Na contramão da Reforma Psiquiátrica, Niterói quer internar à força pessoas em situação de rua

Defensoria Pública contestará legislação. Lei ignora pesquisa da UFF sobre a população de rua de Niterói e pode abrir “filão lucrativo” para Comunidades Terapêuticas no SUS

Por Clara Fagundes, no site do Cebes

O município de Niterói aprovou lei que promove internação compulsória de pessoas em situação de rua.

A “Política Municipal de Acolhimento Humanizado e Assistência Integral a Pessoas em Uso Abusivo de Álcool e/ou Outras Drogas e/ou com Transtornos Mentais” foi publicada hoje, 17/4, no Diário Oficial.

Para especialistas ouvidos pelo Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), a nomenclatura é um “escárnio”.

A Defensoria Pública vai contestar a legalidade da norma.

“Internar compulsoriamente pessoas para retirá-las da visibilidade na zona sul não é ‘acolhimento’. O que está sendo chamado de ‘humanização’ é um ataque frontal à Lei 10.216/2001 [Lei da Reforma Psiquiátrica] e à Lei do Sistema Único de Assistência Social [Lei 12.435/2011]. É um pseudo tratamento, sem respaldo em resultados”, afirma a defensora Crisitane Xavier.

Para Cristiane, trata-se uma manobra “eleitoreira”.

“Temos um esvaziamento dos serviços de assistência social. Onde estão os [Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas] CAPS-AD, as residências terapêuticas? Niterói não tem sequer equipamento para acolhimento de idosos”, critica Cristiane Xavier.

“A Lei 10.216 já prevê, em caráter excepcional e como último recurso, a possibilidade de internação psiquiátrica, revisada periodicamente por junta médica e notificada ao Ministério Público”, pondera. “Niterói reescreve o ‘caráter excepcional’ para normalizar a exceção”.

Para Cláudio Santos, representante do Fórum Permanente sobre População Adulta em Situação de Rua no Rio de Janeiro, a lei reforça esteriótipos, ignora questões estruturais e dificulta o cuidado à população de rua.

“É um retrocesso normativo. A lei parte de generalização indevida de que a pessoa em situação de rua sofre de transtornos mentais e drogadição, ignorando fatores estruturais como desemprego e ruptura de vínculos familiares”, avalia.

“Niterói está abrindo um precedente periogoso, um filão lucrativo no Sistema Único de Saúde (SUS) para que as chamadas ‘Comunidades Terapêuticas’, que não têm reconhecimento do SUAS, possam internar compulsoriamente a população de rua”, afirma Cláudio Santos.

A assistente social Giovanna Cinacchi, secretária-executiva do Cebes e doutora em Política Social (UFF), destaca que a Prefeitura ignorou dados sobre a população em situação de rua em Niterói, sintetizados em pesquisa realizada pela Universidade Federal Fluminense (UFF), em parceria com a Fundação Euclides da Cunha e o próprio município.

“Entrevistamos 157 pessoas em situação de rua em Niterói e os dados demonstram situações sociais complexas e uma ausência grande de serviços. Uma das indicações do projeto foi a construção de uma política municipal para a população de rua. Fizemos várias indicações e recomendações para essa política, que até hoje não aconteceu. Ao invés de aprovar uma lei para internar pessoas pobres, acometidas por problemas de uso abusivo de álcool e drogas, a Câmara Municipal de Niterói deveria construir uma política de serviços integrais, com busca de alternativas de moradia e trabalho para essas pessoas”, afirma a socióloga Lenaura Lobato, vice-presidente do Cebes.

“Identificamos a necessidade de ampliar o atendimento da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), mas a avaliação dos CAPS pela população assistida é positiva”, afirma a pesquisadora.

“O argumento repetido pelo prefeito Rodrigo Neves de que as pessoas em situação de rua não são de Niterói, não se sustenta. Há, de fato, um movimento pendular entre os municípios de Niterói, Rio de Janeiro e São Gonçalo, mas a maior parte dos entrevistados na nossa pesquisa morava em Niterói antes ir para as ruas”, pontua.

Todos apontam o abismo entre a nomenclatura usada na legislação e o que ela propõe de fato.

“A lei fala em ‘participação social’, mas o Comitê Intersetorial de Planejamento, Execução, Acompanhamento e Monitoramento de Políticas Públicas do Município para População em Situação de Rua (Ciampi-Rua) já existe e está inoperante. Que controle social seria esse?”, questiona a defensora pública Cristiane Xavier.

O cebiano Paulo Borges apontou, em nota, considerações sobre o PL 47/2025 e propostas de alteração ao texto, que foi aprovado sem emendas.

Reportagem: Cebes/Clara Fagundes

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Last Update: 17/04/2025