O Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) tem se tornado um mecanismo de cerceamento contra procuradores que se opõem aos poderosos e se dedicam à defesa dos direitos humanos. A mais recente vítima dessa repressão é o procurador da República Emanuel de Melo Ferreira, punido por sua atuação em processos nos quais se empenhou na defesa da democracia, no enfrentamento do bolsonarismo e na contestação dos vestígios autoritários da ditadura militar.
Para Ferreira, que deu uma entrevista exclusiva ao canal da TV GGN [assista abaixo], o CNMP tem se transformado em uma ferramenta de controle político, voltada contra membros do Ministério Público que se opõem aos retrocessos democráticos. “O CNMP tornou-se uma chaga. Como resolver isso? O Supremo só reagiu quando o monstro Bolsonaro surgiu. Caso contrário, seguiria inerte. Precisamos de mais proteção. O Supremo tem papel fundamental, assim como o procurador-geral da República, mas não pode ser apenas eles. E o que vemos? A cúpula está atenta ao golpe de 8 de janeiro em Brasília, mas aqui embaixo não há o mesmo zelo.”
A censura imposta a Ferreira repousa sobre duas ações que geraram desconforto nos setores conservadores: sua tentativa de barrar a nomeação da então reitora Ludmilla de Oliveira – nomeada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro – que prestou uma homenagem ao ditador Costa e Silva, e sua denúncia contra a mesma reitora por sugerir que a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) monitorasse Ana Flávia, uma estudante que criticara a sua nomeação. Para o CNMP, essas atitudes foram qualificadas como “ideológicas”, uma justificativa que o procurador refuta com veemência.
A reitora Ludmilla de Oliveira, indicada por Jair Bolsonaro
“Eu ajuizei uma ação para tentar suspender essa nomeação. Sabe qual foi uma das razões principais? Ela prestou uma homenagem ao Costa e Silva dentro da universidade. O ditador Costa e Silva”, desabafou Ferreira à TV GGN.
Vale lembrar que, em 2024, o Supremo Tribunal Federal reafirmou que recursos públicos não podem ser usados para promover a exaltação do regime militar. No julgamento do Recurso Extraordinário 1429329, a Corte reconheceu que tais ações violam os princípios constitucionais da impessoalidade e da moralidade administrativa, além de desrespeitarem a memória das vítimas de violações de direitos humanos cometidas pelo Estado durante a ditadura.
O monitoramento da aluna que criticara a nomeação da reitora
Quanto à tentativa de monitoramento da estudante, Ferreira explica que a então reitora sugeriu que a Abin monitorasse a aluna. Sentindo-se ameaçada, Ana Flávia denunciou o caso ao MPF, que o encaminhou ao procurador Emanuel de Melo Ferreira. Este, por sua vez, ajuizou uma ação penal, considerando a prática do crime de ameaça.
“A aluna ficou com medo. O Supremo já havia decidido que a Abin estava atuando em desvio de finalidade. Mesmo assim, a reitora não enfrentou nenhuma consequência.”
Outros alvos que atuam contra violações de direitos humanos
A perseguição não se restringe a Ferreira. Outros procuradores também têm sido alvos de represálias por atuarem contra violações de direitos humanos. No Paraná, Jacson Zilio foi punido após pleitear a absolvição sumária de acusados em casos de abordagens policiais discriminatórias. Na Bahia, o procurador Ramiro Rockenbach foi processado por denunciar deputados que intimidavam indígenas.
“Ontem mesmo abriram um PAD contra um colega em circunstâncias muito preocupantes. O CNMP entendeu que ele não poderia ter ajuizado uma ação contra dois deputados”, expõe Ferreira.
Implicações e a luta contra a perseguição política
O CNMP puniu Ferreira com censura, alegando que sua atuação era “ideológica”, o que ele refuta, afirmando que sua fundamentação sempre foi ancorada na Constituição e nos princípios do STF, onde ele busca anular a punição por violação ao devido processo legal, afronta à independência funcional e perseguição política.
Além da ação contra a homenagem ao ditador Costa e Silva, em desacordo com as recomendações da Comissão Nacional da Verdade e precedentes do STF, e a denúncia de monitoramento da Abin, Ferreira ajuizou ação buscando aprimorar a formação de magistrados e membros do MP para prevenir abusos semelhantes aos cometidos durante a extinta operação Lava Jato.
A defesa de Ferreira conta ainda com o apoio de juristas renomados, como Lênio Streck e Pedro Serrano, além do apoio do Transforma MP, que consideram a decisão do CNMP um grave ataque ao Estado Democrático de Direito.
Pareceres de Lênio Streck e Pedro Serrano
O professor Lênio Streck argumenta que a punição representa um perigoso precedente, classificando a decisão como um “crime de hermenêutica”, onde o procurador foi condenado não por atos concretos ilícitos, mas pela interpretação que fez da Constituição e da sua função pública. Segundo Streck, “a manutenção do decisum do CNMP não se configura como um precedente adequado ao Estado Democrático de Direito, no qual o acórdão se utiliza de uma criação judicial claramente ativista, condenando-o pelo ‘conjunto da obra’, como se houvesse um crime de convicção ideológica”.
Pedro Serrano, por sua vez, ressalta que Ferreira “atuou de forma plenamente regular nos respectivos procedimentos preparatórios, os quais culminaram no ajuizamento das ações ou medidas judiciais. Mesmo que se discorde das teses jurídicas e medidas processuais defendidas pelo procurador, não se pode admitir, de forma alguma, que sua atuação funcional tenha transgredido qualquer dever funcional”.
Atuação visava evitar um golpe de Estado
Enquanto isso, Ferreira segue confiante aguardando o julgamento pela 2ª Turma do STF, apesar de o ministro André Mendonça, relator da ação originária n. 2748, ter negado o pedido liminar para suspender a sanção imposta pelo CNMP. “Toda atuação que desenvolvi desde 2019 teve como finalidade conter um processo erosivo da democracia brasileira, o qual poderia desencadear uma tentativa de golpe de Estado, a qual, como se sabe, efetivamente ocorreu”.
O procurador defende ainda a criação de indicadores objetivos para monitorar a atuação do CNMP e expor abusos. “Precisamos criar um índice objetivo para evidenciar as falhas do MP e do CNMP. Mas o sigilo dos processos é um obstáculo. O que temos hoje? O relato meu, de um colega, de outro. Mas e aqueles que, por motivos compreensíveis, não denunciam? Isso precisa mudar.”
Assista a entrevista completa pelo link abaixo: