A “ordem internacional baseada em regras” enfrenta agora a ameaça de uma “mudança de regime”. Ambas as expressões são usadas há décadas para impor uma dominação do imperialismo norte americano e, se essa dominação fosse desrespeitada, logo se teria um movimento do imperialismo para impor uma derrota total do agora inimigo mortal. Para isso ora se emprega força militar, ora bloqueio econômico, a criação de uma crise política que colocasse a população em pé de guerra contra o governo, ou a mistura de tudo isso.
Com a falência do acordo de Bretton Woods, denunciado unilateralmente pelo presidente dos Estados Unidos Richard Nixon, o que passa a ser regra é a imposição de “pacotes” de políticas macroeconômicas e de regulação monetária e financeira que acarretavam as orientações das políticas trabalhistas, industriais e sociais. Tudo resumido em uma palavra: neoliberalismo. Suas características se tornaram amplamente conhecidas: desregulamentação dos mercados financeiros e de mercadorias; privatização de serviços e indústrias; redução de impostos corporativos e patrimoniais; erosão ou enfraquecimento dos sindicatos. O objetivo desse chamado cardápio, cuja ingestão levou vários países à completa crise e desorganização econômica apenas deter a famosa tendência , já apontada por Marx um século antes, da queda da taxas de lucro do capital e enfrentar a combinação de estagnação e inflação que passou a imperar a partir da década de 80 do século 20.
Inicialmente a “receita” neoliberal parecia atacar a doença do capitalismo. Houve uma retomada do crescimento em níveis muito baixos, controlou-se a inflação, as crises recessivas tornaram-se pontuais e intermitentes. E o principal: houve uma volta a uma taxa de lucro ascendente. Mas este melhor desempenho da economia não foi sustentado pelo aumento do consumo, pois o nível médio dos salários foi mantido muito baixo. Não houve aumento do investimento, mas um crescimento gigantesco do crédito, que gerou uma elevação muito forte das dívidas pública e privada. Foi o crescimento do que Marx chamava de capital fictício, porque não baseado na produção de mercadorias , mas apenas na especulação sobre o valor futuro de várias formas financeiras de capital. Ao invés da fórmula original D-M-D’ (capital + mais valia obtida na produção) adotou -se a fórmula D-D’’(capital + mais valia apropriada de outros capitais).
Enquanto essa redistribuição de riqueza foi viabilizada pela destruição dos setores em decadência do capital, ou pela ampliação da dominação do imperialismo sobre outros países, a fórmula funcionou. Quando esse processo passou a se basear em destruição do próprio capital, a crise se tornou inevitável. Uma crise, a partir de 2008, cujos efeitos abrangeram o conjunto da economia mundial capitalista, transformando parte do capital fictício envolvido em capital inexistente. Seus efeitos só não foram maiores porque os governos ocidentais, em especial o norte americano, transferiram enormes montantes de valores do Estado para o capital, esterilizando-os para tampar os “buracos” dos grandes bancos e das grandes empresas. O lema era um só: tirar tudo o que pudermos do Estado para salvar as empresas capitalistas.
Nada foi feito, no entanto, para reformar a economia capitalista visando acabar com a financeirização e retomar um crescimento baseado no capital produtivo. Pelo contrário, aprofundou-se os mecanismos de desregulamentação e de financeirização, razão pela qual a crise não terminou e continua assustando os governos, o capital e os trabalhadores até os tempos atuais.
O imperialismo desencadeou uma ofensiva política, ideológica e militar para impedir o desenvolvimento de qualquer tipo de contestação social e política da nova ordem mundial baseada no domínio exclusivo dos EUA no mundo, após a crise e destruição da União Soviética. Não houve, é bom lembrar, um colapso da economia soviética, cuja crise era muito menor que a própria crise mundial do capitalismo, que se iniciou em 1974 como resultado da perda de dinamismo das economias principais do “Ocidente”. O que houve foi uma bem sucedida ofensiva do imperialismo em termos políticos e ideológicos sobre os partidos comunistas soviéticos, em especial o partido comunista da Rússia que foi tomado de assalto por uma facção totalmente degenerada da burocracia russa que ambicionava a restauração do capitalismo no país, para poder se apossar, como de fato aconteceu, da riqueza coletiva e transformá-la em riqueza privada.
