Trump e o Kissinger reverso

por Fernando Marcelino

As palavras nada diplomáticas de Donald Trump para o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky na Casa Branca deixaram muitos perplexos. Muitos desses observadores conjeturaram que o espetáculo tinha como objetivo ilustrar que Trump estava disposto a se inclinar contra a Ucrânia para acomodar Putin. E a razão para isso, dizem eles, é criar uma divisão entre a Rússia e a China, que Trump vê como a principal ameaça aos EUA.

O establishment da política externa de Washington está chamando a política de Trump em relação à Rússia de “Kissinger Reverso”. Ou seja, Trump está usando a mesma tática empregada por Henry Kissinger, principal assessor de política externa de Richard Nixon, quando encorajou seu chefe a abrir relações com a República Popular da China (RPC) e, assim, “jogar a carta da China” contra a mais poderosa União Soviética.

Henry Kissinger (1923-2023) foi um dos mais influentes burocratas da política externa dos EUA na história. Durante a presidência de Richard Nixon, de 1969 a 1974, Kissinger basicamente dirigiu a política externa dos Estados Unidos. Tanto Nixon quanto Kissinger acompanharam de perto a disputa entre a União Soviética e a China. Quando Nixon se tornou presidente, a disputa fronteiriça entre a URSS e a China em torno da Ilha Zhenbao quase se desdobrou em um possível ataque nuclear soviético contra Pequim. Kissinger reconheceu que essa disputa era de grande valor para os Estados Unidos, pois impedia que os dois grandes países da Eurásia criassem uma união integral contra a aliança atlântica encapsulada pela OTAN. Se a Rússia e a China se unissem, escreveu Kissinger, elas seriam capazes de minar a base do poder ocidental no mundo. Impedir essa aliança era essencial, e usar a disputa sino-soviética para criar uma barreira profunda entre os dois países era o cerne da política de Kissinger. A reaproximação com a China também permitiu que os EUA tentassem fechar a linha de suprimento logístico para as forças de libertação nacional do Vietnã em sua guerra contra a agressão dos EUA.

Foi por esse motivo que Kissinger iniciou conversas secretas com o governo chinês por intermédio do Paquistão em 1970, fez uma viagem secreta a Pequim em 1971 e, assim, abriu as portas para Nixon visitar a China no ano seguinte. Em seu relatório verbal para a equipe da Casa Branca após sua visita à China, Kissinger fez este importante comentário: “Os chineses são pessoas extremamente sérias. Eles não nos querem bem. Não temos ilusões quanto a isso. Mas, em termos de nossa situação geral, com a pressão soviética e com a situação no Sudeste Asiático, é de nosso interesse trazer os chineses para perto de nós”. A visita histórica de Nixon à China foi totalmente motivada pelos interesses dos EUA de separar a Rússia e a China para que os EUA pudessem estabelecer seu poder no continente asiático.

Trump está fazendo o mesmo, só que indo na direção oposta. De fato, o próprio Kissinger havia profetizado a vinda do “Kissinger reverso”, pois, como ele disse a Nixon apenas alguns dias antes de sua fatídica viagem de 1972, um futuro presidente americano “se for tão sábio quanto você, acabará se inclinando para os russos contra os chineses”. Kissinger teria sugerido a ideia a Trump em 2017.

Trump entende que a Rússia não é uma ameaça existencial para os Estados Unidos. O governo dos EUA não teme a venda de energia russa para a Europa, já que não há nenhuma pretensão de que essas vendas de commodities primários prejudiquem o controle geral dos EUA sobre a economia global. Entretanto, o rápido desenvolvimento da tecnologia e da ciência da China, bem como de novas forças produtivas, representa genuinamente uma ameaça ao domínio dos EUA sobre os principais setores da economia global. É a percepção da “ameaça” da China aos Estados Unidos que motiva a abordagem de Trump em relação a alianças e inimigos.

