Com a morte do papa, a Igreja Católica se questiona sobre o perfil de seu sucessor. O catolicismo cresceu na África durante o pontificado de Francisco, que visitou 10 países africanos em cinco viagens ao continente. Além disso, ele utilizou seu poder para modificar o equilíbrio geográfico do Vaticano, que sempre deu preferência a países europeus.
Durante o último conclave, em 2013, 64% dos votantes eram europeus e norte-americanos. No próximo, este número diminuirá para 52%.
Francisco foi o primeiro não-europeu a dirigir a Igreja Católica desde o ano 741. Por isso, há expectativas de que o novo papa seja de fora da Europa. As especulações sobre um sucessor vindo da África e da Ásia são inevitáveis. De acordo com o Vaticano, no final de 2022, os dois continentes representavam 31% da população católica no mundo.
Enquanto na Europa e na América do Norte, que contam 27% dos católicos do planeta, e nas Américas do Sul e Central, com 41%, o desinteresse pela religião aumenta, a África registra o movimento contrário. A quantidade de seguidores da Igreja Católica no continente africano progrediu 22% entre 2013 e 2022. No mesmo período, o número de católicos da Ásia aumentou 13%.
As viagens do sumo pontífice pelo continente, seu posicionamento sobre problemas que atingem os países africanos, além da postura humilde do jesuíta argentino, podem explicar em parte o aumento do interesse pela religião católica na África.
Primeira viagem do papa à África
Fridolin, coroinha na catedral de Bangui, na República Centro-Africana, ainda se lembra da visita do papa ao país, em 2015, na primeira viagem de Francisco à África. O contexto era turbulento porque dois anos antes, o golpe da coalizão Seleka contra o ex-presidente François Bozizé havia mergulhado o país em um ciclo de violência inter-religiosa.
A visita do soberano pontífice gerou esperança de paz e reconciliação. Fridolin relembra a ida do papa ao bairro muçulmano de PK5, em Bangui, uma iniciativa corajosa. “Ao fechar meus olhos, visualizo tudo”, conta.
“No auge da crise, durante dois anos, nenhum muçulmano podia sair e os cristãos não conseguiram pisar no PK5. Mas o papa enfrentou a situação e foi à mesquita. Naquele dia, ele atraiu milhares de cristãos em sua procissão até o PK5. Foi uma grande reconciliação. Eu vi com meus próprios olhos as duas comunidades chorando e se abraçando”, diz o coroinha.
Visivelmente emocionado, ele conta também sobre o impulso dado por esta visita à reabilitação do complexo pediátrico de Bangui, que estava em ruínas. Naquela época, muitas crianças morriam por falta de cuidados. Desde 2015, o atendimento às crianças passou a ser gratuito.
Denúncia de injustiça social no Quênia
A comunidade de Kangemi, no Quênia, também não esquece a visita do papa Francisco, que também ocorreu durante a primeira viagem à África do chefe da Igreja Católica. Na periferia de Nairóbi, o soberano pontífice celebrou uma missa na igreja de São João Operário. Ele aproveitou a oportunidade para denunciar a injustiça social e o acúmulo de riqueza. Uma das fiéis de Kangemi, Lucy Nganga, lembra que “ele se apresentou como o papa dos pobres e explicou que foi por isso que escolheu esta igreja”.
Theresa Siuwai, outra católica da paróquia, jamais esquecerá esta visita. “Ele escolheu vir ao gueto. Só vemos pessoas importantes aqui quando elas estão em busca de votos. Então, que o papa tenha vindo a Kangemi, tenha visto como vivemos e tenha feito parte da nossa comunidade, mesmo que apenas por uma hora, foi uma honra. Nos sentimos humanos”, afirma.
Promotor do diálogo inter-religioso e defensor dos migrantes
Desde o início de seu pontificado, o papa Francisco enfatizou a importância que queria dar ao diálogo inter-religioso, recebendo delegações de outras igrejas e outras religiões. Esse apego ao diálogo esteve presente durante todo o seu pontificado.
