Em 2 de abril, entra em vigor nos Estados Unidos, a pátria do autoexílio de Eduardo Bolsonaro, um “tarifaço” sobre produtos importados. Foi uma das primeiras medidas de Donald Trump, ídolo do clã Bolsonaro, na volta à Casa Branca. O Brasil será atingido, tem sido citado pelo presidente norte-americano como alvo, embora não se saiba ainda ao certo quais mercadorias e setores sofrerão o baque. No dia da vigência do “tarifaço”, ao menos essa é a previsão de momento no Palácio do Planalto, o governo Lula passará por uma espécie de refundação comunicacional, e até política. A Secretaria de Comunicação Social da Presidência botará nas ruas uma campanha publicitária sobre as realizações dos dois primeiros anos de mandato, com o slogan “O Brasil é dos brasileiros”.
Será a ação mais vistosa até aqui de Sidônio Palmeira, titular da secretaria desde 14 de janeiro. O ministro e sua equipe acreditam que, nas mensagens criadas para construir a imagem e divulgar as obras de Lula, tem faltado emoção, algo que sobra no lado oposto, o do bolsonarismo. É a emoção, não a razão, o primeiro motor do voto dos eleitores, como é de conhecimento de quem trabalha com marketing político. Palmeira, recorde-se, foi o marqueteiro lulista na eleição de 2022. O apelo emocional será uma das marcas da campanha de abril. Outra será o nacionalismo – neste caso, Trump e seu tarifaço vêm a calhar. A chacoalhada geopolítica provocada pelo norte-americano e sua extrema-direita afeta o Brasil, mas oferece oportunidades políticas. Não é apenas uma leitura marqueteira da situação. “Os problemas criados pelo Trump vão acabar nos ajudando”, afirma um colaborador diplomático de Lula.
“O Brasil é dos brasileiros” é o slogan que vai marcar a nova fase da comunicação
A fechar o, digamos, tripé da campanha de abril será enfatizado o caráter popular do governo. Em reunião em 14 de março, no Planalto, com cerca de 600 funcionários da área de comunicação do governo, Palmeira expôs a necessidade de que a divulgação das realizações federais tenha o cidadão como foco. “É o Cidadão Centrismo, as pessoas no centro de tudo”, diz uma das páginas do documento apresentado pelo ministro. CartaCapital obteve uma cópia. Certos dados, segundo o texto, precisam estar “na ponta da língua” e ser repetidos à exaustão, pois “comunicação é repetição”. Alguns exemplos do que tem de ser martelado. Com Lula, o Brasil voltou à lista das dez maiores economias do mundo, posto perdido em 2020, tirou do mapa da fome no ano passado 60 mil brasileiros por dia, um estádio de futebol, e criou o Pé de Meia, bolsa para 4 milhões de alunos do ensino médio, quantidade maior do que a população de 25 capitais. Outro trunfo é o Mais Médicos, que atende 66 milhões de pacientes. O programa dobrou de tamanho neste terceiro mandato de Lula. Tinha 13 mil profissionais na gestão Bolsonaro, agora tem 26 mil. O Ministério da Saúde pretende contratar mais 2,2 mil.
Palmeira está convencido de que a popularidade atual do presidente e do governo não faz jus às realizações de Lula. Este, aliás, é o primeirão a concordar. O apoio da população caiu no fim de 2024 e atingiu os piores níveis em 2025, eis a razão para a troca de comando na Secretaria de Comunicação. A avaliação positiva do governo em fevereiro era de 24%, a regular de 32% e a negativa, de 41%, segundo o Datafolha. Em março, o presidente era aprovado por 40% e desaprovado por 55%, conforme levantamento Ipsos-Ipec. O “tsunami do PIX”, expressão usada no Planalto para descrever o efeito da mentira espalhada pela oposição nas redes sociais sobre taxação do “pix”, havia complicado as coisas logo na posse de Palmeira. Números que correram o Planalto na terça-feira 18 mostravam, no entanto, um processo de reversão da impopularidade. De acordo com sondagens diárias feitas para consumo interno e orientação de estratégias, os trackings, a avaliação negativa do governo estava em 38%, a regular era igual e a positiva, em 25%.

