com os dilemas do nosso tempo, e não de reproduzir as estruturas que os geram.
Essa proposta de um iluminismo cristão, enraizado na realidade concreta dos povos e não nas abstrações dogmáticas do poder, confronta diretamente a lógica da teocracia digital que avança em diversos países. Ao lado de pensadores, educadores, movimentos populares e líderes perseguidos, Francisco encarnava a possibilidade de um futuro onde espiritualidade e justiça não se excluem, mas se exigem mutuamente. E por isso, mais uma vez, tornou-se alvo.
5. A luta pelo legado de Francisco: por uma memória viva e combativa
A batalha em torno da figura de Francisco não se encerra com sua morte. Ao contrário: ela se intensifica. O que está em disputa agora é a memória e, com ela, o sentido histórico de seu legado. A extrema direita, que passou anos tentando desmoralizá-lo, já iniciou o movimento oposto: o da neutralização póstuma. Tentam transformar o Papa que enfrentou o capital, defendeu os palestinos, criticou o colonialismo e abraçou os sem teto em uma figura inofensiva, conciliadora, quase decorativa. Reduzem-no a um “homem bom” genérico, esvaziam sua densidade política, higienizam sua trajetória, como se sua atuação tivesse sido apenas pastoral, jamais confrontacional.
Esse é um processo recorrente nas guerras simbólicas do nosso tempo: quando uma figura é grande demais para ser apagada, ela é transformada em ícone, neutro, plastificada, desidratada, retirada do campo das disputas vivas e convertida em estátua. A tentativa de transformar Francisco em relíquia serve exatamente ao projeto que tentou destruí-lo em vida: o de impedir que seu pensamento siga operando como energia histórica, como fermento das lutas por justiça e emancipação. Trata-se de mais uma camada da guerra cultural: o revisionismo como arma.
Por isso, defender o legado de Francisco exige mais do que reverência. Exige disputa. Disputar sua memória é recusar o apagamento das causas que abraçou, dos povos que defendeu, das injustiças que denunciou. É lembrar, com precisão e coragem, que ele foi um aliado da luta por soberania na América Latina, que enfrentou a indústria bélica, que colocou em xeque a idolatria do lucro, que desafiou a hipocrisia dos que falam em Deus com a boca cheia de sangue. É reconhecer que sua figura não pode ser usada como escudo moral por aqueles que sempre trabalharam para silenciá-lo.
Essa disputa de memória também se dá no campo das narrativas. Quem contará a história de Francisco? Que capítulos serão lembrados? Quais encontros serão ocultados? Seu diálogo com Lula, por exemplo, encontro histórico entre dois líderes perseguidos, ambos portadores de uma fé em transformação social, já vem sendo minimizado nos registros oficiais e coberturas jornalísticas. Sua condenação da violência israelense na Palestina já começa a desaparecer dos noticiários. Seus gestos em favor dos migrantes, das periferias, dos indígenas, são editados como “ações humanitárias” sem contexto. O objetivo é claro: preservar a imagem, mas apagar a substância.
Por isso, é urgente escrever. Registrar. Narrar. Contrapor ao obituário higienizado a memória viva e combativa de um Papa que não cabia nos moldes do poder. Francisco foi um ponto de inflexão dentro da Igreja, mas também fora dela. Um sinal histórico de que ainda é possível uma espiritualidade conectada com os pobres, com a terra, com a justiça e com a vida. De que o cristianismo pode servir à libertação e não ao domínio. De que ainda há líderes capazes de dizer verdades incômodas em tempos de covardia institucional.
Lutar pelo legado de Francisco é lutar contra o esquecimento estrategicamente construído. É impedir que ele se torne apenas uma efígie em catedrais ou uma citação decorativa em documentos diplomáticos. É fazer de sua memória um território político e espiritual de resistência.
6. Francisco como farol ético do século XXI
Francisco Foi um farol. Um desses raros momentos históricos em que a liderança espiritual se ergue acima das conveniências do cargo, do protocolo e do silêncio diplomático. Em um tempo marcado por cinismo, desinformação e regressão moral, ele escolheu falar. E quando falou, foi para denunciar a fome, a guerra, a violência colonial, o apartheid, o abandono dos povos indígenas, a idolatria do mercado e o delírio tecnocrático que transforma vidas em planilhas e corpos em estatísticas.
Francisco não buscava ser moderno, buscava ser justo. E ao fazê-lo, tornou-se revolucionário. Sua postura não foi de ruptura por gosto, mas de fidelidade radical a um Evangelho que, há muito, vinha sendo sequestrado pelos mesmos poderes contra os quais foi fundado. Em tempos de pânico moral e manipulação religiosa, ele lembrou ao mundo que a compaixão pode ser radical, que a fé pode ser crítica, e que o amor ao próximo não é um afeto difuso, mas uma escolha concreta que implica lados, lutas e consequências.
Seu legado não está apenas em encíclicas, discursos ou visitas oficiais. Está na coragem de enfrentar os donos do medo com serenidade e firmeza. Está no abraço aos povos sem pátria, na denúncia das guerras silenciosas travadas contra os pobres, na recusa em naturalizar o sofrimento imposto por políticas cruéis em nome de uma ordem econômica imoral. Francisco foi, em última instância, uma consciência viva. Uma das poucas que ousaram se levantar com clareza moral em meio ao colapso ético do século XXI.
Por isso sua morte não pode ser tratada como um fim. É ponto de virada. Ou retomamos os valores que ele defendeu, a dignidade humana, a justiça social, a autodeterminação dos povos, a centralidade do cuidado, ou deixamos que a história o transforme em figura decorativa, enquanto o mundo afunda nas trevas que ele denunciou. Francisco nos ofereceu um horizonte. Cabe a nós decidirmos se teremos a coragem de segui-lo, ou se permitiremos que ele seja enterrado junto com aquilo que mais incomodava: sua humanidade insubmissa.