A absurda situação do atraso na aprovação do Orçamento pelo Congresso precisa ser mais bem debatida e enfrentada pelas forças democráticas. Não é razoável normalizar uma chantagem que levou o país a ficar em compasso de espera, até que os interesses dos nobres parlamentares estivessem apaziguados, para que as políticas públicas que garantem direitos e combatem às desigualdades voltassem a funcionar.
Não é a primeira vez que o orçamento federal demora para ser aprovado. Dessa vez, o atraso foi resultado direto da pressão aberta da direita brasileira – que, por ser majoritária no Congresso, mas tendo sido derrotada nas eleições presidenciais, busca manter o poder de decisão sobre as emendas que ganharam ao longo dos últimos dez anos. Vamos direto ao ponto? Trata-se de uma usurpação do poder popular. A população votou em um projeto político comprometido com políticas públicas capazes de enfrentar as desigualdades no país, não em ações fragmentadas e apenas locais.
Vale destacar que em situações como essa, parte do orçamento continua sendo executado em duodécimos. Todas as políticas que não são consideradas inadiáveis ficam paralisadas. Para a maioria dos parlamentares, trata-se do recurso que vai para políticas de direitos humanos, de mulheres, e outras de enfrentamento às desigualdades. Para Temer e Bolsonaro, pouco importava. Para Lula importa.
O ataque do Congresso às prerrogativas do Executivo tem o orçamento como cerne e resulta na tentativa de consolidar um novo arranjo institucional, diferente do chamado parlamentarismo de coalizão. Semi-presidencialismo e semi-parlamentarismo, são alguns conceitos possíveis. Nós preferimos usar parlamentarismo de chantagem. Sua configuração resulta da situação em que a esquerda ganha a presidência por estreita margem (como ocorreu com Dilma em 2014 e Lula 2022) e a direita não apenas comanda o Congresso Nacional, como vem aumentando seu peso em sucessivas eleições.
O orçamento é um ponto central de disputa porque é através dele que parlamentares “concretizam” seu poder. Ele fortalece quem tem mandato nos seus territórios, beneficia os candidatos à reeleição, favorece as trocas internas do sistema político (deputado federal que beneficia o prefeito aliado, independente da estruturação das políticas públicas). No entanto, os recursos gastos desta maneira não estão sujeitos ao mesmo controle de órgãos dedicados à transparência pública.
E não é só sobre assumir o poder sem se responsabilizar por ele. É para que a direita possa governar independente da eleição majoritária e ainda determinar cada vez mais quem as vencerá. É uma chantagem declarada não apenas contra o presidente Lula, mas contra toda a democracia.
A configuração do presidencialismo da chantagem se dá a partir das mudanças institucionais conduzidas inicialmente por Eduardo Cunha na presidência da Câmara em 2015. Naquele ano, a primeira medida do deputado federal fluminense foi aprovar um percentual, ainda pequeno, do orçamento para emendas impositivas. Na época, o valor era de 1,2% das receitas liquidas e metade deveria ser investido em Saúde.
Cunha usou a chantagem de forma pública mais do que qualquer outro político. Em sua gestão, ele aprovou diversas pautas bombas que sabotavam não apenas o governo Dilma, mas toda a economia nacional, aprofundando o desemprego e o aumento da pobreza. Seu método chegou ao auge quando ameaçou abrir o processo do impeachment de Dilma caso o PT votasse contra ele no Conselho de Ética. Como os petistas não aceitaram, ele deu início ao golpe parlamentar, consumado em 2016.
Depois dele, os processos foram se aprimorando. Rodrigo Maia na presidência da Câmara ampliou as emendas impositivas como cobrança da fatura por salvar Temer do impeachment. Depois, seguiu nesse método com o Bolsonaro, durante a pandemia da Covid-19.
Na sequência, veio Arthur Lira, que fez um acordo com Bolsonaro para consolidar institucionalmente o novo regime. O ex-presidente, preocupado com seu projeto golpista, simplesmente renunciou a governar, entregando o orçamento para o parlamento, sob controle de Lira e alguns poucos líderes. O orçamento secreto foi a maior expressão deste novo arranjo. Não por acaso, Lira e todos esses líderes estiveram com Bolsonaro nas eleições de 2022 e seguem até hoje lutando pela continuidade do orçamento secreto.
Com a vitória de Lula, a consolidação de uma institucionalidade “semi-parlamentarista” se mostrou inviável. Tratava-se, na prática, de um golpe dentro do golpe: se a derrubada de Dilma em 2016 já foi uma primeira usurpação da vontade popular, tomar de assalto o Orçamento em seguida seria uma segunda. Ao menos essa investida foi barrada pela chegada de Lula ao Planalto e pela decisão do STF, que considerou inconstitucional o “orçamento secreto”. Desde então, as lideranças da direita buscam novos jeitos de ampliar seu controle sobre as verbas públicas — e nossa democracia segue refém de chantagens que culminaram em 100 dias de paralisia em 2025.
Resta saber como, além de garantir a reeleição de Lula contra o bolsonarismo em 2026, a sociedade e as forças democráticas vão conquistar força suficiente no Parlamento para desmontar essa engrenagem de chantagem golpista que enfraquece nossa democracia. Em outras palavras, como nos livrar de um jogo em que o resultado das urnas pode ser anulado pelo poder de barganha de quem, em tese, deveria representar o interesse público.