Nessa segunda-feira (21), na ocasião da morte do argentino Jorge Mario Bergoglio, o Papa Francisco, o artigo Papa Francisco: “Os comunistas pensam como os cristãos”, publicado pelo jornal A Verdade e assinado pelo historiador José Levino, voltou a circular em algumas redes sociais. O jornal é editado pela Unidade Popular pelo Socialismo (UP), partido que se reivindica marxista, comunista e revolucionário.
Em tom pessoal, o artigo começa já de maneira bastante conservadora, endossando a atual campanha da burguesia contra as fake news:
“A deturpação da realidade para servir a interesses de classe ou a objetivos pessoais não é coisa nova. Apenas o nome mudou, de mentira para ‘fake news’, uma forma de amenizar a sacanagem e de imitar a língua dos dominadores, no caso o inglês estadunidense. Os ideólogos da comunicação de Hitler já ensinavam (e praticavam) que a mentira repetida muitas vezes se torna verdade.”
O termo “fake news” não está sendo difundido para “amenizar a sacanagem”. Muito pelo contrário: está sendo difundido para obscurecer o debate sobre os métodos da direita. A burguesia, na medida em que possui interesses inconfessáveis, mente, deturpa e calunia, é fato. Contra isso, a maior arma dos revolucionários sempre foi a verdade. Sempre foi chamar as coisas pelo seu nome. Chamar essas práticas de “fake news” visa, por sua vez, criar um clima de histeria para justificar a repressão contra qualquer coisa que seja considerada inadequada pelo regime político. O que começou como uma campanha contra as “fake news” hoje se tornou a repressão àqueles que defendem o povo palestino e que denunciam a ditadura do Supremo Tribunal Federal (STF).
Esta introdução, por sua vez, permite ao autor contar que, na sua infância, sempre ouvia mentiras sobre o que seria o comunismo.
“Lembro, ainda criança, vivendo na zona rural, anos 60, que houve uma campanha de vacinação de crianças em nosso município. Ouvi meu pai conversando com minha mãe de que não me levaria para vacinar, porque a vacina era coisa de comunista.”
Desta anedota, o autor conta que:
“Resolvi minha curiosidade, lendo, estudando e observando numa cidade maior onde fui estudar, pessoas que eram chamadas de comunistas. Observei que eram homens honrados e nunca tinham feito mal a crianças e nem a pessoa alguma. Ao contrário, eram muito boas, preocupadas com o próximo e, apesar disso, mal vistas, perseguidas e nem podiam dizer que eram comunistas.”
Ainda que seja um relato pessoal, serve apenas para apresentar uma definição bastante despolitizada do que seriam os comunistas. Seriam, segundo ele, boas pessoas. Essa ideia, por sua vez, o levará a fazer uma manobra intelectual, chegando à seguinte conclusão: todas as “boas pessoas” são comunistas.
Após uma série de considerações sobre a obra de Karl Marx e sobre a doutrina cristã, o autor chega àquilo que é central em seu artigo:
“A essência da mensagem transformadora de Jesus Cristo sempre ressurgiu. Na Idade Média, os movimentos heréticos procuraram mantê-la e refundar as comunidades até serem exterminados pela Inquisição e pelas Cruzadas. Renasce durante a invasão das Américas com a criação das comunidades comunistas guaranis no Sul do Brasil e as denúncias do frei Bartolomeu de Las Casas. Em nosso tempo, ressurge com as Comunidades Eclesiais de Base após o Concílio Vaticano II, fomentadas por bispos do povo do quilate de dom Helder Câmara, dom Pedro Casaldáliga, dom Tomás Balduíno e tantos outros […] A essência do cristianismo permanece em pastorais como a CPT, que já deu vários mártires em apoio à luta dos camponeses pobres brasileiros pelo direito à terra para quem nela trabalha, no Conselho Indigenista Missionário, que nasceu em plena ditadura para ajudar os indígenas a resgatarem suas tradições e se organizarem, conquistando o direito a demarcação de seu território na Constituição Federal de 1988. A sua força é tão evidente, que chegou ao papado com a eleição do cardeal argentino Jorge Mário Bergoglio, simpatizante da Teologia da Libertação (papa Francisco).”
É uma confusão sem tamanho. Quando o cristianismo surge com seus primeiros defensores, esta era a ideologia de um povo oprimido, que lutava por sua libertação. Quando ideias de caráter humanitário e progressista surgiram nos séculos posteriores, estas até poderiam ter servido para a unidade de um setor combativo, mas isso nunca implicou em uma mudança na estrutura da Igreja Católica em si. A Igreja Católica é uma imensa burocracia, que representa inequivocamente os interesses dos grandes monopólios. A Igreja Católica é o Estado do Vaticano, um Estado constituído, com posses, autoridades e que é sustentado diretamente pelo grande capital. O próprio Vaticano foi formalmente fundado em um acordo com o fascista Benito Mussolini.
O Papa Francisco, neste sentido, não pode ser analisado simplesmente do ponto de vista do que diz. Ele é um homem que chegou ao topo desta hierarquia. Ele era o chefe do Estado do Vaticano. Neste sentido, pouco importa o que tenha dito em uma ou outra entrevista. Pouco importa sua simpatia com movimentos eclesiásticos de base. O que importa é se sua ascensão ao papado significou uma ascensão dos grupos sociais que estão em luta contra a dominação imperialista e se o seu papado apontava, de alguma maneira, para uma mudança.
Não foi isso que aconteceu. De um ponto de vista abstrato, sim, o Papa Francisco tinha uma postura mais progressista que seu antecessor, Joseph Ratzinger, o Bento XVI. No entanto, em nenhum momento, nem no seu discurso, nem em suas ações, o Papa Francisco se propôs a demolir a Igreja Católica no sentido de ser um instrumento da dominação imperialista sobre os povos. Sua chegada ao papado significou, acima de tudo, um movimento necessário dentro da burocracia católica para preservar a instituição.
O papado anterior, comandado por Bento XVI, trouxe várias crises para a instituição, devido à sua constante interferência política. Francisco era a expressão de uma ala liberal dentro da Igreja, que procurou transformar suas normas um pouco mais flexíveis e se afastar de problemas políticos impopulares, de forma a amenizar a crise na qual o Vaticano se encontra. Não há nada de “comunismo” nisso. Pelo contrário, ao fazer qualquer comparação entre o papa e o comunismo, a UP, por causa de uma análise superficial das ideias, difunde a ilusão de que uma burocracia assentada no grande capital poderia ter algo de progressista.