Essa anistia não é sobre perdão: é sobre um projeto de poder

Enquanto o governo acredita estar negociando no Congresso, a extrema-direita já instalou uma operação de guerra. A anistia é apenas a isca: o verdadeiro plano é transformar 2026 em um cenário de colapso institucional, onde nem o voto, nem a democracia, importam mais

por Reynaldo Aragon e Sara Goes

A cruzada pela anistia aos golpista do 8 de Janeiro, independentemente de seu desfecho, representa um sucesso estrondoso para a extrema direita. E agora estamos vendo esse avanço se consolidar. O debate público sobre anistiar ou não os envolvidos no 8 de janeiro, longe de ser uma disputa jurídica legítima, vem sendo cuidadosamente armado como uma operação psicológica de longo curso. Trata-se de um script que aposta no desgaste institucional prolongado, na saturação cognitiva da opinião pública e, sobretudo, na construção de um imaginário de perseguição política contra a direita,  ainda que essa “direita” tenha atentado frontalmente contra a ordem democrática.

A questão central aqui não é a possibilidade de Bolsonaro ou seus aliados serem anistiados. O que está em jogo não é o veredito final, mas sim o percurso narrativo até ele. O bolsonarismo entendeu perfeitamente a lógica da guerra híbrida: transformar cada espaço institucional em uma arena de combate simbólico. A CPI dos atos de 8 de Janeiro, as denúncias da PGR, os julgamentos no STF, os embates no Congresso, tudo é manipulado para compor um roteiro de guerra psicológica onde o “cidadão de bem” é retratado como vítima de um sistema repressivo, corrupto e injusto. Essa é a lógica da psyop, e ela está operando com força total. O alvo é mais ambicioso: criar uma atmosfera crônica de instabilidade institucional até 2026, tornando inviável qualquer possibilidade de uma eleição democrática plena. Uma eleição marcada por suspeitas, ruídos, desconfianças, sabotagens e paralisações,  essa é a vitória real do projeto autoritário. E não importa se Bolsonaro estará preso, inelegível ou no Palácio do Planalto. O que importa é manter o país no caos narrativo. O verdadeiro objetivo da extrema direita é garantir o controle máximo sobre o poder legislativo, onde reside hoje o centro real de poder no Brasil. É ali que se delibera sobre políticas públicas, se conduz o impeachment de ministros do Supremo, se bloqueia ou impõe pautas de governo, e se torna possível, com maioria regimental, inviabilizar por completo qualquer tentativa de governar que não esteja alinhada aos interesses desse bloco autoritário. O Executivo pode até ser ocupado por um adversário, mas se o Parlamento estiver sitiado por extremistas, a democracia se transforma em teatro. Esse é o projeto: instalar uma engrenagem institucional travada, disfuncional, incapaz de promover qualquer avanço popular ou progressista, enquanto o discurso do “governo comunista que não deixa o Brasil andar” é martelado diariamente nas redes e nas tribunas. Uma estratégia de guerra por dentro da legalidade, onde a aparência democrática serve para encobrir o colapso planejado das instituições.

Essa estratégia é mais velha do que andar pra frente, mas ela se renova e segue o manual das novas direitas globais que aprenderam a manipular algoritmos, criar bolhas de indignação permanente e operar no limite entre legalidade e desordem. O Brasil, mais uma vez, se consolida como um laboratório dessas táticas. E essa anistia, com todos os seus absurdos e contradições, é o cavalo de Troia perfeito para infiltrar essa instabilidade no coração do regime democrático.

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1. O papel estratégico da anistia como narrativa de guerra híbrida

A anistia não é apenas um dispositivo jurídico debatido no Congresso. Ela é, antes de tudo, uma narrativa em disputa. E, como toda narrativa mobilizada na guerra híbrida, sua função não está em resolver um conflito institucional, mas em perpetuar o conflito no imaginário coletivo. O que a extrema direita conseguiu fazer, com precisão estratégica, foi transformar o debate sobre a responsabilização dos golpistas de 8 de janeiro em um campo minado de tensões simbólicas: um suposto “perdão cristão” contra um “sistema vingativo”, uma “reconciliação nacional” contra uma “justiça de exceção”. É um roteiro escrito para emocionar, vitimizar e cooptar. (🔍 Governador Zema publica vídeo sobre perdão em suas redes)

Trata-se, portanto, de uma operação psicológica de longo curso, com efeitos de saturação discursiva e corrosão institucional. O simples fato de se debater uma anistia para criminosos confessos, que atentaram contra as instituições da República, já é em si um sintoma de que o campo democrático foi deslocado da ofensiva para a defensiva. Cada dia em que o tema ocupa o centro da arena pública é um dia em que a extrema direita vence, pois mantém viva a polarização, ativa sua base radicalizada e transforma golpistas em mártires. É a lógica do lawfare às avessas: se antes o sistema jurídico era usado para perseguir lideranças populares com falsas acusações, agora é manipulado para proteger criminosos sob o pretexto de pacificação.

