Um cesto de alegrias de quintal
por Ana Laura Prates
Sexta-feira, 11/04/2015, vivi uma das experiências mais esotéricas da minha vida: assisti ao show do Gil “Tempo Rei, última turnê” acompanhada dos meus filhos e de um grande amigo. Há tempos temos nos despedido dos nossos maiores em grandes espetáculos, e a sensação se repete: pode ser a última vez. Foi assim com Chico, Milton, Caetano e Bethânia, Ney. Não foi assim no último show da Gal porque ninguém esperava que ela nos deixaria de modo tão repentino. Ontem, essa sensação também aconteceu, embora eu tenha uma convicção íntima de que Gil ainda estará um bom tempo entre nós.
No entanto, algo a mais se passou. Não se trata de insistir na dúvida vazia sobre quem é melhor ou mais genial. Nossa música é farta em compositores, melodistas, letristas, músicos e intérpretes excepcionais, inclusive muitos deles menos conhecidos do grande público. Quem é da minha geração deve se lembrar que éramos forçados a uma escolha patética entre Caetano e Chico, até que a TV Globo, quem diria, resolveu tudo em 1986 com o programa Chico & Caetano que passava mensalmente às sextas à noite. Eu sempre associei Chico a meu pai, e o escuto desde o berço, e já quebrei muito pau com Cae nos anos noventa, até me reconciliar definitivamente com ele nas últimas décadas. Milton é uma espécie de transcendência incompreensível, Ney é a síntese da sensualidade inexplicável. Gal a mãe de todas as vozes, Beta a abelha rainha. João Gilberto se foi em silêncio. Tom e Elis partiram num rabo de foguete. E Gil?
Minha primeira experiência íntima com Gil aconteceu no meu aniversário de 12 anos, em 1979, quando ganhei de um tio agregado o disco Realce. Como qualquer menina dos anos 70, embora em minha casa só se ouvisse Bossa Nova, Roberto Carlos e MPB, meus cantores prediletos eram John Travolta e Olivia Newton-John. Eu também ouvia Beatles, Queen e Pink Floyd. Claro que eu já tinha escutado Gil, desde bebê, em casa e na rádio. Mas aquele disco mudou minha vida e minha relação com a música. Realce, a terceira da trilogia “Re” (Refazenda e Refavela vieram antes), com seu real teor de beleza, era música brasileira e, ao mesmo tempo, radicalmente pop. Até hoje é meu álbum preferido de Gil, não necessariamente por ser o melhor, mas pelo que representa na minha vida.
Em Realce, encontramos a síntese do que se desdobrará na obra de Gil nas décadas seguintes: um Gil profundamente comprometido com a tradição e a raiz musical baiana e nordestina, implicado no resgate da ancestralidade africana, ousando suas pesquisas que borravam a binariedade de gênero, declarando sua relação com o feminino elevado à dignidade da causa, descontruindo o machismo com uma interpretação subversiva de Marina, tudo isso sem recuar de sua posição política firme e doce com a versão brasileira de Não chore mais. Uma obra prima. Eu, com 12 anos não entendia racionalmente nada disso, mas ao mesmo tempo entendia tudo e meu corpo dançava.
De lá pra cá, foram dezenas de álbuns e shows de Gil ao longo da vida. Gil me ajudou, com o auxílio luxuoso do Chico, a afastar de mim esse cale-se! Gil nos ensina sobre a transcendência, o cosmos, a partícula quântica, a ecologia, o Brasil, o corpo, a voz, a vida, a morte e o amor – que ontem ele declarou ser mais perigoso que a morte. Decidir amar e praticar a bondade radical, sem qualquer moralismo, é absolutamente subversivo e dificílimo. Gil está à altura. Bem mais tarde, Gil me ensinou a ser uma mãe melhor, com Estrela, que Gabi e Lu cantavam desde quase bebês, e o resgate da minha infância com o Sítio do pica pau amarelo. Drão foi fundamental para a construção de uma separação mais digna. Logo eu, que um dia pensei que o mundo masculino tudo me daria, do que quisesse ter. Palco é a melhor música do mundo para correr. Poderia ficar aqui até o infinito, lembrando de cada canção de Gil que me ensinou a viver e a não ter medo da morte.
Ontem, durante o show, abraçando meus filhos que sabiam todas as letras de cor e estavam chorando, literalmente, de emoção, eu disse: essa é a herança que eu deixo pra vocês. E senti um arrepio da espinha, me dando conta da sorte de ser brasileira, e de ter tido filhos nessa terra. Eu que não sei rezar, e que não me iludo, pedi ao tempo rei para transformar as velhas formas do viver. O luar nos banhava e eu só pensava que a gente precisa ver o luar, pois a estrada vai dar em nada do que eu pensava encontrar.
Gil me conecta, me re-liga ao que há de mais fundamental, inútil e sem sentido da minha existência. Gil é minha única religião. Eu, como um devoto, trago um cesto de alegrias de quintal!
Ana Laura Prates é dona de casa e mãe, psicanalista, escritora e editora. É autora, dentre outros de “Feminilidade e experiência psicanalítica” e “Da fantasia de infância ao infantil na fantasia” (Larvatus Prodeo Editora). Doutora pela USP, Pós-Doutora pela UERJ e Pesquisadora da UNICAMP. É membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano e do coletivo Psicanalistas Unidos pela Democracia (PUD)