Habitualmente iluminada, muitas vezes com cores alusivas aos times de futebol cariocas ou a campanhas como o Outubro Rosa, de prevenção ao câncer de mama, a estátua do Cristo Redentor, apontada pela Unesco como uma das sete maravilhas do mundo moderno, permaneceu no escuro por três noites consecutivas durante a última semana. O apagar das luzes foi decisão da Arquidiocese do Rio de Janeiro, em manifestação de luto pela morte de um turista que visitava o monumento, mas simboliza também o momento conturbado vivido pelos principais pontos turísticos da cidade.
Disputas judiciais em torno de projetos, questionamentos à concessão de espaço à iniciativa privada pelo Poder Público e críticas ao modelo de gestão têm feito parte do cotidiano do Cristo e também de outro ponto conhecido em todo o mundo, o Pão de Açúcar, que recebe 1,6 milhão de turistas por ano e é objeto de uma briga na Justiça sobre a instalação de uma tirolesa ao lado dos seus tradicionais bondinhos. Para completar, um projeto de restauração do Jardim de Alah, anunciado pela prefeitura, prevê a supressão de 130 árvores e retroalimenta o turismo da discórdia.
Em julgamento da Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça, iniciado na terça-feira 18, o ministro relator Francisco Falcão votou pela retomada imediata da instalação da tirolesa que ligará o Pão de Açúcar ao Morro da Urca. A obra, que inclui perfurações nos dois rochedos e a instalação de 755 metros de cabos de aço, além da construção de duas estações de embarque e desembarque, é criticada por parlamentares e ambientalistas, que enxergam crime ambiental contra um Monumento Natural (MoNa) chancelado como Patrimônio Mundial. “A tirolesa é uma tragédia ambiental em uma Unidade de Conservação de proteção integral”, afirma o ambientalista Sávio Teixeira, integrante do Conselho Consultivo do MoNa Pão de Açúcar e um dos criadores do movimento “Pão de Açúcar Sem Tirolesa”, responsável por um abaixo-assinado que, no momento do fechamento desta edição, contava com 50,4 mil assinaturas.
A Igreja Católica quer desmembrar a área do Cristo Redentor do Parque da Tijuca, mas o ICMBio se opõe
Em 2023, uma ação civil pública do Ministério Público Federal contra a concessionária Caminho Aéreo Pão de Açúcar pediu a paralisação das obras. Acatado em primeira instância, o pedido foi indeferido pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF-2). O MPF recorreu ao STJ, mas, após o voto de Falcão, houve pedido de vista da ministra Maria Thereza Moura e o julgamento foi interrompido sem data marcada para recomeçar. O parecer do relator seguiu a argumentação do TRF-2 de que não cabe paralisar uma obra que já teve pareceres favoráveis tanto do Instituto de Geotécnica da prefeitura (Geo-Rio) quanto do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), e que, segundo a empresa, está 90% concluída. “Impedir as intervenções que estavam na iminência de se encerrar é um contrassenso diante dos danos causados à paisagem pela manutenção de tapumes e lonas”, avaliou Falcão.
A política do fato consumado, no entanto, é rechaçada por um número crescente de cariocas. “Estamos presenciando um debate no qual o lucro se sobrepõe ao interesse coletivo e à preservação ambiental. Essa obra não só é polêmica, como nasce de premissas completamente equivocadas. Antes mesmo de obter o aval do Iphan, a empresa já havia iniciado as intervenções, perfurando a montanha e afetando a vegetação”, denuncia a vereadora Monica Benicio, do PSOL. Em vez de preservar os espaços naturais e mitigar os efeitos das mudanças climáticas, acrescenta a parlamentar, o prefeito Eduardo Paes, do PSD, opta por apoiar um projeto que degrada o meio ambiente para atender a interesses privados. “Não existe arrecadação que justifique esse tipo de impacto. O papel do Poder Público deve ser ampliar e fortalecer as políticas de preservação ambiental, não endossar empreendimentos que ameaçam o nosso patrimônio natural”, observa a vereadora.
Indagada por CartaCapital sobre as críticas ao projeto e as expectativas quanto ao julgamento no STJ, a Caminho Aéreo Pão de Açúcar respondeu por nota: “O Parque Bondinho Pão de Açúcar reforça que confia na justiça brasileira, tendo convicção da qualidade do projeto para a construção da tirolesa e dos seus benefícios para a cidade do Rio de Janeiro. Destacamos que a iniciativa foi planejada e estruturada ao longo de dois anos e meio, tendo sido analisada e aprovada por todos os órgãos competentes”. Antes mesmo da decisão final do STJ, a empresa de arquitetura Indio da Costa, responsável pela execução do projeto, fez um pedido de acréscimo de 50% na área construída inicialmente prevista. A empresa pertence ao ex-deputado federal homônimo, aliado de Paes.

Vips. Frequentemente, o monumento é fechado para casamentos e eventos privados – Imagem: Redes Sociais/DJ Alok
Para Sávio Teixeira, nada justifica a “apropriação privada e predatória” do patrimônio natural da cidade com objetivos comerciais. “O suposto apelo turístico é argumento falacioso, mas, para os donos da tirolesa, é uma galinha dos ovos de ouro”, justifica. O ambientalista, diretor do Grupo de Ação Ecológica (GAE), afirma que o maior ativo turístico do Rio é o ambiente natural, preservado através de seus inúmeros parques e áreas protegidas. “Se isso nada significa para uma empresa, ela está agindo como inimiga e predadora na cidade, desvalorizando esse ativo que a própria prefeitura tem se esforçado para incrementar”, diz, referindo-se à busca pelo selo de Patrimônio Mundial, concedido pela Unesco em 2012.