A ofensiva do imperialismo foi caracterizada pelo abandono de qualquer veleidade de desenvolvimento dos países ditos subdesenvolvidos e buscar implantar também neles as políticas neoliberais. Aqueles países que reagiram a essa ofensiva o imperialismo reagiu militarmente de forma a destruí-los física e economicamente, como foi feito com o Iraque, a Líbia e o Afeganistão. Outros países sofreram a agressão “branda” das chamadas revoluções coloridas ou os golpes de estado parlamentar com o mesmo objetivo de submete-los ao imperialismo, e implantar regimes neoliberais muitas vezes sem nenhum compromisso com a democracia ou direitos humanos.
Depois de 2008, suas consequências sociais e políticas cumulativas começaram a cobrar seu preço. Consequências sociais: uma escalada pronunciada e, em alguns casos (especialmente nos EUA e no Reino Unido), uma escalada impressionante da desigualdade; estagnação salarial de longo prazo; um precariado em expansão. Consequências políticas: corrupção generalizada, aumento da intercambialidade de partidos, erosão de uma opção eleitoral significativa, diminuição da participação eleitoral; em suma, o crescente eclipse da vontade popular por uma oligarquia endurecida. De um lado o imperialismo investe na política de lawfare seja para impedir lideres populares de assumir os governos dos seus países ou para impedir até mesmo a realizações de eleições. As contradições sociais e econômicas em aprofundamento, e a incapacidade dos partidos social-democratas de apresentar alternativas ao neoliberalismo levou ao crescimento eleitoral de partidos fascistas, que apresentam-se como alternativa, mas que uma vez no poder implementam políticas neoliberais muitas vezes mais radicais que a dos seus criadores. É o caso de Milei, na Argentina ou de Marie Le Pen na França.
Nos últimos anos desenvolveu-se um processo de criação de partidos de esquerda que contestam o neoliberalismo. Na Grécia, o Syriza, ainda um pequeno grupo quando o Lehman Brothers faliu em Nova York, emergiu como uma força eleitoral significativa em 2012. Na Espanha, o Podemos foi formado em 2014. Jean-Luc Mélenchon criou La France Insoumise em 2016. Desses três, apenas o France Insoubmise se mantém ativo, embora tenha fracassado em se impor como força majoritária. Na América Latina, na Ásia e na África tem surgido movimentos, partidos e governos que buscam se opor ao neoliberalismo, despertando sempre a ira do imperialismo que usa de todos instrumentos possíveis, inclusive o militar, para impedir o avanço de políticas que transformam esses países em inimigos dos EUA, como a Venezuela, Cuba e Nicarágua e os revolucionários do Sarhel na África. O fator mais importante na consolidação de uma atitude anti imperialista foi a constituição e recente ampliação dos BRICS que, apesar de sua heterogeneidade , tem adotado posições muito importantes contra o domínio imperialista e avançado na construção de uma alternativa à hegemonia do dólar e das instituições de Bretton Woods.
OS PLANOS DE TRUMP
As medidas econômicas de Trump causaram caos nos mercados mundiais . Ele criou , fez alarde e depois reformulou uma tabela tarifária o que resultou em caos financeiro e econômico. Houve uma imensa perda de valor de mercado das principais empresas norte-americanos. Foi uma crise econômica mundial gerada pelo executivo do país. O recuo não adianta mais nada, pois criou pânico em todo o mundo. Trump mente, insulta, ataca e parece governar a maior potência mundial como se fosse um cassino ou coisa pior. Não se sabe até quando seus financiadores vão sustenta-lo. A política econômica de Trump em três objetivos: restaurar a hegemonia do dólar, reduzir o déficit comercial e incentivar a repatriação de grandes empresas.
Trump pretende estabelecer um dólar barato para exportações e um dólar forte como reserva de valor. O objetivo é promover as exportações americanas, ao mesmo tempo em que garante o status privilegiado da moeda americana como moeda mundial. Para conseguir a desvalorização do dólar e a sua permanência como reserva de valor, Trump precisa reforçar a submissão dos Bancos Centrais da Europa e do Japão. Isso é fundamental para que não haja oscilação no valor dos títulos da dívida americana (Treasury Bonds) de forma a continuar funcionando como o principal ativo para as reservas internacionais dos países. Se Tóquio e Bruxelas não continuarem comprando esses títulos poderá oscilação na taxa de câmbio do dólar definida por Washington, o que traria tensões cambiais que inviabilizariam todo o projeto.
