Mosquera escreveu este texto como editorial do nº 10 da Revista Jacobin América Latina, lançado no segundo semestre de 2024. O texto analisa o esgotamento de um ciclo político iniciado nos anos 1990, quando forças progressistas ganharam destaque em diversas partes do mundo. O texto revisita momentos de ascensão da esquerda, como o crescimento do Syriza na Grécia, do Podemos na Espanha e as campanhas de Corbyn e Sanders nos EUA, além da onda de governos progressistas na América Latina. No entanto, a partir de meados da década de 2010, observa-se um refluxo dessas experiências, marcado por derrotas políticas, crises internas e avanço da extrema-direita. Assim, traz uma reflexão crítica sobre os limites das estratégias adotadas até aqui e os desafios para a construção de novos caminhos para a esquerda.
Em janeiro de 2015, um editorial do The Economist apontava: “Tsipras lançou o maior desafio até o momento para o euro e também para a chanceler da Alemanha, Angela Merkel, que liderou o caminho da austeridade no continente”. O breve comentário sintetizava a inquietação das elites ocidentais nesse período: o Syriza estava na iminência do poder na Grécia, mas não era o único problema. Poucos meses antes, o Podemos havia despontado explosivamente na Espanha, Jeremy Corbyn desafiava a liderança do Partido Trabalhista a partir de uma posição até então marginal na esquerda britânica e, do outro lado do Atlântico, Bernie Sanders iniciava sua importante campanha nas primárias dos democratas nos Estados Unidos.
As turbulências não se restringiam aos países capitalistas desenvolvidos; ao contrário, na periferia [global], as mobilizações sociais e políticas levariam mais tempo. Na América Latina, o ciclo progressista, composto não apenas por um conjunto de governos heterodoxos, mas também por movimentos sociais fortes e relações de forças parcialmente favoráveis, ainda demonstrava vitalidade. Enquanto isso, ainda que a Primavera Árabe experimentasse retrocessos, a situação na região seguia permanecendo aberta.
No entanto, poucos meses depois, uma mudança significativa ocorreu no panorama político global. Em julho daquele mesmo ano, o Syriza capitulou diante da Troika e aceitou implementar um novo programa de austeridade, o que representou um golpe devastador para a maior esperança da esquerda europeia em uma geração [1]. O Podemos, por sua vez, sentiu o impacto e passou de uma radicalidade inicial – até mesmo superficial – para um programa cada vez mais moderado, que culminou em um cogoverno com o PSOE na Espanha.
Na América Latina, o ciclo progressista, que tinha ganhado impulso no início do século, começou a perder força. No Brasil, um golpe parlamentar iniciado em dezembro de 2015 destituiu o PT e instalou um governo neolibreal, levando à eleição do neofascista Bolsonaro três anos depois. Na Argentina, a direita conseguiu sua primeira vitória em 2015, com Mauricio Macri, e, em 2023 diante de um interlúdio peronista frustrado, foi a extrema-direita que assumiu o poder. Na Venezuela, a crise econômica se aprofundou, agravando uma situação humanitária crítica. No Equador, a direita ganhou eleições sucessivas. Em El Salvador, Bukele consolidou um regime político autoritário e se tornou uma referência para as direitas centro-americanas. O subcontinente latinoamericano é o mais disputado, já que estas tendências são contrabalançadas com as recentes vitórias eleitorais progressistas na Colômbia, Brasil e México; mas não está isento da onda reacionária global.
No mundo árabe, a desilusão com o ciclo de protestos iniciados em 2011 se tornou evidente de uma forma trágica, com países afundados em regressões autoritárias, guerras civis tribais e massacres em larga escala. Por sua vez, Jeremy Corbyn e Bernie Sanders concluíram suas aventuras em 2020, facilitando o retorno ao business as usual [operações normais] nos partidos trabalhista e democrata de seus respectivos países.
Estamos presenciando o encerramento de um amplo ciclo na história da esquerda em nível global. Diversos acontecimentos são frequentemente apontados como os primeiros sinais deste ciclo: o levante zapatista de 1994, as greves de novembro e dezembro de 1995 na França ou a mobilização antiglobalização em Seattle em 1999. Após a derrota estratégica representada pelas contrarreformas neoliberais e o colapso da União Soviética, começou um ressurgimento lento da resistência social. Desde então, assistimos a ondas de mobilização: na América Latina, no final dos anos 1990 e no início dos anos 2000, coincidindo com os protestos antiglobalização e antiguerra na Europa e nos Estados Unidos; no mundo árabe, nos Estados Unidos e no sul da Europa em 2011; seguidos pelo ciclo de 2018 e 2019, que abarcou quase todos os continentes de maneira sincronizada.
Periodizar um momento político no tempo presente é difícil. No entanto, existem muitos indícios de que nos deparamos com uma nova etapa. Um desses sinais é a crise global da esquerda em suas diversas formas, que viu sua aliança histórica com as classes populares se deteriorar. As frustrações e os limites das experiências recentes levaram a um momento de crescente desmoralização e descontentamento político. Ao mesmo tempo, a extrema-direita se mostra cada vez mais forte e capaz de capitalizar as frustrações populares sobre a política neoliberal, adotando uma abordagem autoritária, racista, sexista e homofóbica.
