Entende-se que, usando Adolescência como gatilho, pessoas inteligentes possam incitar conversas importantes. Mérito dessas pessoas. A série, ela mesma, se afoga em um barato melodrama do choque e do mea culpa, duas coisas que não geram pensamento.
Sem que haja legenda, isto é, sem alguém que a comente com alguma qualidade, ela apenas reitera as sirenes construídas a partir do conteúdo sensível à disposição de todos: “estamos em maus lençóis”, “nossos filhos perderam a noção”, “o mundo acabou” e outros clichês do maternalismo.
Por isso, assistir Adolescência é, para alguns, uma experiência frustrante: agita-nos, acima de tudo, ver assunto tão complexo e urgente ser tratado de maneira tão rasa.
Mas essa foi sempre uma regra geral da arte fraca: onde abunda a dramaticidade não sobra lugar para quase nada. Ou, como acontece muito, o excesso de dramaticidade está lá para esconder justamente essa falta, a ausência de densidade e meandros. No caso de Adolescência, essa falta é coroada com desfecho piegas, extraindo da culpa cristã tudo aquilo que ela pode fornecer: drena-se a nascente de uma infantolatria mariana que explode em violência. Nada termina porque a criança amadurece e segue seu rumo; ao contrário, o crime do garoto aborta a sua própria adolescência e implode a família. O urso de pelúcia recoloca o bebê inocente que o mundo já conspurcou. Paraíso perdido. O pano de fundo é o mesmo de sempre: o homem nasce bom; é a sociedade que o corrompe. Verbo truncado: adolescer, virar adulto. Horror puritano: a sexualidade emerge sem freio. Tabu em ruínas: melhor não falar a respeito.
Gente sagaz extrai papo de qualquer farelo. Paulo Emílio Salles Gomes até deu status a isso com sua máxima: “filme ruim que rende conversa boa”. Adolescência confirma a regra — mobiliza plateias e especialistas, mas segue a questão: que mundo é esse em que pais e mães precisam de um subproduto desses para “cair na real”? (Spoiler: nem caem; arte sem miolo costuma ser esquecida em semanas.) Em outras palavras, por que o melodrama de liquidação continua sufocando tudo à base de apelo comercial e chororô? Também dispensamos o elogio quadrado que vende *Adolescência* como aula de moral em tempos de degradação psíquica. Os “conteudistas” seguirão de joelhos diante do santo tríptico — “conscientização”, “ruptura da alienação”, “mais esclarecimento”. Seria um ótimo debate, aliás, justamente porque Adolescência não é didático coisa nenhuma.
O essencial, portanto, é o que Adolescência diz por conta própria — não o que projetamos sobre ela.
O que está lá? A emergência agressiva do desejo entre as crianças e adolescente? A violência de que são (ou sempre foram) capazes? A sua possível perversidade? A insegurança psíquica? A leniência dos pais? O linchamento moral em comunidades conservadoras?
Apesar das aparências, nada de exatamente novo figurou-se nessa série. O enorme desserviço da série é insinuar que a “economia da atenção” seja só uma embalagem high‑tech para problemas de sempre. Não é. Talvez a intenção dos autores fosse o contrário – mas faltou estofo, e o tiro saiu pela culatra.
Depois assustar o espectador, a narrativa de Adolescência simplesmente implode. No terceiro episódio, o garoto vira o clichê do “pavio curto”: pré‑macho tóxico, esmagado e esmagador por suas fragilidades egóicas. Difícil engolir que celular e redes inventaram essa psique; eles apenas agravaram um quadro antigo. Os autores até piscam para temas sérios — fake nudes, pornografia de vingança, automutilação induzida — mas não mergulham em nada. E lá vamos nós, decifrando emojis como se fosse aula de criptografia. Come on, dad… you’re embarrassing yourself.
Então, mais uma vez: o que exatamente se aprende ou se discute sobre o problema, se assim colocado?
Nada, porque tudo é epidérmico. Não se coloca em cena outra coisa que não seja o enredo gritante da cotidianidade, exagerado pela hipérbole do assassinato. Só que esse exagero mata tudo na raiz. O crime extraordinário paralisa a empatia e, ao ser hipertrofiado, desvia o foco da miséria ordinária: o achatamento psíquico do dia a dia. Não basta que a personagem da policial proteste contra o protagonismo do assassino se a série, em sua moldura, repete a “falha” que essa mesma personagem impugna. A garota assassinada é o anátema desse estranho sucesso.
Que tal então uma série em que o crime principal – de autoria difusa – fosse o abuso miúdo e pervasivo, o sufocamento permanente da autoestima a que estamos sujeitos nessa estúpida passarela de aparências? Uma série sem o crime pronunciado talvez não tivesse esse espetacular início. Mas o sofrimento psíquico das redes é uma realidade dolorosa, mesmo quando as crianças não chegam a matar por isso. “Eu sou feio? Me diga que sou bonito!”
Novamente, esse aspecto passa ao largo, é quase uma notinha no diálogo entre o infrator e a psicóloga forense. Esta, by the way, deveria ser cassada, por exercer a profissão daquele modo. Aliás, típico do fim-do-mundismo saxão no qual nada presta: a escola é gerida por incompetentes, os vizinhos são terrivelmente antipáticos, o mundo do trabalho foi triturado, a moral foi para o ralo, a justiça é uma farsa e o Estado aparece puramente como instituição total.
E assim, Adolescência faz sucesso, porém não atinge seus supostos propósitos, não acessa aquela universalidade que tanto comove. Estamos atolados na era do é sobre: o tema grita mais alto que o tratamento (a velha forma). Falta ainda a obra que encare essa urgência com coragem estética. Ela virá.
PS 1: Se a questão é conteúdo, convém acompanhar as manifestações excelentes da juíza Vanessa Cavalieri. Ela parece ter gostado de Adolescência, porém seu trabalho antecede e vale infinitamente mais que o produto da Netflix. Cavalieri nos conta que o cybercrime e outras delinquências morais – gravíssimas – estão alterando o perfil do jovem infrator que chega atualmente ao sistema judiciário. O que explica, inclusive, o frisson da mini-série nas encostas Sul e Norte do Espigão Mestre paulistano. A nova criminalidade não é mais estritamente periférica. Em tempos de narcisismo, tudo é mesmo uma questão de umbigo.
PS 2: O partido radical do plano sequência merece aplausos, mas acaba funcionando como pura virtuose desse naturalismo e não salva o produto de sua insipidez.