Em 4 de fevereiro de 2019, Francisco e o grande imã da Mesquita Al Azhar, no Egito, Ahmad Al-Tayeb, assinaram o “Documento sobre a Fraternidade Humana para a Paz e Coexistência Mundial”. O texto afirma que “muçulmanos do Oriente e do Ocidente, juntamente com os católicos do Oriente e do Ocidente, declaram adotar a cultura do diálogo como caminho; a colaboração conjunta como conduta; o conhecimento mútuo como método e critério”.
Durante sua visita ao Marrocos em 2019, o papa voltou ao diálogo inter-religioso e insistiu na “cultura do encontro”.
A defesa dos migrantes, outro tema que permeou todo o pontificado de Francisco, ocupa um lugar de destaque na encíclica Fratelli Tutti que assinou em 2020, “sobre a fraternidade e a amizade social”. No texto, o papa condena o comportamento de alguns católicos em relação aos migrantes.
“Nunca diremos que eles não são seres humanos, mas na prática, através das decisões e da forma como os tratamos, mostramos que são considerados pessoas de menor valor, de menor importância, dotadas de menos humanidade. É inaceitável que os cristãos compartilhem essa mentalidade e essas atitudes.”
Francisco também, em outras ocasiões, usou palavras fortes para denunciar as consequências das políticas do Ocidente. Em Roma, ele declarou que “o Mediterrâneo se tornou um cemitério”. Em Rabat, ele explicou que, para ele, esse fenômeno “nunca encontrará solução na construção de barreiras, na difusão do medo do outro ou na negação de assistência”.
Críticas na África
A relação do papa Francisco com a África também passou por alguns momentos de tensão. Ao publicar a declaração “Fiducia supplicans” em 18 de dezembro de 2023, Roma gerou revolta nos arcebispados africanos. A declaração previa a possibilidade de padres abençoarem casais homossexuais, o que foi imediatamente rejeitado pelos bispos de vários países do continente. As declarações de recusa das conferências episcopais africanas se multiplicaram. Os próprios fiéis condenaram a declaração de forma rígida.
Diante da revolta, o cardeal Fridolin Ambongo, presidente do Simpósio das Conferências Episcopais da África e Madagascar, foi ao Vaticano para apresentar o ponto de vista das igrejas africanas e trabalhar em prol de uma saída da crise. Isso tomou a forma de uma mensagem escrita com a concordância do papa, excluindo os líderes religiosos africanos das bênçãos a casais homossexuais.
Anos depois, o episódio continua sendo comentado no continente. ”Foi um alvoroço, especialmente na África. O Vaticano tentou o máximo que pôde apresentar argumentos, mas nunca convenceu ninguém”, diz um católico do Chade, para quem esse impasse foi um dos pontos altos do pontificado de Francisco.
Na memória dos fiéis africanos
O líder da Igreja Católica, no entanto, soube, em outras ocasiões, estar em sintonia com o continente. As palavras que ele proferiu na República Democrática do Congo, durante sua última viagem ao continente, em 2023, continuam a ressoar na mente dos fiéis congoleses. No jardim do Palácio da Nação, ele fez um apelo à comunidade internacional para que abordasse a pilhagem do continente africano.
“Tirem as mãos da República Democrática do Congo! Tirem as mãos da África! Parem de sufocar a África. Ela não é uma mina a ser explorada nem uma terra a ser saqueada”, disse.
Ao longo de seu pontificado, o papa também demonstrou seu apego à “inculturação” do rito, ou seja, a influência das culturas locais na liturgia. O rito zairense, adaptação especificamente africana do rito romano tradicional que inclui movimentos corporais e referências ancestrais, era citado pelo papa como um “modelo promissor para a Amazônia e para outras Igrejas que buscam uma expressão litúrgica apropriada”.
Em 3 de julho de 2022, ele chegou a celebrar uma missa segundo o rito zairense na Basílica de São Pedro, em Roma, em um dos lugares mais emblemáticos da Igreja Católica, concluindo sua homilia com algumas palavras em lingala. “Moto azalí na matói ma koyóka”, disse Francisco, seguido pela multidão “Ayóka. Moto azalí na motéma mwa kondíma. Andima” (“Quem tem ouvidos para ouvir, ouça. Quem tem coração para consentir, consinta”).