Esse é o coração da guerra híbrida contemporânea: confundir, paralisar, dividir. A anistia é uma bomba-relógio discursiva plantada no centro da democracia. E sua contagem regressiva é ativada cada vez que o Congresso debate, a imprensa reproduz e a opinião pública se contamina com o dilema moral fabricado. Não há dilema real aqui. Há uma tentativa deliberada de reescrever os fatos, desfocar os crimes e inverter a culpa. É a velha técnica da vitimização estratégica, que serve de base para o retorno triunfal do bolsonarismo, não necessariamente pela presidência, mas pelo poder legislativo e pelo controle narrativo da sociedade.

A realidade é que o bolsonarismo aprendeu com seus aliados internacionais. Inspirou-se no trumpismo e no modelo húngaro de Orban, aperfeiçoou sua guerra cultural, e passou a operar com a frieza de quem sabe que a arena pública não é mais o lugar da verdade, mas da performance. E nesse jogo, eles atuam com roteiro, direção, distribuição e elenco. A anistia é só um episódio dentro de uma série longa e bem financiada. E a cada novo capítulo, o sistema democrático vai sendo corroído por dentro, não pela força das armas, mas pela astúcia da palavra.

2. A esquerda e o governo Lula subestimam o campo de batalha

Enquanto a extrema direita opera com precisão cirúrgica no campo da guerra informacional, da vitimização estratégica e da mobilização emocional contínua, boa parte da esquerda e, em especial, setores do governo, ainda acreditam que estão disputando eleições dentro das regras convencionais da democracia liberal. Esse erro de diagnóstico é fatal. Não estamos mais falando de política institucional nos moldes clássicos. Estamos falando de guerra híbrida, de desestabilização emocional e cognitiva da sociedade, de destruição da confiança nas instituições e de ocupação contínua do imaginário público.

O bolsonarismo entendeu perfeitamente que o poder hoje não está apenas no Planalto está, sobretudo, no Congresso, nas redes sociais, nas igrejas, nas câmaras municipais, no TikTok, no WhatsApp, nos influencers, nos think tanks e nas bancadas armadas do legislativo. A presidência pode até ser uma vitrine, mas o verdadeiro motor da destruição democrática está nos bastidores da máquina legislativa e no controle da opinião pública. E eles já estão posicionados. Como o próprio Bolsonaro afirmou com clareza no evento flopado em Copacabana neste ano: “Me deem 50% do parlamento”  e o restante da engrenagem entra em colapso. Com essa força institucional e simbólica, conseguem pautar o debate nacional, travar as ações do Executivo, chantagear o Judiciário e legislar em favor da barbárie, sem precisar derrubar presidentes, basta paralisá-los.

O governo Lula, ao tentar buscar uma governabilidade possível com um Congresso hostil, muitas vezes se vê obrigado a recuar em frentes estratégicas, abandonando a disputa narrativa e simbólica em nome de uma estabilidade artificial. O problema é que, do outro lado, a extrema direita não está interessada em estabilidade, mas sim em manter o clima de guerra permanente. Cada recuo do campo democrático, cada gesto conciliador, cada silêncio diante das ameaças, é interpretado como fraqueza e, pior, como autorização tácita para avançar mais.

Falta, muitas vezes, à esquerda institucional, a compreensão de que estamos em um campo de batalha onde não basta ter razão ou bons projetos. É preciso ter clareza estratégica, resiliência discursiva e capacidade ofensiva no campo simbólico. O bolsonarismo joga com o ódio, a mentira, o medo e a manipulação, e a resposta não pode ser apenas nota de repúdio ou apelos à racionalidade. É preciso compreender, de forma concreta, que o Brasil se tornou um dos maiores laboratórios de guerra híbrida do mundo. E que, se a esquerda não ocupar os espaços onde a batalha realmente acontece, redes, cultura, legislativo, mídia, subjetividade, a extrema direita tomará conta de tudo com o sorriso cínico de quem nunca jogou limpo, mas sempre jogou para vencer.

3. 2026 – o objetivo não é vencer, é inviabilizar

A extrema direita já entendeu algo que o campo progressista parece ainda não ter assimilado: a eleição de 2026 não precisa ser vencida para ser vencida. O verdadeiro projeto em curso não é o de retornar legitimamente ao poder pelas vias tradicionais do voto popular, é o de sabotar previamente a legitimidade do processo eleitoral, minar a confiança nas instituições e criar uma atmosfera de instabilidade tal que inviabilize qualquer governo progressista ou minimamente democrático. O que está em jogo não é apenas o próximo mandato presidencial, mas o funcionamento mínimo da democracia como conhecemos.

