As maravilhas que vêm do povo

por Urariano Mota

Nestes dias, correm na internet o vídeo e a notícia sobre a atendente de lanchonete Katy Suan, do Recife. Ela cantou divina e brilhou no Domingão do Huck, na TV Globo.

O vídeo pode ser visto aqui

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Os comentários sobre a sua apresentação vão de “Há tempos que não me emociono tanto: A balconista de lanchonete que ganhou 3 minutos para brilhar e levou o público às lágrimas”a “Katy não é uma atendente, ela estava atendente, pois o que ela é de verdade é uma grande artista”.  Em todos está presente uma justa admiração e o assombro diante do talento de uma trabalhadora´suburbana,  pois quem diria que de tal meio viesse tal flor? E cantando em inglês!

Mas nós, que viemos de baixo de uma sociedade de classes, que saímos dos mais “humildes” (essa odiosa expressão), bem sabemos de viva carne, alma e experiência, que do meio do povo saem, crescem e lutam pessoas maravilhosas. Mas sem vídeo e sem mídia. Elas vivem com a sua única vida em testemunho de que a humanidade respira, apesar de tudo, sob as mais injustas opressões. Sem pesquisa, somente com a consciência vivida,  escrevi no Dicionário Amoroso do Recife estas maravilhas sem vídeo.

Lembro Jussara, de pele morena e misturada no rosto com traços de índia. Pequena de altura, mas elegante, docemente perfumada, com uma inteligência e graça que poucas vezes pude ver depois em qualquer mulher adulta. Quanta generosidade havia na sua beleza. Ela, tão franca e altiva, se deixava amar e sabia que era amada pelos olhos mais grosseiros.

Lembro Zelita, a moça solteira, Zelita, solteirona, que era discriminada por sofrer de epilepsia. Perdoem a barbárie, mas era assim, pessoas recebiam o tratamento de inválidas, estúpidas e loucas, porque de repente caíam entre convulsões. Quem tocasse na sua baba seria eletrocutado, passaria também a sofrer descargas nervosas. No entanto, nesse Recife bárbaro, Zelita se erguia e ensinava aos meninos contas de dividir, imensas, com divisores de quatro ou cinco algarismos, sorrindo, que era sua maneira de estar com os meninos. Zelita erguida a nos ensinar conta de dividir, pensávamos. Engano. Zelita nos ensinava coração. No chão da terra sem calçada, em aulas magníficas sem pagamento e sem cátedra. Sabemos hoje, Zelita nos desejava e abrigava todos como filhos, de todos os tamanhos.

Lembro Dona Nicinha, a gorda, mãe de Spinelli, que era uma cozinheira magistral, que teve os seus dons elogiados por Gilberto Freyre. (O que é prova de muito bom gosto do velho sociólogo.) Dona Nicinha abria as portas da sua casa de pobre, de paredes de taipa, de trabalho, mantida pelo marido, o gráfico Lindoso, outro herói em silêncio, Dona Nicinha abria a sua casa todos os domingos para receber altos convidados, as pessoas amigas da sua altura e condição social. Quando não, de pior status. Todos ali compareciam em estado de prelibação, à espera da Sétima Maravilha do Arruda e do Recife: o rocambole salgado, macio, a joia da gastronomia máxima de todos os domingos. Compareciam na casinha de taipa da na Rua do Triunfo, para deixar ainda mais satisfeita Dona Nicinha, que satisfeita ficava com a nossa emocionada satisfação.

Lembro os vendedores de mel de engenho, que esquecidos da sua profissão, em prejuízo do seu pequeno lucro, estendiam uma conchinha de mel para as mãos dos meninos sem dinheiro. Lembro e lembro. E noto enfim que o traço comum a todos esses heróis foi a doação do próprio corpo e da própria alma a outros, uma doação que vinha da sua pessoa toda, íntegra e total. Eles, que tão pouco tinham para dar, deram mais do que seria muito dar: a sua pessoa inteira.

Essas pessoas maravilhosas do Recife, sem mídia, sem mais nada. Só e somente com a sua doce humanidade.

Urariano Mota – Escritor, jornalista. Autor de “A mais longa duração da juventude”, “O filho renegado de Deus” e “Soledad no Recife”. Também publicou o “Dicionário Amoroso do Recife”.

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Last Update: 17/04/2025