Trump discutiu publicamente as “parcerias econômicas potencialmente históricas” e as “oportunidades incríveis” para empresas americanas na Rússia, caso a guerra com a Ucrânia termine. A Rússia está economicamente isolada há três anos devido a sanções internacionais e o fim da guerra pode mudar isso. Na Conferência de Segurança de Munique, em fevereiro, Keith Kellogg, enviado especial de Trump para o conflito Rússia-Ucrânia, afirmou que os EUA queriam “romper” a aliança entre Rússia, China e Coreia do Norte. Em entrevista ao site de direita Breitbart, o Secretário de Estado dos EUA, Marco Rubio, falou sobre como a dependência da Rússia em relação à China – que aumentou durante a guerra com a Ucrânia – não era um “bom resultado” para Washington.

No entanto, o sistema internacional atual e as relações China-Rússia diferem significativamente daqueles da era da Guerra Fria. A invasão russa da Ucrânia em 2022 levou ao fortalecimento das relações bilaterais. A China resistiu à pressão, recusando-se a condenar a Rússia e alegando neutralidade na guerra. Em março de 2023, China e Rússia reafirmaram veementemente sua amizade durante a visita de Xi a Moscou. Para o líder chinês, tratava-se de desafiar o Ocidente visitando Putin, apesar de seu isolamento internacional, das grandes dificuldades que seu exército enfrentava na frente ucraniana e do mandado de prisão do Tribunal Penal Internacional. Ao mesmo tempo, Pequim apoia indiretamente Moscou, comprando seus produtos energéticos e fornecendo equipamentos não letais e de dupla utilização, permitindo que a Rússia se abasteça de tecnologia essencial para seu esforço de guerra. O apoio chinês ao esforço de guerra russo é, portanto, medido. Ao mesmo tempo em que mantém Moscou à tona, visa garantir que Washington permaneça mobilizado na Europa, em detrimento do fortalecimento de sua presença no Leste Asiático.

Os críticos de Trump estão certos ao afirmar que não há nada hoje análogo à fratura por trás da abertura de 1972 — não há um espaço de manobra óbvio entre Moscou e Pequim como a cisão sino-soviética que separou os dois gigantes comunistas a partir da morte de Josef Stalin em 1953. Em contraste, a relação entre o presidente russo Vladimir Putin e o presidente chinês Xi Jinping é marcada por uma forte afinidade pessoal e objetivos estratégicos compartilhados. Ambos os países estão comprometidos com um mundo multipolar e com a redução da hegemonia americana.

Uma diferença fundamental é que, na época em que Nixon se encontrou com o presidente Mao Zedong em Pequim, em 1971, as relações entre a URSS e a China estavam em declínio acentuado. Os dois lados estavam envolvidos em um conflito ideológico prolongado sobre o futuro do movimento comunista global e haviam se envolvido recentemente em um confronto militar sobre sua fronteira conjunta em 1969. Hoje há uma ausência de rivalidade ideológica entre a Rússia e a China. Durante a Guerra Fria, ambas as nações disputavam a liderança do movimento comunista global, intensificando sua rivalidade geopolítica. Hoje, porém, sua cooperação se baseia em interesses mútuos pragmáticos, e não em alinhamento ideológico. Ambos os países estão unidos em sua oposição ao domínio dos EUA e trabalham ativamente para desenvolver instituições globais alternativas, como os BRICS e a Organização de Cooperação de Xangai (SCO), para desafiar as estruturas lideradas pelo Ocidente. Essa visão compartilhada reduz as barreiras ideológicas e promove uma colaboração mais estreita, dificultando significativamente a probabilidade de uma grande ruptura entre Rússia e China, que os Estados Unidos possam explorar uma divisão entre as duas potências.

