
O assessor especial da Presidência e ex-chanceler Celso Amorim afirmou que o mundo vive uma ruptura com a ordem internacional construída após a Segunda Guerra Mundial. Para o diplomata, os Estados Unidos, antes defensores do multilateralismo, agora adotam uma postura abertamente voltada ao interesse próprio, especialmente sob a liderança de Donald Trump. Amorim avalia que essa mudança marca “a hora da verdade”. As declarações ocorreram em entrevista à Folha.
O mundo parece estar mudando de maneira célere. A governança pós-Segunda Guerra Mundial passa por um desmonte. O secretário de Estado dos EUA, Marco Rubio, diz que não é mais normal termos uma potência unipolar e que rumamos para um mundo multipolar. Como o Brasil se insere neste novo contexto?
Nós estamos vivendo, de certa maneira, a hora da verdade.
Os EUA e a Rússia foram os principais vitoriosos [da Segunda Guerra], mas os EUA tinham muito mais influência. E construíram um mundo à imagem e semelhança do que desejavam —com diferenças com a União Soviética e, depois, com a China.
Na letra, essa era a ordem internacional vigente.
Havia conflitos. Mas, de alguma maneira, havia uma defesa dessas regras internacionais.
O primeiro grande abalo nessa ordem foi a queda do muro de Berlim [em 1989] e a dissolução da União Soviética, algo que ninguém imaginava que poderia acontecer.
O mundo também muda de forma inesperada.
A minha geração passou por duas transformações estruturais imensas. A primeira foi o fim da União Soviética. E agora temos outra enorme mudança, imensa, com os americanos renegando a ordem que eles mesmos criaram.
Desde a queda de Berlim até agora, os EUA atuavam como uma potência praticamente incontrastável. O que mudou?
Havia, de certa maneira, a aceitação de que os EUA eram a única potência remanescente. Mas eles procuravam, sempre que possível, conduzir [as políticas internacionais] pelo multilateralismo.
Faziam isso pela ONU. Quando não dava certo, faziam pela Otan. Raramente agiam sozinhos nos grandes problemas internacionais.
O Trump atual não quer saber [dessas estruturas multilaterais]. Ele não esconde o autointeresse.
É uma atitude de absoluta franqueza. Não há hipocrisia. Ele quer a Groenlândia não porque é bom para a paz, mas por causa do minério do país. Diz isso a propósito da Ucrânia também.
Eu acho que o Trump olha para a extensão imensa da Rússia, um país que tem 12 fusos horários, e imagina as possibilidades de investimento. Não quer ficar totalmente brigado com a Rússia.
Em sua declaração, Marco Rubio disse “não queremos uma Rússia que seja totalmente dependente da China. E também não queremos que eles fiquem inimigos a ponto de ameaçar com uma guerra nuclear”. É uma declaração surpreendentemente sensata.
Por que o senhor diz que chegou a hora da verdade?
Porque é o interesse nu e cru, que não é disfarçado. E isso pode até servir para alguma coisa positiva
Na conversa com [o presidente da Ucrânia, Volodimir] Zelenski [no começo de março, na Casa Branca], que foi muito rude, Trump disse uma coisa interessante: “Ele [Zelenski] quer a vitória. Eu quero a paz”. E é verdade também.
Trump fala em desnuclearização. E não faz isso porque é bonzinho. Faz porque sabe que o custo para manter a paridade [de armamentos] com a Rússia é enorme. Para diminuir o gasto militar, ele tem que ter paz, primeiro com a Rússia, depois com a China.(…)
(…)O multilateralismo tem um pouco de teatro, e Trump está acabando com ele?
O [francês François de] La Rochefoucauld dizia que a hipocrisia é uma homenagem que o vício presta à virtude. Ela às vezes vale a pena, porque é civilizatória.
Quando há soluções compatíveis com as regras, a situação sempre melhora. Os EUA acabavam aceitando as regras. Não vejo isso acontecer com o Trump.
É a verdade nua e crua.
É a verdade nua e crua. Ele não faz parecer que defende a Ucrânia porque defende a democracia no mundo, o que era discutível: os EUA defendiam a democracia quando interessava.
Essa política, digamos assim, um pouco missionária [dos EUA] não existe mais. Ele [Trump] vai defender os interesses dos EUA de maneira deslavada, e nós temos que nos reorganizar diante disso.(…)
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