Karina Aparecida Dias teve um parto traumático. Presa aos sete meses de gestação por tráfico de drogas em 2010, ela foi obrigada a dar à luz algemada. Nascida a criança, elas passaram a dividir uma cela com outras presas na Penitenciária Feminina de Santana, na capital de São Paulo. Lá, sua rotina girava em torno dos cuidados com o bebê e, mesmo diante das dificuldades, aquele vínculo era um refúgio.

“Foi o filho que eu mais amamentei, que eu mais cuidei, porque éramos só eu e ele. Mas depois, veio o pior: ter que entregar”, relembra emocionada. A separação aconteceu aos sete meses, quando o menino foi entregue à família paterna. Sem rede de apoio e sem acompanhamento psicológico, Karina fez apelos à justiça para poder ficar com o filho, mas não conseguiu. Hoje, o contato entre eles é quase inexistente.

“O cárcere me tirou tudo, não só o meu filho que nasceu lá, mas também os meus outros filhos [que ficaram do lado de fora]”, diz Karina. Contamos a história de seu parto na primeira parte deste especial sobre gestantes no cárcere, com foco na violência obstétrica sofrida por mulheres privadas de liberdade.

Em 2018, diante do grande número de presas sem julgamento no Brasil, o Supremo Tribunal Federal tomou uma medida para evitar que histórias como a de Karina e seus filhos se repitam. Naquele ano, o STF reconheceu o Habeas Corpus Coletivo (HC) 143.641, que determina a substituição da prisão preventiva por domiciliar para gestantes, lactantes e mães de crianças de até 12 anos ou com deficiência, desde que não sejam investigadas por crimes cometidos mediante violência ou grave ameaça.

Segundo os dados mais recentes do Sistema de Informações Penais (Sisdepen), ligado à Secretaria Nacional de Políticas Penais, em 2024, a população carcerária feminina no Brasil era majoritariamente negra (62,8%). A maioria das mulheres estava presa por tráfico de drogas (91,9%). Do total de 28.770 mulheres encarceradas, cerca de um terço ainda aguardava julgamento, cumprindo prisão provisória.

O país abrigava 212 gestantes e parturientes, 117 lactantes e 119 bebês ou crianças nos presídios. Maria do Carmo Leal, professora e coordenadora do estudo Nascer na prisão: gestação e parto atrás das grades no Brasil – até hoje, o único a tratar de violência obstétrica no cárcere – resume bem o que representa a prisão dessas mães: “é um despedaçamento social”.

Imagem: Victória Sacagami/Gênero e Número

A série histórica do Sisdepen, que abrange o período de 2017 a 2024, mostra uma redução gradual desse público no cárcere a partir de 2017. No entanto, não há comprovação de que essa queda esteja ligada ao HC, pois ainda existem entraves no acompanhamento, sistematização e consolidação dos dados.

Há uma imensa dificuldade de obter dados sobre a concessão de habeas corpus coletivos no Brasil. A reportagem da Gênero e Número entrou em contato com o Conselho Nacional de Justiça, mas o órgão afirmou não “dispor desses dados”. Também foram feitas solicitações por meio da Lei de Acesso à Informação, mas a resposta foi a mesma.

A terceira alternativa foi recorrer às Defensorias Públicas estaduais, solicitando informações sobre a concessão do habeas corpus coletivo em todos os 26 estados e no Distrito Federal. É comum que as defensorias realizem mutirões para pedidos ou análises de processos envolvendo esse recurso, o que se mostrou a única forma de registro quantitativo disponível. A intenção era mapear a quantidade de pedidos deferidos e indeferidos nos últimos anos, já que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) não compila esses dados. Apesar do esforço, apenas seis defensorias dos 27 estados responderam ao pedido: Mato Grosso do Sul, Paraíba, Paraná, Rio de Janeiro, Santa Catarina e São Paulo. Desses, Paraná e Rio de Janeiro foram excluídos da nossa amostra por não terem especificado o número de pedidos de prisão domiciliar.

Os números revelam baixa concessão do benefício. Em Santa Catarina, por exemplo, de 281 pedidos feitos entre 2021 e 2022, somente 14 foram deferidos. Em São Paulo, dos 69 pedidos de prisão domiciliar, em 2024, apenas 18 foram aceitos.

O documento mostra que, dos 281 pedidos analisados em Santa Catarina, quase 60% foram negados. Além disso, revela que o Judiciário pautou as decisões em argumentos morais sobre a maternidade.

