Entre os dias 07 e 11 de Abril Brasília foi tomada pelo maior fórum de mobilização dos povos originários do Brasil. O 21° Acampamento Terra Livre, organizado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), contou com mais de 8 mil participantes que pintaram a capital federal de jenipapo e urucum.
A Insurgência/PSOL esteve presente em mais um ano, com sua militância distribuída em diversas tarefas e atividades do ATL. Lá pudemos reforçar nossos laços de contribuição e compromisso com o movimento indígena, reconhecendo sua centralidade e protagonismo no combate à extrema-direita, os retrocessos autoritários e o enfrentamento em torno à crise ambiental e civilizacional.
Sob o mote de “A APIB Somos Todos Nós: em defesa da Constituição e da vida”, o ATL 2025 conseguiu – em mais um ano – reafirmar o protagonismo histórico dos povos originários na defesa não apenas dos seus territórios, mas de um outro modo de atuação política em defesa da democracia. O Acampamento reuniu ativistas de todos os biomas do país, organizados nas entidades regionais e de base que compõem a APIB. Lideranças históricas do movimento, como o Cacique Raoni Metuktire e a ministra Sônia Guajajara puderam estar com jovens ativistas, crianças e idosos indígenas, fortalecendo iniciativas conjuntas entre si e junto a organizações da sociedade civil que promovem direitos socioambientais.
O ATL 2025 reafirmou a denúncia dos retrocessos institucionais e legislativos que ameaçam direitos e a proteção dos territórios originários. A carta final do ATL, documento que sintetiza a semana de mobilizações e atualiza o plano de lutas da entidade, expôs as manobras do Supremo Tribunal Federal e do Congresso Nacional — sob hegemonia ruralista e ataque da extrema-direita — para enfraquecer a garantia dos direitos indígenas, em especial através da manutenção da Câmara de Conciliação no STF e da tramitação de projetos como a PEC 48 e a execução da Lei 14.701/2023, conhecida como a lei do Marco Temporal.
Em maior ou menor grau, o ATL 2025 também evidenciou os limites da realização da COP 30 na Amazônia, apontando que a saída para o enfrentamento às mudanças climáticas e a construção da justiça socioambiental passa necessariamente pela incorporação das vozes indígenas na discussão. Não há caminho democrático sem a efetivação da participação política de povos indígenas não apenas na COP 30, senão com a ampliação dos espaços de poder, controle social de políticas públicas e reconhecimento de direitos indígenas, sintetizados na demarcação dos seus territórios.
FAZER DO PSOL TERRA INDÍGENA
Nosso partido tem trilhado um caminho lento mas progressivo na articulação de suas fileiras com o movimento indígena. Consideramos um acerto a co-candidatura à presidência do Brasil em 2018 pelo PSOL, que alçou Sônia Guajajara – dirigente histórica da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira – COIAB – a uma representação nacional do nosso programa partidário. Vivemos desde lá uma possibilidade de diálogos entre os acúmulos do partido e da APIB, em que pese muitas vezes isto não tenha acontecido por falta de iniciativa do PSOL.
Quatro anos depois, as vitórias eleitorais de Sônia Guajajara, por São Paulo, e Célia Xakriabá, por Minas Gerais, como deputadas federais pelo PSOL, significaram um passo importante. Ambas têm sido fundamentais na denúncia do racismo ambiental, na defesa dos territórios e na articulação de políticas públicas voltadas para os povos originários. Nesse mesmo sentido, as eleições de Lu Pataxó (Pau Brasil-BA) e Ingrid Sateré Mawé (Florianópolis-SC), em 2024, apontam que seguimos no caminho certo, ainda que longe de ser suficiente para garantir as transformações estruturais necessárias.
Ainda em 2022, com a eleição do presidente Lula, Sônia Guajajara passa a compor o recém-criado Ministério dos Povos Indígenas (MPI), e tem tido uma gestão marcada por sucessivas iniciativas de fortalecimento dos povos indígenas. Muitas delas encontram barreiras na conjuntura regressiva e polarizada que vive o Brasil: o avanço do latifúndio e do agronegócio, da extrema-direita e do golpismo. Mas também há barreiras internas ao Governo Lula, exemplificadas pela atuação anti-indígena do Ministério da Casa Civil, de Rui Costa, e do Palácio da Justiça, ocupado pelo Ministro Lewandowski. Mesmo com seu compromisso manifesto na campanha presidencial, Lula tem apenas homologado demarcações já em curso, identificado terras indígenas, mas não houve avanço significativo nas demarcações. Por outro lado, a demora na regularização fundiária tem intensificado a violência contra os povos indígenas em diferentes regiões, onde o histórico de violências é preocupante, a exemplo dos recentes conflitos no extremo sul da Bahia e do avanço da milícia rural autointitulada “Invasão Zero”.
