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Brasil precisa equilibrar defesa de Direitos Humanos sem comprometer suas relações com regimes ‘problemáticos’

Por Armando Alvares Garcia Júnior

O Brasil enfrenta desafios crescentes na defesa dos direitos humanos em um cenário global marcado pela ascensão de regimes autoritários e pela crise do multilateralismo. O sistema internacional, sustentado pela Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e por tratados como o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966, tem perdido força diante da seletividade na sua aplicação por grandes potências. A política externa brasileira precisa equilibrar sua defesa histórica desses princípios sem comprometer relações comerciais e estratégicas fundamentais.

A fragilização dos mecanismos de proteção dos direitos humanos é evidente na atuação do Conselho de Direitos Humanos da ONU, da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e da Corte Interamericana de Direitos Humanos. A resistência de Estados influentes, como China, Rússia e Estados Unidos, em cumprir determinações de entidades que perseguem objetivos similares, enfraquece sua credibilidade e reduz a capacidade de ação de países emergentes. A dificuldade da ONU em fazer valer as recomendações do Comitê de Direitos Humanos e do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos ilustra essa limitação.

Brasil teve papel importante na consolidação dos mecanismos internacionais

O Brasil, tradicionalmente defensor do multilateralismo, desempenhou um papel fundamental na consolidação de mecanismos internacionais de direitos humanos. Durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, entre 1995 e 2002, o país ampliou sua adesão a tratados internacionais e fortaleceu sua participação na ONU. Em 7 de fevereiro de 2000, assinou o Estatuto de Roma, que estabeleceu o Tribunal Penal Internacional, e o ratificou em 20 de junho de 2002. O Decreto Legislativo nº 112, de 6 de junho de 2002, aprovou o tratado, enquanto o Decreto nº 4.388, de 25 de setembro de 2002, incorporou o Estatuto ao ordenamento jurídico brasileiro. Em 2001, o Brasil participou da Conferência Mundial contra o Racismo, realizada em Durban, reafirmando seu compromisso com a luta contra a discriminação racial e a intolerância.

Nos dois mandatos de Luiz Inácio Lula da Silva, entre 2003 e 2010, a diplomacia brasileira intensificou sua presença em fóruns multilaterais e buscou equilibrar a defesa dos direitos humanos com uma política externa voltada ao fortalecimento das relações Sul-Sul. Em 2006,foi criado o Conselho de Direitos Humanos da ONU para substituir a Comissão de Direitos Humanos, e o Brasil foi eleito para exercer mandatos de 2006 a 2008 e de 2008 a 2011. Em 2007, o país assinou a Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado, posteriormente ratificada e finalmente promulgada em 2016 mediante o decreto nº 8.767, de 11 de maio. Em 2009, o governo lançou o terceiro Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), consolidando diretrizes para a promoção dos direitos fundamentais no país e reforçando compromissos internacionais na área.

Laços econômicos com países de histórico controverso

Com o retorno de Luiz Inácio Lula da Silva à presidência em 2023, houve uma retomada da presença brasileira em fóruns internacionais de direitos humanos. Em 10 de outubro de 2023, o Brasil foi eleito para um novo mandato no Conselho de Direitos Humanos da ONU, com 144 votos, marcando sua sexta participação no órgão. O governo reafirmou compromissos com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e o Acordo de Paris, além de reforçar a pauta ambiental e social na ONU. A retomada, com maior vigor, das relações com organismos como a Organização dos Estados Americanos (OEA) e o Mercosul também foi uma prioridade. Entretanto, a necessidade de manter laços econômicos com países de histórico controverso, como China e Arábia Saudita (ambos membros do BRICS+), apresenta desafios à coerência dessa política.

A China se consolidou como o principal parceiro comercial do Brasil desde 2009. Em 2022, o comércio bilateral atingiu um recorde de US$ 150,5 bilhões, com exportações brasileiras totalizando US$ 89,7 bilhões e importações de US$ 60,7 bilhões. Em 20 de novembro de 2024, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva recebeu o presidente chinês Xi Jinping em uma visita de Estado ao Brasil. Durante o encontro, foram assinados 38 acordos em áreas como agricultura, comércio, investimentos, infraestrutura, indústria, energia, mineração, finanças, ciência e tecnologia, comunicações, desenvolvimento sustentável, turismo, esportes, saúde, educação e cultura, reforçando os laços entre os dois países.