Trump está fazendo tudo para manter a hegemonia do dólar e, assim, possibilitar que os Estados Unidos de se financiem às custas do mundo. O presidente fascista pretende posicionar o dólar de volta em seu trono original de Bretton Woods. A moeda americana deve manter o ciclo de dominância sem nenhum lastro de algum metal precioso.
Para obter esse objetivo, o Presidente deve impedir a desdolarização, que ameaça a supremacia do dólar. Essa ameaça vem principalmente dos BRICS, que passaram criar instrumentos para substituir a moeda norte-americana, por meio de operações de pagamento, transações comerciais e mecanismos de compensação financeira. Trump está ciente dessas ameaças e precipitou o caos, desencadeando uma guerra contra os que pretendem desdolarizar, em especial os BRICS.
O indicador mais importante da luta é o comportamento dos títulos do Tesouro. O Japão tem sido o maior detentor desses títulos desde que a China começou a abandoná-los. Bancos europeus e em outros países asiáticos também possuem estoques significativos desses papéis. O plano de Trump não vingará se os possuidores de títulos da dívida dos EUA venderem esse ativo. Mas para além desse cálculo imediato, a grande questão é a capacidade geral dos Estados Unidos para restaurar sua moeda. O declínio da potência líder é muito grande, o ciclo de dominação imperial está corroído, o colapso da URSS e a estreia da globalização ficaram para trás, e o progresso econômico da China é avassalador. A estratégia monetária de Trump também enfrenta uma tensão significativa com os bancos, enquanto Wall Street vê com desconfiança um curso que ameaça restringir os enormes ganhos dos últimos anos.
O segundo objetivo de Trump é reduzir o enorme déficit comercial dos Estados Unidos. O presidente cria e altera tarifas à todo momento e tenta negociá-las com cada país. Esse comportamento pode estabelecer a mesma onda protecionista que deu início à crise financeira de 2008 e ao declínio da globalização do comércio. O presidente elaborou uma fórmula absurda para afetar os diferentes países. Ele definiu um critério arbitrário de reciprocidade para definir a porcentagem de cada punição, com estimativas absurdas do déficit comercial dos EUA, sem considerar o superávit americano em serviços. As chances de sucesso do plano de Trump são muito pequenas, já que as importações e exportações dos EUA não operam mais como uma força decisiva no comércio global.
O efeito recessivo do protecionismo na economia mundial é muito conhecido. Essa incidência hoje é maior devido à influência do comércio exterior, que saltou de 6% (1929) para 15% (2024) do PIB do país. Trump incentiva um protecionismo equivocado, em vez de incentivar a indústria nascente.
O terceiro objetivo de Trump é produtivo. Ele quer repatriar as empresas norte americanas para seu território de origem e vê essa mudança como fundamental para recuperar a hegemonia ianque. É por isso que ele identificou a estreia de sua ofensiva (“Dia da Libertação Econômica”) com a reindustrialização do país. Trump insiste na importância da expatriação de fábricas. Isso mostra que o domínio americano em serviços, finanças ou no mundo digital não compensa o declínio na manufatura. Seu plano de repatriação de indústrias ainda mais difícil de executar que seus projetos monetário ou tarifário. As empresas que produzem e obtém altos lucros no exterior dificilmente voltariam para os EUA.
Não importa quão convincentes sejam os incentivos do presidente, produzir nos Estados Unidos tem um custo muito mais alto. A restauração industrial exigiria um investimento enorme, que as empresas não estão dispostas a fazer dada a baixa lucratividade interna atual.
O produto final utiliza insumos de fábricas localizadas em vários países. Como os EUA poderiam aumentar a competitividade, mantendo métodos antigos de fabricação no país? Qual seria o nível de uma tarifa para tornar possível fabricar na fonte?