Muitos pensaram que a crise capitalista de 2008 seria o momento que impulsionaria a esquerda radical para o centro da cena, em um contexto de crise da política neoliberal e dos partidos tradicionais. Como vimos, não faltaram tentativas. No entanto, a esquerda se encontra no limite de sua força, não somente no âmbito político, mas também no sindical e no social, enquanto a extrema-direita avança, mostrando resiliência diante de suas próprias derrotas, que se transformam em etapas parciais de seu progresso.
Os limites de um período
Momentos de estagnação, derrota ou retrocesso podem parecer ocasião tanto de reflexão e autocrítica quanto de confusão e orientação. Eles podem se converter em um terreno fértil para o desânimo e a apatia, bem como para a retirada sectária ou a adaptação oportunista. É necessário que nos mantenhamos lúcidos.
Alguns podem argumentar que o mundo continua marcado por lutas e mobilizações, incluindo explosões sociais, como a notável sequência de 2019, que Beverly Silver considerou o ano de maior mobilização social global desde 1968. Não lhes falta razão; a situação internacional permanece instável e dinâmica. No entanto, após as experiências fracassadas recentes, a crise da esquerda se transformou em uma crise global de alternativa política, mais aguda que no passado recente. A incapacidade de conectar as lutas com um horizonte alternativo redefine o cenário como um todo. Nesse contexto, a extrema-direita começa a ser um adversário real que capitaliza não apenas o mal-estar popular, mas também as próprias mobilizações sociais (como ocorreu no Brasil em 2014, nos protestos da praça Maidán na Ucrânia ou na Primavera Árabe).
Já outros responsabilizam exclusivamente o reformismo por suas capitulações e traições. Assim, estaríamos diante de uma situação típica de “crise de direção”. No entanto, o problema é ainda mais profundo. Diante dos fracassos do reformismo, a esquerda radical permanece tão impotente quanto antes. Não apenas não se beneficia das desilusões expostas do reformismo, mas também é arrastada pela espiral depressiva de sua crise. O reformismo não é simplesmente mais uma corrente política; é a tendência política “espontânea” da classe trabalhadora. Ninguém organiza uma guerra civil para conquistar um aumento salarial. As classes trabalhadoras buscam melhorar sua qualidade de vida utilizando os instrumentos institucionais disponíveis e evitando grandes rupturas ou custos sociais.
Por isso, apesar de, em alguns momentos, o espaço objetivo para a política reformista se reduza e os partidos desse campo percam gradualmente sua base material para uma política de conciliação de classes, não existe um evento equivalente à queda do Muro de Berlim que provoque o colapso definitivo do reformismo. As previsões frequentes sobre sua crise final têm sido reiteradamente desmentidas e não tem servido como guias políticas eficazes.
Os clássicos do socialismo acreditavam que a classe trabalhadora era instintivamente revolucionária e que apenas fatores conjunturais poderiam levá-la a uma letargia reformista transitória. No entanto, a realidade se mostrou mais complexa. Apenas em circunstâncias excepcionais de crise e com uma grande acumulação de forças é possível superar a hegemonia reformista na classe trabalhadora. Além disso, isso não se concretiza somente denunciando o reformismo como uma ilusão e antecipando suas capitulações.
Os processos revolucionários não surgiram da perda das ilusões reformistas, mas da ultrapassagem dessas ilusões para além de seus próprios limites. A Revolução Russa, como se sabe, foi impulsionada pelo lema “paz, pão e terra” e não por um chamado direto à expropriação da burguesia. Nesse sentido, um revolucionário é um reformista até às últimas consequências, desafiando os limites impostos pela lógica do capital. A tarefa dos socialistas, portanto, não é tanto de desmascarar ilusões, mas atravessá-las com êxito.
As fragilidades da esquerda também refletem as debilidades de um período histórico: a fragmentação da classe trabalhadora, a desarticulação dos partidos operários de massa, o declínio da sindicalização, a ausência de uma consciência socialistas nas massas. Continuam acontecendo explosões de indignação social no mundo; o problema é que se desenrolam em um contexto caracterizado pela perda de referências políticas e pelo enfraquecimento das forças orgânicas da esquerda (partidárias, sindicais, associativas). Nesse cenário, a hiperliderança populista (como a de Hugo Chávez, Pablo Iglesias ou Jean-Luc Mélenchon) é uma substituição funcional inevitável da organização de massas em momentos de fraqueza “vinda de baixo”? Os ganhos proporcionados por esses hiperlíderes compensam as perdas? Seria possível prescindir deles enquanto reconstruímos as organizações e a cultura socialista de massas?
O ciclo político recente evoluiu rapidamente “do protesto à política”, passando de movimentos que promoviam uma cultura de resistência e abstencionismo político para formações populistas de esquerda em torno de lideranças fortes. Esta mudança pode ser vista como uma resposta à situação de estagnação alcançada pelas revoltas de 2011, influenciadas por concepções autogestionárias e antieleitorais. No entanto, outra interpretação também é possível. Entre considerar que o mais importante acontece no terreno dos movimentos sociais ou assumir que é preferível uma vitória eleitoral progressista, pode haver, ao invés de uma polarização drástica, apenas uma mudança de ênfase.
