Antes de comentar O Louco do Cati, obra-prima da literatura brasileira lançada em 1942, é preciso tomar um momento para apreciar a trajetória de seu autor, ­Dyonelio Machado. Além de ter sido romancista e poeta, Machado – que nasceu em Quaraí, interior do Rio Grande do Sul, em 1895 – atuou como jornalista, médico psiquiatra e membro do Partido Comunista Brasileiro.

Seu pai foi morto a facadas quando ele tinha 7 anos, o que o levou muito cedo à necessidade do trabalho. Formado em Medicina em Porto Alegre, vai ao Rio de Janeiro se especializar em psiquiatria, no início da década de 1930, quando descobre também a incipiente psicanálise.

Esses elementos são determinantes para a realização de O Louco do Cati, narrativa de frases curtas e intensas que não apenas lida com a “loucura” do protagonista, mas acompanha a precariedade da vida dos personagens envolvidos em uma viagem pelo Brasil.

Aos poucos entende-se que um grupo de amigos decide ir ao litoral para ver o mar. O surgimento de um homem com um “chapéu engraçado” transforma, porém, a história: “sem recursos”, o louco do ­Cati “representava um peso morto”, escreve o narrador, com seus “braços meio pendentes”. Ainda assim, sem grandes explicações, ele é incorporado à caravana, que vai ganhando contornos grotescos.

O Louco do Cati. Dyonelio Machado. Todavia (320 págs., 89,90 reais) – Compre na Amazon

O louco de Dyonelio é tão exasperante quanto enigmático. Ele pouco fala e pouco se manifesta, mas sua presença confere excepcionalidade à narrativa. Ele é, ao mesmo tempo, contraditório e autêntico, uma mescla do Bartleby de Melville com o Meursault de Camus, com toques do “homem sem qualidades” de Musil.

Algo dessa instabilidade – de corpo e espírito – se explica pelo fato de Dyonelio ter elaborado o romance em um momento em que estava muito doente: sem sair da cama, sofrendo do coração, ele dita todo o livro para a esposa e a filha.

É possível dizer que o percurso externo da narrativa avança de modo claro, facilitado pela forma breve dos capítulos. O louco e outro personagem são presos em Santa Catarina, seguindo viagem até o Rio de Janeiro – ainda capital do País –, depois São Paulo e, por fim, o retorno ao Rio Grande do Sul. Nesse ponto, cabe o parêntese: é uma pena que a nova reedição não tenha mantido o inestimável mapa, desenhado pelo próprio Dyonelio, reproduzido na edição definitiva da Planeta, de 2003.

Mais complexo que o caminho geográfico é, contudo, o percurso interno, que mais coloca perguntas do que oferece respostas: até que ponto o louco tem consciência dos eventos que acontecem ao seu redor? Até que ponto os acontecimentos do passado – as reminiscências do louco que o narrador enxerta na história – interferem naqueles do presente? Até onde vai a sombra funesta desse “Cati” (um rio, uma região, um quartel de má fama no interior do País) sobre as ações dos personagens?

Vale destacar o olhar detalhista e cuidadoso de Dyonelio Machado em seu romance: os gestos e as posturas, os termos empregados (“o ar fantástico pela sua vetustez”), o uso dos chapéus, as biroscas de beira de estrada (prometendo, entre outras coisas, “líquido escuro e fumegante”), o interior das prisões (as carceragens, as salas de detidos), em suma, o Brasil da época de Getúlio Vargas, entre as décadas de 1930 e 1940.

O Louco do Cati deve ser celebrado como o acontecimento literário que é: complexo em suas ideias e em sua realização, é um documento precioso de uma época e, mais importante, um patrimônio vivo da cultura nacional. •


VITRINE

Por Ana Paula Sousa


Depois de A Inteligência das Aves, a Fósforo lança A Sabedoria das Corujas (336 págs., 124,90 reais), outro mergulho de Jennifer Ackerman na ciência e na natureza. Desta vez, ela se debruça sobre as aves que, no imaginário popular, estão ligadas às ideias de sabedoria e magia.

“Preso em casa, o cronista se vê condenado a flanar por seus livros e por suas memórias”, escreve, em um dos textos de A Crônica Não Mata – Notas do Isolamento (Arquipélago, 144 págs., 59, 90 reais), ­Luís Henrique Pellanda, dando as pistas daquilo que seu novo livro contém.
A descrição de Karen Jennings do guardião de um farol a lidar com o corpo deixado entre as pedras tem a potência dos grandes textos. E é com isso que se inicia Uma Ilha (Bertrand, 224 págs., 54,90 ­reais), romance sul-africano que revê as marcas que a violência política deixou no país.

Publicado na edição n° 1358 de CartaCapital, em 23 de abril de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Documento vivo de uma época’

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Last Update: 16/04/2025