O PSOL deve cumprir o papel de apoiar Sônia Guajajara no seu difícil trabalho à frente do Ministério. É preciso que Sônia tenha condições de trabalhar, com orçamento e estrutura adequada no MPI. Porém, na nossa leitura, isto compreende a pressão ao Governo, nas ruas e na institucionalidade, para fazer avançar os processos de demarcação de terras indígenas e de fortalecimento dos mecanismos de enfrentamento à crise climática.
Isso reflete como o PSOL não pode se manter à margem dessa energia combativa. Para que o partido seja de fato um instrumento de organização popular, é cada dia mais urgente que não seja apenas um aliado passivo da luta indígena, mas sim um polo ativo na elaboração de políticas públicas, na formação de lideranças indígenas dentro do próprio partido, na resistência contra os ataques aos povos originários, como os impactos da exploração predatória de combustíveis fósseis e megaprojetos de energia, a exemplo da pesquisa sobre petróleo na Foz do Amazonas, na Margem Equatorial. Nosso partido precisa dar um passo adiante e superar seu estágio de “simpatizante” da causa indígena e se tornar, de fato, um partido indígena, no sentido de garantir espaço, estrutura e centralidade às pautas dos povos originários em sua atuação. Isso significa não apenas apoiar as reivindicações do movimento indígena, mas incorporar essa luta como parte fundamental do seu programa e da sua identidade política.
Um acúmulo construído através da Articulação dos Indígenas do PSOL, que durante o ATL apresentaram a presidenta nacional, Paula Coradi, e para a líder da nossa bancada na Câmara Federal, Taliria Petrone, um documento de balanço da conjuntura sob a perspectiva indigena e com alguns apontamentos sobre nossa relação com o movimento dentro e fora das nossas fileiras. E da importância de garantirmos as condições para realização do Encontro de Indígenas, para fundação da Setorial Indigena, e para pensarmos o Seminário de Candidaturas Indígenas para o ano que vem. Iniciativas que precisam ser efetivadas e levadas em consideração no processo de atualização programática.
A REORGANIZAÇÃO DA ESQUERDA PASSA PELO MOVIMENTO INDÍGENA
O ATL 2025 iniciou em meio a diversos processos de lutas e mobilizações protagonizadas por indígenas em todo o Brasil. A ocupação da Secretaria de Educação do Estado do Pará pela revogação da lei 10.820/2024, que na prática colocava em xeque o programa de ensino voltado às comunidades indígenas, quilombolas e ribeirinhas, foi um dos eventos mais marcantes da luta dos indígenas em contexto urbano e moradores de Terras Indígenas dos últimos anos e demonstrou a disposição combativa dos povos originários. O que também aumentou as expectativas em torno do potencial que o 21º Acampamento poderia trazer, apresentando novos sujeitos e abrindo possibilidades na conjuntura.
A trajetória dos ATLs vêm sendo marcada historicamente pelo fortalecimento de determinados sujeitos políticos, expresso pela presença de muitas mulheres na liderança. Isso se materializa, por exemplo, em diversas intervenções regionais e de base coordenadas por mulheres, além de atividades realizadas em todos os dias do Acampamento pela Articulação Nacional de Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade – ANMIGA, fundada em 2021.
No entanto, podemos dizer que o ATL 2025 foi muito marcado pelo protagonismo de indígenas LGBTQIAPN+. Organizados em diálogo com o Coletivo Tybyra – e com participação da Coordenação de Políticas para Indígenas LGBTI+ do Ministério dos Povos Indígenas – diversas organizações locais/regionais de indígenas LGBTQIAPN+ se encontraram no ATL 2025. Com uma programação própria, que incluiu reuniões auto-organizadas de indígenas trans, travestis e não-binários; seminário, noite cultural e ato manifesto, o movimento LGBTQIAPN+ protagonizou com espaços dinâmicos, potentes e com muita disposição para organizar sua intervenção. O que de fato abriu uma nova e importante característica no movimento indígena brasileiro, sobre seus sujeitos e formas de lutar.
A luta contra a LGBTQIAPN+fobia fora e dentro das aldeias parece cada vez mais expressiva e corajosa. Especialmente impulsionada por jovens, a discussão coloca em evidência os efeitos das violências físicas e emocionais e os impactos da monocultura de gênero e sexualidade imposta pela colonização. E que já mostrou que pode garantir espaços importantes, como a recente conquista de uma coordenação na SESAI e uma vaga na direção da APIB. Saudamos essas iniciativas com muito entusiasmo, concordando com o movimento indígena de que não há justiça climática se algum dos setores que se movem em luta por território e em defesa do meio ambiente simplesmente ficar “para trás”.
Lu Pataxó, vereadora insurgente e LGBTQIAPN+, membro do Instituto Ipakéy, para nós é o reflexo de um novo perfil que surge e que precisa ser parte do processo de reorganização da esquerda. Entender o momento histórico que estamos vivendo, passa diretamente por compreender quem são os sujeitos e suas dinâmicas, muitas vezes próprias dos seus processos de formação, como é o caso dos povos originários. O PSOL não pode errar nessa leitura e cair em discursos frágeis e reducionistas.