A crença de que a construção nos movimentos sociais é o verdadeiro terreno estratégico pode levar, sem grandes mudanças conceituais, a aceitar a disputa eleitoral como um complemento exterior, instrumental e subordinado. Isso pode justificar uma forma de realpolitik: a conciliação de uma retórica radical com relação à luta social com uma tática eleitoral altamente pragmática ou oportunista. Quando a tática eleitoral e a luta política em geral são consideradas secundárias, a lógica minimalista do “mal menor” pode se impor sem resistência.
Isso explica que tenha existido a convergência entre o ativismo dos movimentos sociais e as formações eleitorais populistas tanto na América Latina quanto na Europa e nos Estados Unidos. O populismo não representa o retorno triunfal da grande política na história, mas somente uma forma reduzida do político, limitada à sua dimensão eleitoral e aos golpes dos efeitos táticos. O movimentismo e o populismo compartilham a negligência sobre os aspectos centrais da luta política socialista e, por isso, são filhos legítimos desta época: ambos ignoram principalmente a necessidade de construir uma organização política solidamente enraizada na classe trabalhadora e capaz de desenvolver um projeto estratégico a fim de formar e mobilizar seus membros.
Os novos partidários
O que temos pela frente? É óbvio que não sabemos com segurança, mas podemos analisar as tendências mais evidentes. O aspecto que se destaca no novo ciclo é a ascensão da extrema-direita. Em meio a uma crise capitalista de escala histórica, na qual o mal-estar gerado por décadas de políticas neoliberais tem criado um entorno de insegurança social e anomia mercantil, a demanda pela ordem (quer dizer, proteção, estabilidade, previsibilidade) parece ser o pagamento de um novo bloco político e social em ascensão. As limitações e experiências falhas da esquerda durante o último ciclo contribuíram para preparar o terreno para as forças reacionárias. Mas é fundamental relembrar as tendências de longo prazo: ainda estamos lidando com as sequelas da crise subjetiva da classe trabalhadora provocada pela queda do “campo socialista” há trinta anos, como bem descreve Henrique Canary.
Nesse contexto de sobreposição de crises de diferentes tipos (crise subjetiva da classe trabalhadora, crise capitalista, crise da esquerda), a extrema direita captura o mal-estar da época. Isto permite a possibilidade de uma nova grande ofensiva contra a classe trabalhadora, que poderiam colocar em perigo as conquistas do ciclo histórico anterior que sobreviveram. Como disse Angelo Tasca nos anos de 1930, o fascismo foi uma “contrarrevolução póstuma e preventiva”. Apesar de agora não haver ameaças revolucionárias, a extrema-direita mantém seu caráter “póstumo e preventivo” próprio: está conquistando terreno em um contexto em que a esquerda e a classe trabalhadora se debilitaram, mas ainda conservam posições e conquistas históricas que representam um obstáculo para uma ofensiva capitalista de grande escala.
Esta nova situação não implica em absoluto, como afirmam alguns setores, a existência de um radicalismo abstrato que possa ser canalizado pela esquerda ou pela direita. Quem tem a iniciativa e está “radicalizada” é a direita. Nosso campo social está na defensiva, buscando manter suas posições. Pretender que a esquerda anticapitalista possa competir em um espaço comum “antissistema” com a extrema-direita é um caminho morto, que conduz ao isolamento de uma radicalismo desconectado das realidades concretas. Ou, em uma variante mais perversa, com tentativas de assimilação com setores reacionários ao incorporar temas do conservadorismo social, como o fazem Sahra Wagenknecht na Alemanha ou o PC francês, que acabam contribuindo para a normalização e banalização das ideias da extrema-direita.
Não existe uma polarização do tipo que caracterizou os primeiros anos da década de 1930. É por isso que a reação política ao crescimento da extrema-direita geralmente resulta na recuperação das organizações reformistas ou progressistas tradicionais (PSOE, PT, PD italiano etc.) e não em seu colapso. Isto não deve nos surpreender. A ascensão da extrema-direita ao poder coloca a urgência de derrotá-la politicamente, e as classes populares [devem] recorrer aos instrumentos mais adequados para essa tarefa, independentemente de suas limitações.
Assumir plenamente as características e tarefas de um momento defensivo ajuda a sair desta situação o quanto antes. Os socialistas devem cumprir seu papel em um período que ameaça os direitos trabalhistas, o sistema democrático e a vida associativa da classe trabalhadora, bem como a cultura, a ciências e os valores do Iluminismo. Se nos mostrarmos como o setor mais fiel e consequente na defesa do que merece ser conservado, estaremos mais bem preparados para impulsionar as lutas ofensivas do próximo período.
[1] A expressão “troika” se refere ao grupo formado por instituições que supervisionam os programas de resgate financeiro de países da zona do euro: Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional.Original publicado em https://jacobinlat.com/2024/08/fin-de-ciclo/
Tradução de Paulo Duque, da equipe do Esquerda Online