Uma delas afirmou: “se quando (a mulher) podia estar junto aos seus não o fez, não há razão para que agora queira prestar cuidados aos filhos.” Outra decisão judicial alegou que “a acusada supostamente negligenciou o cumprimento integral do sagrado ofício que é a maternidade”.

Para a defensora pública Anne Teive, coordenadora do Nudem de Santa Catarina, a resistência dos magistrados em conceder o HC, baseada em argumentos que relacionam a infração cometida pela mulher ao desprezo pela maternidade, revela uma perspectiva de gênero equivocada. “Isso desconsidera a perspectiva de gênero que magistrados e magistradas necessariamente deveriam observar em seus julgamentos, por força da Resolução n. 492/2023 do Conselho Nacional de Justiça”, avalia Teive.

“Desde a audiência de custódia, momento em que o Judiciário avaliará a legalidade de uma prisão e decidirá pela sua manutenção ou não, esse duplo julgamento se faz presente”, observa a jurista.

Uma mulher não deve demonstrar apenas que não praticou determinado crime ou que não o praticou da forma como lhe é imputado – deve demonstrar que não rompeu com as expectativas sociais de como deve ser o comportamento de uma esposa, de uma dona de casa, de uma mãe”, observa a jurista.

 

Imagem: Victória Sacagami/Gênero e Número

Além do HC 143.641, que define a prisão domiciliar durante as investigações, uma alteração feita na Lei de Execução Penal, em 2019, passou a contemplar mulheres já condenadas. Naquele ano, o artigo 112 da LEP foi alterado para incluir condições específicas para a progressão de regime de mulheres gestantes, mães ou responsáveis por crianças e pessoas com deficiência.

A mudança permitiu que presas sem crimes violentos, primárias e com bom comportamento pudessem progredir após cumprir um oitavo da pena, o equivalente a 12,5% do tempo da sentença. Para um preso normal, qualquer progressão de pena acontece somente após 16% dela ter sido cumprida em regime fechado.

Apesar de reduzir o impacto do encarceramento na vida das crianças, a concessão desses dispositivos não é automática e depende da interpretação judicial, que muitas vezes impõe barreiras burocráticas e morais. O perfil de mulheres que integram o cárcere demonstra que nem todas têm acesso à assistência jurídica particular. Dessa forma, judicializar pedidos básicos está fora de cogitação.

Risco de perda do poder familiar 

Se, por um lado, ter os filhos por perto é um alívio – e também uma distração no ambiente hostil do cárcere – por outro, configura uma violência psicológica intermitente.

Quanto mais criam vínculos com os bebês, mais difícil se torna o momento de entregá-los. Às mães também recai a culpa de mantê-los em um ambiente insalubre e violento.

Sem qualquer preparo emocional para o rompimento, muitas mulheres tentam amenizar a dor desmamando os filhos antes do tempo. Aos poucos, retiram o bebê do peito, como se quisessem prepará-lo para a ausência inevitável.

A LEP prevê que as unidades prisionais femininas tenham berçários para as mulheres poderem “cuidar de seus filhos, inclusive amamentá-los, no mínimo, até seis meses”. A Organização Mundial da Saúde reconhece a importância da amamentação para o desenvolvimento do bebê e estabelece o período de dois anos de aleitamento como o ideal. Em 2009, o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária adotou a Resolução n. 4 de julho ampliou a estadia da criança com a mãe para 1 ano e seis meses.

Na prática, ainda vigoram os seis meses, afirma Bruno Shimizu, Defensor Público e Coordenador do Núcleo Especializado de Situação Carcerária de São Paulo. O que considera “problemático, pois além do prejuízo à amamentação, nos casos em que a mãe não tem uma família extensa, a criança vai para um abrigo, e isso pode resultar em perda do poder familiar”, destaca. Sem transição, sem preparo, sem acolhimento, sendo ele e a mãe, mais uma vez, vítimas de violência institucional.

A maternidade, frequentemente imposta como destino natural para as mulheres em liberdade, perde sua sacralidade dentro das prisões. O discurso que exalta a mãe como figura essencial à criação dos filhos desaparece quando ela é uma mulher privada de liberdade. Os relatos e dados mostram que, na prática, o Estado e a sociedade parecem se importar menos com o “milagre da vida” quando ele acontece dentro do cárcere.

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Last Update: 15/04/2025