Por Eduardo Appio e Salvio Kotter*
“Bem-vindo de volta aos Estados Unidos de Trump, onde a Constituição é como um guardanapo de coquetel com alguns rabiscos” (Lewis, The Hill, 16/04/25). A frase de abertura do recente artigo de Matt K. Lewis tem sabor amargo: ela inaugura um panorama em que até mesmo uma decisão unânime da Suprema Corte seria vista com o mesmo respeito dispensado a uma reclamação de SAC — algo meramente protocolar, facilmente ignorável.
A esta metáfora Lewis junta um retrato sarcástico, em que o presidente se alimenta de Big Macs durante as reuniões de inteligência e zomba do Judiciário, perfura a couraça de solenidade que normalmente envolve a governança e desnuda nossa confiança ingênua num Contrato Social robusto.
A situação descrita por Lewis gira em torno de Kilmar Abrego Garcia, um salvadorenho deportado contra a ordem de um juiz e encarcerado na temida megaprisão de Cecot, em El Salvador. A Suprema Corte dos EUA determinou de forma unânime que o governo facilitasse o retorno de Garcia. Donald Trump simplesmente se recusou a cumprir essa clara determinação, derrubando 20 anos de sadia tradição democrática em apenas 20 minutos. A teoria iluminista da separação dos Poderes, em Montesquieu, assume que o Poder Judiciário dará a ultima palavra em material de interpretação da Constituição escrita.
Quando o governante recusa deliberadamente cumprir as decisões do mais alto tribunal, solapa-se esse alicerce. Sem o acatamento voluntário às regras do jogo, ficamos próximos do cenário hobbesiano que antecede o contrato social, um cenário em que só valem a força, a arbitrariedade e o medo de um Estado totalitário comandado pelas big techs.
Aqui no Brasil, de forma idêntica, pretende-se a aprovação de uma Lei de Anistia claramente inconstitucional, tendo em vista que pretende interferir em casos concretos que estão sob julgamento do Supremo Tribunal (tentativa de golpe de Estado em 8 de janeiro de 2023).
O poder Judiciário se ampara na certeza de que suas decisões serão cumpridas. Trata se de um ato de fé nas instituições e no rule of law.
Aparentemente sólidas e permanentes, as instituições democráticas mostram sua fragilidade diante de governantes que agem como se as leis fossem apenas sugestões. A força de uma Constituição depende da anuência coletiva em respeitá-la; sem esse compromisso, reduz-se a um “guardanapo de coquetel com rabiscos” (Lewis). Essa reflexão ecoa a famosa imagem de Marx de que tudo que é sólido desmancha no ar, indicando o caráter volátil das instituições burguesas sob a pressão de interesses políticos despóticos. O caso Garcia evidencia isso: o Judiciário declara “facilitem o retorno do deportado”, mas, no mundo real, a ordem parece dissolver-se diante do sarcasmo presidencial.
Existe um claro simbolismo nesta atitude, a qual prenuncia uma tentativa da extrema direita mundial se ver livre do Estado de Direito. Com este sentido, os juízes e tribunais seriam um entrave a ser eliminado nesta nova ordem comandada pelo capital especulativo associado às Big Techs.
Do lawfare ao projeto de anistia
A erosão da consciência constitucional de que nos fala Lowestein se inicia com a banalização dos ataques ao Supremo Tribunal, algo que se iniciou há diversos anos através de Tweets dos políticos Deltan Dallagnol, Sergio Moro, Marcel Van Hatten e outros nomes de extrema direita.
Estamos todos anestesiados frente a uma clara tentativa de golpe branco contra o Poder Judiciário e o Estado de Direito. Aceitar uma anistia que ofende o princípio da separação dos Poderes e a própria essência do Estado Constitucional é o primeiro passo para o tecnototalitarismo.
Existiu um ataque insistente ao Supremo Tribunal como última instância de tutela dos direitos fundamentais no Brasil. Pretendia-se o Estado de Polícia. O Grande Irmão de que nos falava Orwell. Escutas clandestinas e vazamentos seletivos para a imprensa foram banalizado no Brasil.
Os inimigos foram execrados em praça pública com uma mão, enquanto a outra desviava recursos bilionários da União para a constituição de uma fundação privada em Curitiba.
As eleições de 2018 foram claramente direcionadas por meio da prisão ilegal do candidato na preferência de todas as pesquisas eleitorais. O lawfare que permitiu a queda de Dilma Rousseff em 2016 acabou por eleger a extrema direita em 2018.
O Conselho Nacional de Justiça se debruçou sobre os desvios da “lava jato” em Curitiba e concluiu pela existência de indícios da prática de crimes de corrupção, organização criminosa e peculato, além da cooptação de agentes públicos brasileiros pelos interesses dos Estados Unidos.
O 8 de janeiro de 2023 surgiu como uma consequência direta destes ataques sofridos através do emprego do lawfare em comunhão de esforços com a grande mídia e a força das big techs.
Os mesmos agentes que lançaram toda sorte de ataques ao Supremo Tribunal hoje patrocinam uma ampla anistia no Congresso Nacional porque sabem que são indiretamente responsáveis por todos os crimes praticados naquela data infame na história do país.
A eventual concessão de uma anistia aos crimes do 8 de janeiro é coerente com a tentativa de instaurar esta nova ordem mundial e aniquilar a prerrogativa do Judiciário.
A recusa de cumprimento de uma decisão unânime da Suprema Corte por parte de Trump anuncia que teremos muitos impasses políticos pela frente porque se pretende eliminar o sistema de freios e contrapesos.
Já assistimos a esta tentativa na Alemanha nazista e na União soviética stalinista. Em ambos os casos, não funcionou.