A verdade por trás de um batom, por Fernando Castilho
Há alguns anos, uma dupla sertaneja, famosa e milionária, fazia propaganda na TV e enchia os outdoors das cidades com uma mensagem: “Lojas X, preço melhor ninguém faz””. E, com seus rostos estampados, com sorriso largo e poses perfeitas, indicavam aos pobres – que mal conseguiam pagar as contas no fim do mês – camas, sofás e guarda-roupas feitos de aglomerado. Móveis que, acredite, não chegariam inteiros até a última parcela do carnê das prestações.
É isso que a publicidade vende: uma imagem bem polida, brilhante, mas que esconde um conteúdo de má qualidade. E o pior? As pessoas, encantadas pela fachada, não conseguem perceber o que está por trás daquilo.
E é exatamente isso que vemos na história de Débora, a mulher que, em 8 de janeiro de 2023, pichou a estátua A Justiça com um batom. Uma cena que, se olhada de maneira superficial, parece inofensiva, quase como um gesto juvenil de rebeldia – uma transgressão sem maldade, sem a real compreensão do peso do que estava acontecendo. E, no entanto, esse ato simples é, na realidade, uma das peças-chave de uma engrenagem muito maior.
Nesse jogo de aparências, a extrema-direita bolsonarista é a dupla sertaneja, vendendo aos incautos a “beleza” da liberdade e da democracia quando, na verdade, o que oferecem é uma cadeira e um sofá que desabam em pouco tempo. E Débora, com seu batom e sorriso, é o “móvel popular” dessa fachada.
Os bolsonaristas – e até certos articulistas de grandes jornais – adoram espalhar a imagem de Débora. Uma mulher branca, bonita, sorridente, que sobe na estátua e, de forma quase ingênua, puxa o batom e escreve “PERDEU MANÉ”, repetindo, como uma adolescente rebelde, o gesto de Luís Roberto Barroso em Nova Iorque, quando foi desafiado por um seguidor de Bolsonaro. Uma imagem doce, aparentemente inocente. Mas como todo “móvel de aglomerado”, a verdadeira estrutura de Débora não é nada inocente.
O que ninguém vê é que o que vendem como “rebeldia” é, na realidade, uma ilusão. Quem compra o “armário Débora” – essa versão polida e simpática da destruição da democracia – não percebe que, logo, tudo se esfarela. Débora não foi feita com a madeira sólida da verdade, mas com o aglomerado de uma narrativa falha, construída por mentes desqualificadas, de má-fé, que buscam destruir o que resta de nossas instituições. O móvel “Débora” deve ser reciclado, e o processo de recuperação dessa destruição deve levar 14 anos.
O erro está em vê-la apenas como uma mulher que fez uma pichação. Débora não é apenas uma foto de uma “pichadora” engraçadinha. Ela é parte de um plano muito maior. Um plano meticulosamente arquitetado para destruir a democracia e instaurar uma ditadura autocrática, com a promessa de durar 30 anos, conforme documentos encontrados pela Polícia Federal.
Se esse golpe de estado tivesse prosperado, qualquer um que se atrevesse a subir na estátua da Justiça e pichar “ABAIXO A DITADURA” – mesmo com um batom como o de Débora – teria sido preso sem julgamento, torturado, forçado a entregar seus amigos, ou até desaparecido. A “beleza” do gesto de Débora seria a mesma da propaganda enganosa da dupla sertaneja: uma fachada que esconde um sistema podre, uma estrutura que se desintegra com o tempo.
Débora, com seu batom e sua leveza, é só mais um móvel bonito que, ao ser tocado, se esfarela. E o que se esconde por trás desse sorriso? Uma ditadura em construção, que nunca foi sobre a liberdade, mas sobre a destruição do que mais temos de precioso.
Fernando Castilho é arquiteto, professor e escritor. Autor de Depois que Descemos das Árvores, Um Humano Num Pálido Ponto Azul e Dilma, a Sangria Estancada.
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