Na lista de medidas consta a ampliação do programa Minha Casa, Minha Vida para quem tem renda até 12 mil reais – Imagem: Redes Sociais/MDS
Há uma situação curiosa. Apesar da queda dos índices de aprovação, Lula bate todos os adversários em intenção de voto para presidente. Em uma recente pesquisa AtlasIntel, tinha entre 40% e 41% e o principal rival (Tarcísio de Freitas, governador de São Paulo, em um cenário, e Eduardo Bolsonaro em outro), cerca de 25%. De qualquer forma, o presidente tem lutado para melhorar a própria imagem e a do governo e, há algumas semanas, tem colocado na praça medidas favoráveis ao bolso e à economia popular. Empréstimos mais baratos para trabalhadores com carteira assinada e saque do Fundo de Garantia foram instituídos via Medida Provisória em fevereiro e março. Estuda-se ampliar a faixa de renda dos candidatos ao Minha Casa, Minha Vida, o que alcançaria parte da classe B. E acaba de ser enviada ao Congresso a lei de isenção de Imposto de Renda para quem ganha até 5 mil reais, promessa de campanha em 2022 com forte potencial eleitoral em 2026.
Pela proposta de isenção, um motorista com salário de 3.650 reais por mês vai economizar 1.058 ao ano, ou seja, deixará de pagar essa quantia de Imposto de Renda. Uma professora com contracheque de 4.867 reais poupará 3.970 reais anuais. Além da isenção total até 5 mil, haverá outras, parciais, para contracheques de 5.001 a 7 mil reais. Assim, um trabalhador que recebe 5.450 reais pagará 180 reais por mês, não mais 447 reais, economia anual de 3.202. Já uma enfermeira que ganha 6.260 reais poupará 1.822 reais por ano (pagará 530 reais por mês, não 670). Segundo o governo, 10 milhões de contribuintes serão beneficiados com a isenção total. A correção em 2023, após congelamento em 1.908 reais de 2015 a 2022, havia beneficiado outros 10 milhões, de acordo com o governo. Essa faixa subiu a 2.640 reais em 2023, a 2.824 reais em 2024 e irá a 3.036 neste ano. As mudanças feitas desde 2023 e a proposta de agora de isenção total ou parcial favorecerão 26 milhões de brasileiros, ou 65% daqueles que declaram ao Fisco. “O que se está fazendo aqui é justiça social”, disse o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, durante o anúncio das medidas. “Justiça é uma coisa simples de falar, mas difícil de fazer. Porque muitas vezes as pessoas que têm de fazer a justiça são pessoas que têm interesses antagônicos aos de quem precisa ser beneficiado pela justiça”, declarou o presidente no mesmo evento.
No Congresso reside a maior resistência à proposta de cobrar dos mais ricos para isentar do IR os mais pobres
O antagonismo está na outra face da moeda. Na proposta de isenção total ou parcial, o governo abre mão de 25 bilhões de reais por ano. Quer cobrir essa perda de receita com outra taxação, do contrário o “mercado” faria (mais) terrorismo fiscal. A compensação desenhada pelo time de Haddad joga a conta para 141 mil ricos. Uma turma que embolsa ao menos 50 mil reais por mês. Para estes, o governo propõe um Imposto de Renda mínimo, com alíquota variável de 0,8% (a partir de 50 mil reais) a 10% (válida para ganho mensal de 100 mil em diante). Desta medida sairiam 25 bilhões. Além disso, o Fisco também deseja cobrar na fonte 10% sobre lucros e dividendos distribuídos a sócios de empresas, o que renderia mais 8 bilhões ao ano.
A compensação pretendida pelo governo é complexa, envolve cálculos variados, deduções. A ver como os endinheirados e seus advogados especialistas em planejamento tributário (eufemismo para sonegação baseada em brechas na lei) vão tentar se safar. “É uma medida extremamente importante, que corrige uma questão central, mas que poderia ser ainda mais ousada e garantir maior justiça fiscal, atacando mais a regressividade do sistema tributário”, afirma o Sindifisco, sindicato nacional dos auditores fiscais.

Sidônio Palmeira acredita que a baixa popularidade do momento não reflete os feitos do governo nos dois primeiros anos – Imagem: Ricardo Stuckert/PR
Para valer a partir de janeiro de 2026, ano da eleição, a proposta depende de autorização do Congresso e é lá que os antagonismos citados por Lula ficarão claros. O Parlamento não só é permeável à causa dos ricos, como é ele próprio repleto de abonados. O salário de deputados e senadores é de 46 mil reais. Na quarta-feira 19, o senador Izalci Lucas, do PL do Distrito Federal, subiu à tribuna para reclamar. Aumentar a isenção, comentou, tudo bem, “agora, querer aumentar a carga tributária e aqui, de forma populista, dizer que realmente a tributação é injusta…”. Lucas é empresário e, ao ser eleito em 2018 (pelo PSDB), declarou ter 8,4 milhões de reais de patrimônio.
No mesmo dia do discurso, a reportagem testemunhou o deputado ruralista Alceu Moreira, do MDB gaúcho, dizer ao telefone, no plenário da Câmara: “Temos de fazer justiça com quem ganha até 5 mil sem fazer injustiça com quem ganha mais”. Aqueles 141 mil ricos chamados a pagar a conta são injustiçados? Segundo a Receita Federal, o que eles pagam de fato de Imposto de Renda é 2,5% de sua renda total, a chamada alíquota efetiva. A proposta do governo fará com que a média do grupo suba a 9%, patamar verificado hoje em dia no caso de um professor do ensino médio, de um PM ou de um jornalista. O presidente da Câmara, Hugo Motta, do Republicanos da Paraíba, deu pistas de certo desagrado congressual com a tentativa do governo de taxar os ricos. E o fez ao lado de Lula, na hora do anúncio da proposta. “O Congresso seguramente fará alterações (no projeto)”, afirmou, sinal da preferência parlamentar pela busca de renúncias tributárias já existentes para compensar os 25 bilhões das isenções. A lei do IR será a maior batalha do ano no Congresso, pelos antagonismos e pelas implicações eleitorais em 2026. Lula tem mais aceitação entre quem ganha até dois salários mínimos. Já era assim na última eleição. Em uma pesquisa Genial/Quaest de janeiro passado, o presidente tinha 56% de aprovação nessa faixa da população. No grupo de 2 a 5 salários mínimos, a desaprovação somava 54% e, acima desse piso, 59%.