Em relação ao Cristo Redentor, a disputa jurídica em vista se dará pelo controle do santuário localizado no Alto Corcovado, que faz parte do Parque Nacional da Tijuca. Dois projetos em tramitação no Congresso Nacional – um do senador Carlos Portinho, do PL, e outro do então deputado federal Washington Quaquá, do PT – transferem do ICMBio à Arquidiocese do Rio a administração do espaço de 6,7 mil metros quadrados, ponto turístico mais procurado do Brasil, com 4,3 milhões de visitantes em 2023. A mudança atende ao interesse da Igreja Católica de ter mais autonomia sobre o monumento e seu entorno, mas esbarra na resistência do governo federal e é alvo da crítica de ambientalistas, que temem prejuízos à fauna e flora locais, além da abertura de um precedente de concessão à iniciativa privada e redução de limites que possa ser perversamente replicado em outros parques nacionais do País.
Em nota, a direção do Parque reitera que tanto o ICMBio quanto o Ministério do Meio Ambiente (MMA) são contrários aos projetos de lei em trâmite: “O Parque Nacional da Tijuca é uma Unidade de Conservação de domínio público, pertencente à população brasileira. O desmembramento pretendido pelos projetos de lei vai na contramão da necessidade de proteção da área de Mata Atlântica que motivou a sua criação. Além disso, o repasse da gestão do Alto Corcovado a uma entidade privada ameaça a garantia de acesso de todos os públicos ao local”. Já a Mitra Episcopal, pessoa jurídica da Arquidiocese, diz que “trabalha para harmonizar suas atividades religiosas com o fluxo de visitantes”, e que o “fato de nunca ter sido autuada por crimes ambientais reflete seu compromisso com a preservação”.
A instalação de uma tirolesa no Pão de Açúcar e a “revitalização” do Jardim de Alah causam apreensão nos ambientalistas
Não exatamente amistosa, a relação entre os dois lados azedou ainda mais por conta de uma tragédia: a morte por infarto do turista gaúcho Jorge Duarte, de 54 anos, que subia as escadas que dão acesso ao Cristo. Sem posto de atendimento médico aberto, Duarte teve de esperar um longo tempo pela chegada do socorro e não resistiu. Sua nora, Melissa Schiwe, que é enfermeira, desabafou nas redes sociais: “Foram 35 minutos de uma luta travada com pouquíssimos recursos. Uma equipe despreparada para realizar um suporte básico e um posto de atendimento fechado com o parque aberto”.
Após a tragédia, a Arquidiocese voltou à carga contra o ICMbio. “A inércia da administração permitiu que uma situação crítica de desassistência ocorresse”, disse em nota. Segundo a Igreja, o monumento do Cristo, que permaneceu fechado durante dois dias pelo Procon, “não possui acessibilidade universal, pontos de hidratação e brigadistas contra incêndio, além de ter banheiros, elevadores e escadas rolantes com funcionamento precário”. O ICMBio informa que a obrigação contratual de manter uma equipe médica é da empresa Trem do Corcovado, que administra o acesso ao alto do morro. Até 2027, o órgão promete investir 75 milhões de reais na manutenção das áreas e equipamentos do Parque, “no intuito de melhorar a acessibilidade e garantir a experiência de visitação e uso público adequados”.
Tombado como Patrimônio Histórico Municipal, o Jardim de Alah, parque público com 93 mil metros quadrados que liga a Lagoa Rodrigo de Freitas à Praia do Leblon, deverá ser o próximo motivo de discórdia na gestão do turismo no Rio. Derrubada de árvores e novas construções estão previstas no projeto para o espaço, concedido pela prefeitura para a exploração econômica por 35 anos ao consórcio Rio+Verde, encabeçado pelo empresário Alexandre Accioly, também aliado político de Paes. “Vamos deixar o Mercado da Ribeira, em Lisboa, no chinelo”, resume Accioly.

Ilha da fantasia. Nas pranchetas, tudo parece irresistível. Amigo do prefeito, Accioly diz que seu jardim “vai deixar o Mercado da Ribeira, em Lisboa, no chinelo” – Imagem: Redes Sociais/Prefeitura do Rio
Para os críticos, a “revitalização” prometida para o Jardim de Alah é na verdade um projeto de exploração do parque para a construção de um grande complexo comercial. “Se a preocupação fosse ampliar as opções de lazer e turismo para a população, a prefeitura poderia estar investindo na criação e manutenção de espaços públicos de qualidade nas zonas Norte e Oeste, onde a demanda por infraestrutura de lazer é historicamente negligenciada”, diz Monica Benicio. Em vez disso, lamenta a vereadora, o foco segue sendo a Zona Sul, numa lógica elitista que ignora as desigualdades da cidade. “O debate que precisamos fazer é sobre justiça territorial, acesso democrático à cidade e respeito ao meio ambiente”, sugere.
Benicio diz que a única forma de garantir que os pontos turísticos sejam geridos com foco no interesse coletivo é que estejam sob gestão pública. “O que move as empresas privadas não é o acesso democrático ao lazer, mas o lucro. Enquanto essa for a lógica que rege a gestão dos nossos patrimônios, seguiremos vendo esses espaços serem explorados como mercadoria, inacessíveis para grande parte da população”, conclui. Ela lembra que, segundo uma pesquisa da Cesgranrio, 50% dos cariocas nunca visitaram o Pão de Açúcar. O ingresso no bondinho chega a 155 reais. •
Publicado na edição n° 1354 de CartaCapital, em 26 de março de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Rota da discórdia’