O tempo justo da travessia: quando o abismo existencial deve ficar para depois

por Luiz Henrique Lima Faria

Nos últimos tempos, tenho buscado escutar com mais atenção a sala de aula. Percebi que a algazarra, tão comum a estudantes de 14 aos 17 anos, foi silenciando devagar, como se a vitalidade fosse se esvanecendo aos poucos. O riso solto, não o sarcástico, deu lugar a semblantes opacos, presenças ausentes que se sentam nas cadeiras e que pouco ou nada respondem aos estímulos diversos das aulas.

Aquilo que no início me soava estranho, hoje me assusta. O que tenho escutado com frequência cada vez maior e, por vezes, até no silêncio que paira sobre os rostos, é dor. Moços e moças, ainda com resquícios de infância nos traços, falam com inquietante naturalidade sobre pensamentos opressivos, ansiedade crônica, episódios depressivos, insônia. Alguns carregam dentro de si uma tristeza profunda, como um luto por algo que nem chegaram a viver.

Vejo, todos os dias, esses adolescentes que sobrevivem sob o peso de expectativas que não escolheram, conectados a uma torrente incessante de interações digitais que, embora prometa pertencimento instantâneo, deixa neles uma impressão dolorosa de solidão. Caminham vacilantes entre uma infância que lhes foi tomada cedo demais pelas urgências do mundo concreto e uma vida adulta que, pela ausência de tempo para maturação, ainda se apresenta desprovida de sentido.

Assim, são atirados para dentro de um território inóspito que nem mesmo adultos bem resolvidos sabem atravessar sem se ferir. Um terreno onde a existência cotidiana deixa de ter contornos familiares e a linguagem dos afetos se silencia, indiferente às suas dores. É ali, nesse espaço sem amparo, que começam a avistar, cedo demais, o abismo existencial.

O abismo existencial talvez seja uma das metáforas mais profundas e inquietantes da vida. Ele representa o instante em que a pessoa se vê diante da ausência de um sentido fixo, confrontada com a liberdade de existir sem um destino pré-determinado, sem garantias externas e sem validações alheias. Jean-Paul Sartre afirmava que estamos condenados à liberdade, lançados em um mundo no qual somos obrigados a nos inventar por inteiro, sem qualquer essência anterior que nos defina.

Essa liberdade, no entanto, está longe de ser leve. Ela traz consigo uma angústia persistente, pois não há um caminho certo a seguir e toda escolha implica uma responsabilidade que não pode ser delegada. É essa sensação de estar sozinho diante do mundo, forçado a criar o próprio sentido, que, sob a luz de Sartre, torna o abismo existencial tão presente e tão difícil de suportar.

Sobre esse mesmo abismo, Albert Camus nos ofereceu sua própria leitura: a experiência do absurdo, esse confronto silencioso entre o desejo humano por sentido e a indiferença radical do universo. O mundo não responde, não consola, não indica caminhos. Ainda assim, é preciso seguir adiante. No silêncio impassível do cosmos, tudo recai sobre o gesto humano, que resiste mesmo sem garantias.

É nesse cenário árido que ressurge a figura de Sísifo, condenado a empurrar a pedra montanha acima, dia após dia, num ciclo interminável. Para Camus, porém, não se trata de uma punição absurda, mas de uma escolha consciente. Ao reconhecer o absurdo e, ainda assim, continuar, o ser humano afirma sua liberdade mais radical. A repetição, antes símbolo de futilidade, torna-se um ato de resistência lúcida. Nada assegura que o esforço tenha valor, mas é precisamente nessa ausência de garantias que se revela a experiência mais autêntica da vida: persistir, mesmo assim.

Mas esses filósofos, cujas obras hoje reverenciamos como faróis do pensamento, só ousaram mergulhar nesse tema vertiginoso já na vida adulta, quando algum grau de maturidade lhes permitia elaborar o que viam e nomear, com alguma precisão, o que sentiam. Tiveram tempo para construir um repertório interior capaz de conter significados suficientes para lidar com as sombras sem se perder dentro delas, sem se deixar dissolver por completo na penumbra do indizível.

Nossos adolescentes, no entanto, estão sendo lançados a esse confronto cedo demais. São apresentados ao vazio, ao sofrimento do mundo, à ausência de sentido, antes mesmo de terem conhecido o conforto elementar que só a construção lenta, gradual e onerosa da resiliência é capaz de oferecer. Estão diante do abismo sem o salutar chão anterior, sem vivência suficiente para suportar o que veem, sem linguagem para nomear o peso invisível que os atravessa.

Não se trata de negar a realidade nem de esconder deles a dor do mundo. Trata-se, antes, de defender o tempo justo da travessia. A adolescência é um território em ebulição, um entrelugar de descobertas e vulnerabilidades que, por isso mesmo, precisa ser resguardado como um tempo de cuidado, de escuta sensível, de proteção simbólica contra o peso prematuro das desilusões. É imprescindível garantir que caminhem em direção ao abismo apenas quando estiverem mais inteiros, quando já tiverem acumulado experiências genuínas de pertencimento, quando souberem nomear suas dores antes de serem tragados por elas.

O abismo existencial sempre estará à espera. Mas antes que ele se revele em toda a sua gravidade, é preciso que haja instantes em que o mundo pareça, ainda que por um breve momento, fazer sentido. Que experimentem, antes da dureza, o gosto pela arte, pelo corpo em movimento, o prazer e a dor das descobertas lentas e dos erros que ainda comportam remédio. Que haja tempo livre, silêncio que não assuste e a presença concreta de adultos que não apenas cobrem desempenho, mas ofereçam abrigo. Antes do abismo, os adolescentes precisam ter vivido algo que os ampare. Algo que lhes prove que vale a pena continuar.

Dessa forma, quando a vida adulta chegar com suas dores e ausências, que eles possam compreendê-la não como quem foi violentado pelo mundo, mas como alguém que foi nutrido com presença e afeto. Que possam seguir adiante com esperança, não por terem todas as respostas, mas por se recordarem, mesmo nos dias mais sombrios, de que há beleza entremeada em quase tudo, sendo preciso apenas saber procurar. Que a vida, apesar do abismo, ainda possa ser preenchida com algum sentido, mesmo que se imponha inventá-lo a cada despertar.

Luiz Henrique Lima Faria – Professor do Instituto Federal do Espírito Santo (IFES) e Editor-Chefe da Revista Interdisciplinar de Pesquisas Aplicadas (RINTERPAP).

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Last Update: 14/04/2025