Meta no Banco dos Réus: O que o Brasil Aprende com a Guerra Regulatória nos EUA

por Reynaldo Aragon

O Processo Antitruste da Meta nos EUA: Um Marco Regulatório.

No dia 14 de abril de 2025, começou nos Estados Unidos um dos julgamentos mais importantes da história recente das big techs. A Comissão Federal de Comércio (FTC), agência reguladora antitruste norte-americana, iniciou formalmente o processo judicial contra a Meta Platforms — conglomerado que controla Facebook, Instagram e WhatsApp — acusando a empresa de manter um monopólio ilegal no mercado de redes sociais por meio de práticas predatórias, como a compra sistemática de concorrentes emergentes.

O cerne da ação está nas aquisições do Instagram em 2012 e do WhatsApp em 2014. À época, ambas as startups cresciam rapidamente, com propostas diferentes da plataforma original do Facebook. A FTC alega que, ao comprá-las, a Meta impediu que essas empresas se tornassem concorrentes autônomas e interrompeu artificialmente a inovação e a livre concorrência no setor. Segundo a acusação, as aquisições não foram apenas estratégicas, mas estruturalmente anticompetitivas, projetadas para consolidar o domínio da Meta sobre o ecossistema digital e controlar uma parcela desproporcional da atenção e dos dados da população.

O julgamento ocorre em meio a uma onda crescente de crítica pública e institucional às big techs nos EUA. A Meta, que já foi alvo de escândalos como o Cambridge Analytica e campanhas de desinformação eleitoral, agora enfrenta o risco concreto de ser forçada a desmembrar seus ativos, devolvendo ao mercado a independência de plataformas como o Instagram e o WhatsApp. Caso a FTC obtenha sucesso, será a primeira grande cisão de uma empresa de tecnologia desde a separação da AT&T nos anos 1980 — e poderá redefinir o futuro do mercado global de tecnologia.

Além da questão legal, o julgamento da Meta tem enorme peso simbólico e político. Ele representa a primeira vez em que uma grande corporação digital é levada aos tribunais não por um escândalo específico de privacidade ou segurança, mas por acusações estruturais de arquitetura monopolista, o que muda radicalmente o debate sobre regulação digital. A ação também mobiliza uma série de precedentes: a FTC busca não apenas punir o comportamento passado da empresa, mas também inaugurar um novo paradigma jurídico para lidar com o poder excessivo das plataformas tecnológicas.

É importante destacar que essa movimentação não ocorre em um vácuo: ela é fruto da reorganização de forças políticas e institucionais nos EUA, em que setores do Judiciário e da sociedade civil pressionam por uma reformulação do modelo de governança digital. O processo contra a Meta é, assim, parte de um embate maior pela redefinição do papel das big techs na democracia, na economia e na cultura — um embate que, como veremos nos próximos tópicos, também reverbera fortemente no Brasil.

Diferenças nas Políticas Antitruste: Trump vs. Biden.

O julgamento da Meta nos Estados Unidos acontece em um momento de disputa intensa entre visões de governo radicalmente distintas em relação ao papel do Estado na regulação das Big Techs. Durante o governo Biden, houve uma retomada contundente da agenda antitruste, com a nomeação de figuras-chave como Lina Khan na presidência da FTC — conhecida por sua visão crítica sobre os monopólios digitais e defensora de uma interpretação mais ampla das leis de concorrência. Sob essa orientação, a FTC passou a adotar uma postura mais agressiva frente às grandes corporações de tecnologia, ampliando investigações, bloqueando fusões e propondo ações inéditas, como a tentativa de desmembrar a própria Meta.

Essa guinada regulatória, no entanto, entrou em rota de colisão com os interesses políticos e econômicos de setores ligados ao Partido Republicano, especialmente à ala trumpista. Donald Trump, que retornou à presidência em 2025, já sinalizou que pretende reverter a linha dura contra as Big Techs — não por afinidade com elas, mas por entender que o excesso de regulação compromete os interesses empresariais que orbitam seu projeto de poder. Embora critique as plataformas por suposta censura contra conservadores, Trump tem um histórico de desmobilização de ações regulatórias quando estas ameaçam os lucros e a estrutura de poder corporativo dos EUA. Inclusive, reportagens recentes mostram que sua equipe estuda substituições estratégicas dentro da FTC, visando enfraquecer as investigações e restabelecer um ambiente mais favorável às megacorporações, em especial no Vale do Silício.

Essa inflexão política entre os dois governos é mais do que um detalhe interno do jogo institucional norte-americano — ela determina os rumos da regulação digital global. Os Estados Unidos, como epicentro das principais plataformas, definem por arrasto o ambiente jurídico e comercial em países periféricos, especialmente na América Latina. Se Trump desmontar a atual linha regulatória, as Big Techs terão carta-branca para retomar práticas de expansão agressiva, compra de concorrentes e domínio algorítmico, exportando novamente uma lógica de impunidade e autogestão que já mostrou ser danosa à democracia.

Para o Brasil, essa mudança de rota nos EUA tem efeitos diretos. A fragilidade do Legislativo brasileiro em enfrentar as plataformas torna o país ainda mais vulnerável à instabilidade regulatória internacional. Quando Washington recua, o Brasil sente o impacto de forma ampliada, dada sua dependência estrutural, sua exposição à guerra híbrida e a ausência de uma regulação sólida e soberana do ecossistema informacional. Nesse cenário, o protagonismo judicial ganha centralidade — mas isso não é sustentável no longo prazo sem uma reforma política e legislativa profunda.

