E o papa Francisco viveu sua Páscoa-Passagem. Após semanas de sofrimento, com uma pneumonia bilateral, fez sua travessia “para os braços de Deus” – expressão cara à espiritualidade evangélica brasileira.

Como escrevi neste espaço por ocasião dos dez anos de seu pontificado, os evangélicos brasileiros, em sua maioria, foram formados por um imaginário de rejeição aos papas da Igreja Católica. A herança crítica da Reforma Protestante à “corrupção” promovida por Roma alimentou a desconfiança: o Papa como símbolo do poder terreno que perverte a fé, envolto nas riquezas do patrimônio e nas complexidades políticas do Vaticano.

Quando Francisco assumiu, em 13 de março de 2013, sucedia praticamente dois pontificados. O de João Paulo II, muito popular por suas viagens e presença física em territórios antes esquecidos, mas também marcado por uma marcha-ré nos avanços do Concílio Vaticano II. E o de Bento XVI, nomeado por esse mesmo projeto conservador e que, após um curto papado, renunciaria ao cargo.

Foi nesse contexto que o argentino Jorge Mario Bergoglio, jesuíta, assumiu como o primeiro Papa latino-americano. Ao escolher o nome Francisco – em referência ao santo de Assis, patrono dos pobres – sinalizava já na origem o tom pastoral e missionário que caracterizaria seu pontificado.

A figura do “pastor”, tão cara à tradição evangélica “raiz” – aquela das igrejas de base, e não das corporações e megaigrejas – pode ter sido decisiva para reconstruir a imagem do papa entre muitos evangélicos. A tradição do pastoreio, vinculada ao cuidado com as ovelhas, é central na simbologia cristã. Deus como o verdadeiro pastor, como afirma o Salmo 23: “O Senhor é meu pastor, nada me faltará”. Jesus, o bom pastor, dá a vida por suas ovelhas (João 10:11-15).

Francisco encarnou essa ideia. Desde sua primeira viagem como papa, em julho de 2013, à ilha de Lampedusa, onde criticou com veemência a “globalização da indiferença” diante do sofrimento de migrantes e refugiados, sua prática foi pautada pelo cuidado com os esquecidos e descartados. A coroa de flores lançada ao mar em homenagem às milhares de vítimas da travessia mediterrânea anunciou uma plataforma pastoral centrada na justiça. Como disse aos jornalistas após sua eleição: “Como eu gostaria de uma Igreja pobre para os pobres!”

Ao longo dos doze anos de pontificado, Francisco fez jus ao título de papa-pastor. Enfrentou o sistema financeiro opaco do Vaticano, reformou estruturas, criou comissões contra abusos sexuais, denunciou guerras e a destruição do meio ambiente. Intermediou diálogos entre Cuba e Estados Unidos, clamou pelo fim da guerra entre Rússia e Ucrânia, e denunciou o genocídio do povo palestino.

Sua primeira Exortação Apostólica, Evangelii Gaudium (2013), propôs uma “Igreja em saída”, em movimento, comprometida com a transformação – um conceito muito presente também na teologia evangélica. A “metanoia”, mudança de mentalidade, aliada à “conversão pastoral”, ressoava entre fiéis dispostos a uma fé que se traduz em ações e não em dogmas.

Francisco convocou os fiéis à missão, não à acomodação; à escuta, não à imposição. Encorajou o cuidado com a Casa Comum (Laudato Si’, 2015), valorizou o Sínodo da Amazônia (2019) e promoveu encontros históricos com outras tradições religiosas. Ao mesmo tempo, frustrou progressistas ao adotar posturas conservadoras sobre temas como direitos das mulheres e da população LGBTQIA+. Ainda que tenha feito gestos de acolhimento, rendeu-se, em alguns momentos, à retórica falaciosa da “ideologia de gênero”.

A oposição interna a seu papado – que se espalhou por alas conservadoras ao redor do mundo – é, em grande medida, herança dos pontificados anteriores. Sua crítica ao capitalismo, seu apelo à paz, à transparência e à tolerância incomodaram estruturas que há muito se sentem confortáveis no poder.

Mas, sem dúvida, Francisco fez história. Seu estilo direto, humilde, próximo do povo e fiel à missão pastoral rompeu com o aparato que historicamente distanciava os pontífices dos fiéis – e ainda mais dos “infiéis”. Ele atingiu racionalidades e afetou corações.

É por isso que, entre tantos evangélicos brasileiros, foi possível enxergar nele algo diferente. Não apenas um papa, mas um pastor. Um líder que evocou valores compartilhados e deixou um legado não apenas para quem se reconhece cristão, mas para todas as pessoas com ou sem religião, que têm sede e fome de justiça.

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Last Update: 21/04/2025