A Arábia Saudita também ocupa uma posição significativa como parceira comercial do Brasil no Oriente Médio. Em 2024, as exportações brasileiras para a Arábia Saudita totalizaram aproximadamente US$ 3,2 bilhões, enquanto as importações somaram cerca de US$ 3,05 bilhões. Em maio de 2024, o vice-presidente Geraldo Alckmin liderou uma comitiva de ministros em uma missão à Arábia Saudita e China, visando fortalecer as parcerias existentes e abrir novas oportunidades de negócios.

A trajetória do Brasil na promoção e defesa dos direitos humanos no cenário internacional reflete sua postura diplomática de longo prazo, ao mesmo tempo em que se equilibra entre compromissos históricos e os desafios impostos pela conjuntura geopolítica e econômica global.

A seletividade na aplicação dos direitos humanos por potências globais também influencia a política externa brasileira. A União Europeia impõe sanções a países como Rússia e Belarus (Bielorrúsia), mas mantém relações estreitas com aliados estratégicos que violam direitos fundamentais. Na OEA, Estados Unidos e Canadá pressionam governos latino-americanos (Venezuela, Nicarágua, etc.), enquanto evitam condenar abusos cometidos por aliados próximos (Colômbia, Honduras). O Brasil precisa navegar nesse cenário sem comprometer sua credibilidade e ao mesmo tempo proteger seus interesses comerciais e estratégicos.

Estratégia de equilibrar valores e pragmatismo é o desafio constante

A economia brasileira depende de parceiros comerciais com históricos problemáticos de direitos humanos. A China, maior importadora de produtos brasileiros, é alvo de críticas por sua repressão à minoria uigur e censura estatal. A aproximação do Brasil com países do Oriente Médio e da África também inclui nações com registros negativos em liberdade política e respeito aos direitos civis. A estratégia de equilibrar valores e pragmatismo é um desafio constante para a diplomacia brasileira.

Internamente, o Brasil dispõe de um arcabouço normativo robusto. A Constituição Federal de 1988 reconhece a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República no artigo primeiro (art. 1, inciso III) e estabelece a prevalência dos direitos humanos como princípio das relações internacionais no artigo quarto (art. 4, II). O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Extraordinário 466.343/SP, conferiu aos tratados internacionais de direitos humanos status supralegal. A tradução dessas normas em políticas externas eficazes, contudo, ainda é um desafio.

A diplomacia brasileira precisa reforçar sua atuação no Conselho de Direitos Humanos da ONU e na OEA, buscando consenso em temas sensíveis e mediando conflitos internacionais. O fortalecimento de parcerias regionais proporcionaria maior autonomia na condução da política de direitos humanos, reduzindo a dependência de blocos hegemônicos. A inclusão de acadêmicos, especialistas e representantes da sociedade civil contribuiria à adoção de estratégias mais equilibradas, evitando instrumentalizações políticas do tema. Negociar cláusulas de direitos humanos em tratados comerciais também fortaleceria o compromisso do Brasil sem impor barreiras ao comércio exterior. Vincular essa pauta a políticas ambientais e sociais ampliaria a aceitação global da defesa dos direitos fundamentais, facilitando a inserção e consolidação do Brasil em fóruns internacionais.

O governo Lula busca reposicionar o Brasil como protagonista no debate internacional sobre direitos humanos, mas enfrenta limitações impostas pela realidade geopolítica. Para que essa estratégia seja eficaz, é necessário combinar princípios com pragmatismo, garantindo que o país preserve sua soberania sem renunciar a sua histórica defesa da dignidade humana. O equilíbrio entre essas forças determinará o sucesso da política externa brasileira nos próximos anos.

  • Armando Alvares Garcia Júnior
    PDI. Derecho Internacional Público y Relaciones Internacionales, UNIR – Universidad Internacional de La Rioja

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Last Update: 17/04/2025