Os faróis apagados

por Luís Carlos

“Um homem sabe que é mortal, mas toma como certo que sua nação possui uma espécie de vida eterna.” Nos parágrafos seguintes, o escritor tcheco Milan Kundera demonstraria sua preocupação, que vinha, justificada, de décadas anteriores, com a possibilidade de desaparecimento da cultura e até da geografia de sua terra natal que, segundo ele, “ao longo de apenas meio século, experimentou a democracia, o fascismo, a revolução, o terror stalinista, bem como a desintegração do stalinismo, a ocupação alemã e russa, as deportações em massa, a morte do Ocidente em sua própria terra”.

Era o ano de 1980, e Kundera, já então emigrado para a França fazia tempo, concedia ao colega norte-americano Philip Roth uma entrevista que se tornaria tão histórica quanto profética.

Evoco aqui o fantasma de Kundera exatamente um ano após a sua morte por enxergar nele, olhando para o passado, o que ele sabiamente soube ver, mirando o futuro, não em termos de cenários de romances, mas antecipando a pura realidade: a extinção do indivíduo, das culturas locais, das pequenas nações, da Europa dos séculos XIX e XX, em suma, do mundo como o conhecemos – ou conhecíamos?

Como já pude escrever em outra oportunidade, os totalitarismos do século XXI são outros, reais ou virtuais, ainda que se alimentem das mesmas sementes que os seus antecessores: a união de nós contra eles, a promessa de um futuro repleto de justiça e prosperidade, o advento do reino do bem para pessoas de bem.

Tal letra já serviu para diversas canções, entoadas por distintos herois de rasa retórica, todas encantadoras para quem não tem educação para além do do-re-mi ideológico populista.

A quem se posiciona como dissonante cabe a pecha de cético, alarmista, apocalíptico, parafraseando Umberto Eco, outro espírito que nos deixou órfãos.

Termino essa pequena reflexão apelando para um terceiro e último fantasma, Alexis de Tocqueville, homem que percorreu a ponte histórica, política e filosófica entre dois faróis progressistas do settecento, um na Europa e outro na América; ambos, apenas dois séculos e meio depois, enferrujados e sujeitos à demolição por ação dos próprios fundamentos democráticos que os fizeram nascer e iluminar o mundo.

Luís Carlos é jornalista desde 1995 com experiência em rádio, TV, jornal, agência de notícias, digital e podcast. Tem graduação em Jornalismo e História, com especializações em Política Contemporânea, Ética na Administração Pública, Introdução ao Orçamento Público, LAI, Marketing Digital, Relações Internacionais e História da Arte.

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Última Atualização: 03/07/2024