Os economistas de Trump insistem que o projeto é viável, se o dólar recupera sua supremacia e o déficit comercial é reduzido. Por outro lado, críticos keynesianos mostram que Trump fracassou em fazer essa mudança em seu primeiro mandato. O declínio dos Estados Unidos decorre da sua baixa produtividade, em comparação à crescente do seu concorrente oriental. O grau de dependência que o país tem com o fornecimento de insumos chineses foi confirmado pela própria decisão de Trump de isentar todos os chips e componentes eletrônicos das tarifas impostas ao rival asiático.
O problema se estende aos bens de capital e intermediários, que representam cerca de 43% das importações totais da China. O declínio americano não se deve a erros comerciais que possam ser resolvidos com ultimatos protecionistas. Existe uma mudança de padrão que prejudica a divisão internacional do trabalho construída em décadas de internacionalização produtiva.
Esse declínio não gera automaticamente a repatriação de fábricas, porque a capacidade dos Estados Unidos de liderar tal mudança diminuiu drasticamente.
O CONFRONTO COM A CHINA
A China é o principal alvo da guerra comercial iniciada por Trump. Os 34% iniciais de Washington foram combatidos por Pequim com a mesma porcentagem, e a batalha rapidamente saltou para 84%-104% e 245%-125%. Estas tarifas condenam o comércio entre os dois países à paralisia.
A prioridade da China na estratégia de Trump foi ainda mais confirmada por sua decisão de manter os níveis de tarifas para aquele país, depois que elas foram suspensas para o resto do mundo. As tarifas inicialmente altíssimas sobre o Vietnã, Camboja e Laos são parte do mesmo confronto, porque a China controla as cadeias de suprimentos desses vizinhos e reexporta seus produtos de lá. Pequim respondeu assertivamente, gerando imediatamente tarifas recíprocas e afirmando que não aceitará chantagem ianque. Ela vem preparando essa reação há muito tempo e pretende travar a batalha no nível de produtividade, evitando a desvalorização do yuan.
A China também está buscando clientes compensatórios e está estabelecendo vantagens específicas para a Europa e a Ásia. Há um medo generalizado no establishment ocidental sobre o resultado do cabo de guerra. Há previsão é que a China deve vencer essa guerra. A cada dia surgem novas informações sobre a superioridade asiática em inúmeros campos. O país já produz 65% dos graduados em ciências, tecnologia, engenharia e matemática do mundo. Mantém uma taxa de crescimento duas vezes maior que a dos EUA, atingindo 35% da indústria manufatureira mundial e deve chegar a 45% até 2030. Até 2001, 80% dos países comercializavam mais com os Estados Unidos do que com a China, e atualmente dois terços desse total inverteram essa relação.
No primeiro mês da presidência de Trump, a China lançou 30 novos projetos de energia limpa na África, iniciou a construção da maior barragem do mundo no Tibete e revelou uma nova geração de trens ultrarrápidos. Seu reator nuclear atingiu produção recorde de plasma, a uma taxa que o coloca perto de gerar energia limpa ilimitada. Os seus estaleiros lançaram o maior navio de assalto anfíbio do mundo e os testes de 6G em redes de telefonia celular, antecipam sua vitória nessa corrida. Toda a política de Trump é uma tentativa desesperada de deter o avanço da China. Essa expansão só começou a surgir no início do milênio, quando a principal potência deixou de receber transferências de renda do parceiro asiático. Iniciou-se uma troca desfavorável, que atualmente atingiu um pico difícil de reverter. Trump pretende mudar esse cenário adverso com ações drásticas. Mas a distância entre as duas potências não se deve apenas a diferenças nas políticas monetárias, comerciais ou de produção. Ela está localizada na estrutura social e na gestão do Estado. Na China, há classes capitalistas significativas que especulam com suas fortunas e exploram os trabalhadores. Mas esses grupos não controlam o poder estatal, e essa limitação explica a capacidade e a autonomia da liderança política para orientar a economia em direção a padrões de eficiência.
Trump não tem nenhuma fórmula para lidar com essa desvantagem, que sobrecarrega todas as suas intenções e projetos. Para completar, promove medidas que agravam os dois grandes males do capitalismo contemporâneo: a desigualdade social e as mudanças climáticas. Ele embarcou em uma batalha há muito adiada para sustentar a liderança dos EUA em um sistema em crise, mas está exacerbando o declínio dos Estados Unidos com medidas que adota, modifica e restabelece.