As realidades geopolíticas complicam ainda mais a estratégia inversa de Kissinger. Em regiões onde seus interesses se cruzam, Rússia e China adotaram papéis estratégicos compartilhados, em vez de competir. Por exemplo, na Ásia Central, a China atua principalmente como uma potência econômica, investindo em infraestrutura por meio de iniciativas como a Iniciativa Cinturão e Rota, enquanto a Rússia atua como garantidora da segurança regional. Ambos os países buscam manter a estabilidade e limitar a influência ocidental na região. Além da Ásia Central, essa abordagem cooperativa se estende a outras áreas de interesse estratégico. A Rússia concentra-se na Europa Oriental e seus países vizinhos, enquanto a China concentra-se no Leste Asiático e no Indo-Pacífico. Seus objetivos complementares minimizam o potencial de conflito e aumentam sua capacidade coletiva de desafiar os interesses dos EUA globalmente. Ambos os países percebem os EUA como uma ameaça comum. Essa percepção compartilhada incentiva uma coordenação mais estreita para dividir o foco estratégico dos EUA entre a Europa e a Ásia, impedindo Washington de concentrar seus recursos em qualquer uma das frentes para conter suas ambições.

Os laços econômicos entre a Rússia e a China minam ainda mais a viabilidade de uma estratégia Kissinger inversa. Desde o início das sanções ocidentais, após a anexação da Crimeia pela Rússia em 2014, Moscou tem recorrido cada vez mais a Pequim em busca de apoio econômico. O comércio bilateral entre a Rússia e a China saltou de US$ 140 bilhões em 2021 para US$ 244 bilhões em 2024. A China tornou-se um mercado crucial para as exportações de energia russas, enquanto a Rússia depende de bens industriais e tecnologia chineses. Mais de 1.000 empresas estrangeiras deixaram ou encerraram suas operações após a invasão e empresas chinesas preencheram o vácuo. A China, por sua vez, recebeu petróleo e gás natural da Rússia com grandes descontos, que se tornou um novo destino importante para seus produtos manufaturados. As exportações chinesas para a Rússia aumentaram 70% entre 2021 e 2024, segundo a Capital Economics, com a Rússia absorvendo uma parcela significativa do boom exportador chinês após a pandemia de COVID-19. A China também é uma fonte de tecnologia de uso duplo, como drones, e oferece apoio diplomático aos interesses da Rússia em enfraquecer o poder dos EUA.

Em contrapartida, o comércio entre os EUA e a Rússia permanece relativamente baixo, totalizando apenas US$ 3,5 bilhões em 2024. As limitações estruturais da economia americana, incluindo seu status de grande exportadora de energia, tornam improvável que Washington possa oferecer à Rússia benefícios econômicos comparáveis. Mesmo no cenário hipotético de Moscou se voltar para os EUA, as realidades econômicas limitariam a profundidade de qualquer potencial parceria. A exclusão da Rússia dos mercados europeus forçou-a a redirecionar suas exportações para a Ásia, especialmente para a China.

Rússia e a China estão hoje mais próximas do que nunca – unidas por uma forte cooperação econômica, militar e estratégica, e por uma aversão compartilhada ao Ocidente. O ímpeto para as relações China-Rússia é estrutural: cada país considera os Estados Unidos como seu principal adversário e vê o outro como um parceiro importante em seus esforços para evitar o cerco militar, econômico e diplomático. Na verdade, quando o conflito na Ucrânia começou, Putin e Xi já eram parceiros próximos: encontraram-se mais de 40 vezes desde que Xi assumiu o poder em 2012, primeiro como secretário-geral do Partido Comunista Chinês e depois como presidente. Sob Putin e Xi, as duas nações construíram uma aliança robusta baseada em enormes interesses econômicos, comerciais, energéticos e tecnológicos. O comércio da Rússia com a China supera em muito o comércio da Rússia com os EUA. Moscou sabe que os EUA jamais poderiam substituir a China. Putin e Xi investiram na visão geopolítica e filosófica de criar um mundo multipolar, que supere as ambições americanas de domínio hegemônico. Apesar dos esforços de Trump, é altamente provável que Pequim continue a seguir sua política pró-Rússia. E seria estrategicamente inepto (e improvável) por parte da Rússia queimar o relacionamento de longo prazo com Pequim para garantir um relacionamento com o governo Trump, que pode deixar o cargo em 2028.

Fernando Marcelino é analista internacional, doutor em sociologia na UFPR e militante do MPM – movimento Popular por Moradia

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Last Update: 15/04/2025