Esse movimento não começou agora. Ele se articula desde 2014, foi testado com sucesso em 2018, elevado à máxima potência em 2022, e agora ganha novo fôlego com a narrativa da anistia. Ao transformar criminosos em perseguidos políticos e golpistas em vítimas da “ditadura do STF”, o bolsonarismo prepara o terreno para 2026: o cenário ideal é aquele em que, qualquer que seja o resultado das urnas, o país esteja mergulhado num colapso institucional que permita ou um novo 8 de janeiro,  mais organizado, ou um Congresso tão radicalizado que paralise qualquer ação governamental.

Eles podem muito bem aceitar a reeleição de Lula, desde que isso venha acompanhado de uma maioria legislativa bolsonarista que promova o impeachment de ministros, bloqueie pautas sociais, desmonte políticas públicas e transforme o Executivo num refém. A imagem de um presidente popular, reeleito democraticamente, mas travado por um Congresso que age como milícia institucional, é o símbolo perfeito da distopia bolsonarista: o governo existe, mas não governa; o povo vota, mas não decide; as instituições funcionam, mas não servem. (🔍Projeto PL Rota 22)

Essa lógica já está em operação, e Fortaleza foi o exemplo mais claro disso. Na capital cearense a extrema direita perdeu a eleição por menos de 1% dos votos, em um ensaio para 2026. As eleições municipais de 2024 serviram como ensaio geral para o ano que vem, e os bolsonaristas sabem que têm todas as ferramentas necessárias para capturar corações e mentes em larga escala: redes sociais desreguladas, financiamento oculto, comunicação emocional de massa, bancadas parlamentares articuladas e um Judiciário acuado por pressões e chantagens. Em outras palavras: a máquina está montada e o que falta é apenas o estopim narrativo. E é aí que entram em cena a anistia, o vitimismo, o “sistema contra nós” e o colapso programado.

O campo democrático precisa compreender, com urgência, que o jogo em 2026 será jogado antes do apito inicial. Ele já está sendo jogado agora nas CPIs, nas fake news, no TikTok, nas câmaras municipais, nas lives de domingo, e até mesmo nas sessões do STF. Quem chegar às eleições achando que basta ter voto, programa de governo e apoio popular, estará entrando no campo minado de uma guerra que se trava em outras esferas. Porque, para eles, a vitória não está na urna. Está no caos.

4. Não entender a guerra é perder sem lutar

A maior tragédia da esquerda institucional e dos setores democráticos do Brasil, neste momento histórico, não é a ausência de força eleitoral ou de propostas concretas. É a incapacidade de compreender que estão inseridos em uma guerra, e não em um debate democrático tradicional. Essa guerra não é feita com tanques ou fuzis,  embora não se deva duvidar de que o bolsonarismo tenha essa carta na manga, mas com narrativas, símbolos, algoritmos, chantagens institucionais e manipulação afetiva em escala industrial. E, nesse tipo de guerra, quem não entende o campo de batalha, perde antes mesmo de começar a lutar.

A anistia, essa anistia, é apenas a face mais visível de um projeto maior: a desconstrução contínua do pacto democrático por dentro de suas próprias regras. A extrema direita aprendeu a dominar o tempo da comunicação, o ritmo das emoções públicas, a viralização do absurdo e a mobilização constante da indignação seletiva. Enquanto isso, o campo progressista muitas vezes se limita à defesa jurídica dos fatos, às notas técnicas e aos apelos pela racionalidade, como se fosse possível vencer uma guerra de emoções com estatísticas frias e diplomacia parlamentar.

Não há mais tempo para ingenuidade. O bolsonarismo não quer vencer democraticamente,  ele quer destruir a possibilidade de qualquer democracia que não o contemple. E essa destruição se dá por etapas: primeiro o caos discursivo, depois a erosão institucional, e por fim a imposição de uma nova ordem baseada na força simbólica e legislativa de quem domina o medo, o ressentimento e o desejo de vingança como poucos.

Se o campo democrático quiser sobreviver a 2026 com algo além da faixa presidencial simbólica, terá que operar em outro nível: compreender o jogo da guerra híbrida, enfrentar o bolsonarismo como um projeto organizado de sabotagem do Estado, e agir com inteligência estratégica, presença simbólica constante e ofensiva comunicacional em todos os campos. Porque, como já dissemos, não importa se Bolsonaro estará preso, inelegível ou no Palácio do Planalto, o que importa é o caos como método e o controle do Legislativo como poder real. E a extrema direita entendeu isso com anos de vantagem. Não entender essa guerra agora é assinar, em câmera lenta, a ata da derrota futura. E não haverá anistia para quem cruzar os braços.

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Last Update: 16/04/2025