Reflexos no Brasil – O Papel do Judiciário na Regulação.

Enquanto nos Estados Unidos o embate antitruste se dá entre agências reguladoras e grandes corporações, com respaldo — ainda que parcial — do Congresso, no Brasil o cenário é radicalmente diferente. Aqui, o Legislativo nacional encontra-se profundamente atravessado por interesses empresariais locais e internacionais, com forte lobby das big techs, think tanks ultraliberais e grupos conservadores que atuam em defesa irrestrita da desregulamentação digital. Diante desse bloqueio institucional, quem acabou assumindo o protagonismo na tentativa de conter os abusos das plataformas foi o Poder Judiciário, especialmente na figura do ministro Alexandre de Moraes.

Ao judicializar o enfrentamento à desinformação, Moraes rompeu com a passividade histórica do sistema de Justiça em relação ao poder econômico digital. Sua atuação no Inquérito das Fake News, no combate à milícia digital bolsonarista e nas decisões que impuseram limites à atuação de plataformas como Telegram, X (ex-Twitter) e Google, sinalizou uma inflexão inédita: em um país onde o Legislativo está capturado, o Judiciário passou a operar como barreira institucional contra a guerra híbrida.

Essa judicialização, no entanto, é sintoma da falência do sistema político tradicional para regular interesses que ameaçam a própria democracia. O Congresso Nacional, hoje, abriga uma série de frentes parlamentares financiadas direta ou indiretamente por essas plataformas — como a bancada do like, que atua ativamente contra qualquer proposta de regulação algorítmica, responsabilização tributária ou política pública de soberania digital. Nesse vácuo, medidas que deveriam ser debatidas democraticamente acabam decididas por magistrados, criando um cenário de tensão constante entre legalidade, legitimidade e urgência.

É evidente que o modelo ideal não é a judicialização como norma, mas sim a construção de um marco regulatório democrático, com forte base social, técnica e política. No entanto, no contexto atual, a atuação do STF — e de Moraes em particular — tem sido uma trincheira de contenção contra o avanço de práticas digitais predatórias e o uso das plataformas como armas de desestabilização institucional. A atuação do Judiciário brasileiro, nesse sentido, é uma resposta emergencial e necessária diante da captura política e econômica do Estado por interesses que são, muitas vezes, extraterritoriais.

Diferentemente de países como Alemanha e França, onde a regulação digital avança por meio do Parlamento, no Brasil, a dependência do Judiciário para proteger a democracia digital mostra o quanto ainda estamos distantes de uma estrutura soberana de governança da informação. Essa anomalia institucional — resultado da desinformação crônica, da influência estrangeira e da omissão legislativa — precisa ser enfrentada com urgência, sob risco de tornar-se uma constante da democracia brasileira.

A Importância da Regulação – Lições para o Brasil.

O processo antitruste contra a Meta nos Estados Unidos escancara uma realidade inegável: sem regulação robusta, democrática e soberana, as grandes plataformas continuarão operando acima da lei, moldando a esfera pública a partir de interesses privados, extraterritoriais e incompatíveis com qualquer projeto de desenvolvimento autônomo. A ação da FTC, mesmo com todos os desafios impostos pela conjuntura política norte-americana, evidencia que é possível enfrentar juridicamente a concentração de poder das big techs, desmantelar práticas monopolistas e afirmar o interesse público sobre o lucro corporativo.

Para o Brasil, as lições são diretas. A dependência das plataformas estrangeiras, o desmonte das instituições de ciência e tecnologia, e a fragilidade da legislação digital tornam o país altamente vulnerável à guerra híbrida, à manipulação algorítmica e à captura da opinião pública por atores que operam fora de qualquer controle democrático. A judicialização liderada por Alexandre de Moraes tem sido crucial para conter os danos mais imediatos dessa ofensiva, mas ela não pode ser a única resposta institucional. O país precisa construir um projeto de regulação estrutural, com base em soberania informacional, justiça fiscal e defesa da democracia digital.

Isso exige enfrentar os lobbies, romper com a lógica colonial da governança tecnológica global e criar um marco legal que regule de forma transparente e firme a atuação das plataformas no Brasil — do algoritmo ao tributo, do dado pessoal ao impacto político. A criação de um fundo nacional para soberania informacional, alimentado por uma tributação justa sobre os lucros das big techs, é uma das formas mais concretas de iniciar essa virada. Mas é apenas o começo. O país precisa também de educação midiática crítica, infraestrutura digital soberana, incentivo à ciência pública e articulação entre Judiciário, academia, sociedade civil e movimentos populares.

A experiência americana mostra que o caminho da regulação é possível — mesmo em contextos de forte resistência empresarial. Cabe ao Brasil aproveitar essa oportunidade histórica para agir com ousadia, planejamento e visão de futuro. Porque sem regulação, não há soberania; e sem soberania, não há democracia possível no século XXI.

Reynaldo Aragon Gonçalves é jornalista, Coordenador Executivo da Rede Conecta de inteligência Artificial e Educação Científica e Midiática, é membro pesquisador do Núcleo de Estudos Estratégicos em Comunicação, Cognição e Computação (NEECCC – INCT DSI) e do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Disputas e Soberania Informacional (INCT DSI).

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Last Update: 15/04/2025