PROTAGONISMO INDÍGENA E LIMITES DA COP 30
A realização da COP 30 na Amazônia brasileira, em 2025, vem sendo anunciada pelo Governo Lula como uma oportunidade histórica para o protagonismo do país na agenda climática global. No entanto, como sintetizado em diversos momentos do ATL, para o movimento indígena e para nós ecossocialistas esse evento carrega profundas contradições. Lideranças e organizações denunciam que, embora o evento ocorra em território ancestral, os povos indígenas seguem à margem dos processos decisórios e de formulação das diretrizes oficiais. Sem consulta livre, prévia e informada – um direito garantido pela Convenção 169 da OIT e pela Constituição Federal, os povos indígenas questionam a legitimidade de uma COP na Amazônia que não reconhece a autoridade dos seus verdadeiros guardiões.
Durante o ATL 2025, essa crítica ao processo de condução da COP-30 se expressou com muita força. A carta final do ATL reafirma que não há saída para a crise climática sem a demarcação das terras indígenas e a proteção dos modos de vida tradicionais, apontando a exclusão indígena das decisões sobre a COP 30 como mais uma expressão do colonialismo ambiental que transforma territórios originários em vitrine internacional, mas silencia suas vozes e invisibiliza suas pautas. A resposta do movimento indígena foi a criação da Comissão Internacional Indígena para a COP 30, construída de forma autônoma pelas organizações e lideranças, para garantir que os povos originários estejam não apenas presentes, mas no centro das negociações climáticas.
Valorizamos e nos somamos a essa denúncia: a COP 30 não servirá de nada se não levar em consideração as vozes dos povos que há séculos preservam a Amazônia, e não reduzida a uma agenda de governos e grandes corporações que praticam o greenwashing. Seguiremos mobilizados, junto às organizações indígenas, movimentos sociais e sociedade civil, para que o protagonismo dos que sofrem na pele os efeitos do racismo ambiental e da crise climática seja condição inegociável em qualquer debate sobre o futuro do planeta.
CONTRA A VIOLÊNCIA E A REPRESSÃO, O MOVIMENTO INDÍGENA MOSTRA O CAMINHO: RESISTÊNCIA E LUTA
Na quinta-feira passada, a Marcha de encerramento do ATL 2025, sob o mote “A resposta somos nós”, reuniu mais de 8 mil indígenas e apoiadores no Eixo Monumental de Brasília. O ato denunciava os ataques aos direitos dos povos originários e expressava a dignidade de séculos de resistência daquelas que lutam por território, pela vida e pela natureza. No entanto, como tem sido marca da história brasileira, a resposta do Estado foi mais uma vez a repressão.
O Departamento de Polícia Legislativa da Câmara e a Polícia Militar do Governo do Distrito Federal, em outras situações bastante condescendentes com manifestações golpistas, desta vez atacaram de forma totalmente desproporcional um destacamento da Marcha que se aproximou da Câmara dos Deputados. Mulheres, crianças, anciãos e lideranças tradicionais foram atacados com bombas de gás lacrimogêneo e spray de pimenta. Entre as vítimas esteve nossa camarada, a deputada federal Célia Xakriabá (PSOL-MG), agredida enquanto exercia seu mandato e denunciava a violência contra seu povo. A repressão não foi acidente — foi premeditada. Um dia antes, em reunião com representantes do movimento indígena, um agente público do Itamaraty declarou: “Deixa descer logo. Deixa descer e mete o cacete.”
Esse episódio escancara o racismo institucional e a lógica colonial que opera nas forças de segurança brasileiras. Demonstra que, ainda que ocupem espaços no Parlamento e em instâncias do governo, os povos indígenas seguem tratados como inimigos quando ocupam o centro do poder. A Insurgência/PSOL repudia enfaticamente a repressão contra o Acampamento Terra Livre e se solidariza com todas as lideranças e comunidades agredidas.
Agradecemos a oportunidade de termos vivido intensamente mais um ATL. Seguimos firmes e reencantados com a luta do movimento indígena pela revogação da tese do Marco Temporal, pela demarcação dos territórios originários e por um projeto de país onde a democracia não seja um privilégio. Queremos seguir aprendendo com a APIB e as entidades de base a reinventar futuros, adiar o fim do mundo, a segurar a queda do céu. Entre os dias 04 e 08 de Agosto a Marcha de Mulheres Indígenas chega até Brasília, em mais uma oportunidade de ampliarmos o debate e fortalecermos laços para o próximo período. A Tenda Pajé Nega Pataxó centralizará nossos esforços de debates e trocas, assim, nos colocamos à disposição, como organização e partido, à ombrear com o movimento indígena em resistência à extrema-direita e na construção de um projeto de transição ecológica justa, ecossocialista e com protagonismo dos povos originários. A luta pela terra, pelo território e pela vida é a luta de todos nós. E diga ao povo que avance!
Lu Pataxó é vereadora de Pau Brasil-BA
Cesar Fernandes, Davidson Brito e Well Leal são da Executiva Nacional da Insurgência