*Fonte: Pesquisa Ipsos/Ipec de março de 2025

*Fonte: Pesquisa AtlasIntel de fevereiro de 2025
Há mais benefícios à vista para a classe média. Nesse caso, em moradia. O governo estuda elevar de 8 mil para 12 mil reais por mês o limite máximo de renda que permite buscar um financiamento por meio do Minha Casa, Minha Vida, crédito habitacional mais barato do que os juros cobrados em geral pelos bancos. Seria financiada a compra de imóveis de até 450 mil reais (hoje, o teto é de 350 mil). A arquitetura financeira para viabilizar a expansão do programa teve um pontapé inicial com um pedido do governo ao Congresso de aval para usar 15 bilhões de reais do fundo social do pré-sal.
O costume é bancar o programa com dinheiro do FGTS, mas o fundo vai encolher um pouco em razão de outra medida “popular” anunciada pelo governo recentemente: a liberação de 12 bilhões de reais para quem tenha sido demitido entre janeiro de 2020 e fevereiro de 2025. Na regra tradicional, um trabalhador demitido sem justa causa pode retirar todo depósito do FGTS, ou seja, tanto a multa rescisória quanto o saldo da conta. Em 2019, a gestão Bolsonaro criou um tipo novo de retirada, o “saque aniversário”. Nela, o trabalhador está autorizado a retirar anualmente uma parte do saldo da conta, mas, em contrapartida, só embolsa a multa rescisória dois anos depois de ter sido mandado embora. O governo Lula acha que, por falta de informação, muitos trabalhadores deixaram de resgatar o dinheiro, cerca de 12 milhões de beneficiários. Os pagamentos, estimados em 12 bilhões de reais, serão feitos em duas vezes, a primeira ainda em março e a segunda, em junho.

Mais emoção e foco nos cidadãos, eis os novos lemas em Brasília
O FGTS está no centro de outra medida recém-anunciada pelo governo com feição de “economia popular”. No início de março, Lula havia baixado uma Medida Provisória para criar um sistema de empréstimo consignado destinado a trabalhadores do setor privado com carteira assinada, inclusive rurais e domésticos, e a microempresários individuais, os MEIs. Crédito consignado é aquele que tem o salário como garantia, mas neste caso a garantia serão os depósitos no fundo. O sistema entraria em operação a partir da sexta-feira 21 e os interessados poderão solicitar um empréstimo a bancos e comparar as ofertas. Em troca, permitirá às instituições saberem o tempo de empresa e o salário dos proponentes, entre outros dados. Espera-se que os juros cobrados sejam menores. A estimativa do governo é de um público potencial de 47 milhões de tomadores de crédito. A previsão da Febraban, a federação dos bancos, é de 120 bilhões de reais em empréstimos para 19 milhões de trabalhadores em quatro anos. O brasileiro, registre-se, anda endividado. No fim de 2024, um quarto da renda mensal das famílias estava comprometido com dívidas, segundo o Banco Central. A dívida somada delas era de 48% da renda acumulada ao longo do ano. O recorde, 50%, foi em julho de 2022. Eis as razões para o lançamento, no ano seguinte, do programa Desenrola, de rolagem de dívidas. É de se supor que o novo crédito consignado sirva para trocar dívida mais cara por uma mais barata.
O Ministério da Justiça prepara uma proposta de lei “antimáfia” para minar as finanças do crime organizado
O bolso dos trabalhadores também tem sido castigado pelo preço da comida, outra causa da queda da popularidade de Lula. A inflação de alimentos e bebidas no primeiro ano do atual governo, 2023, tinha sido de 1%, bem abaixo dos 11% deixados por Bolsonaro. Em 2024, chegou, no entanto, a 7%. Há alguns dias, o governo decidiu baixar o imposto de importação da carne, do café, do açúcar, das massas, além de aumentar os estoques da Conab, à espera de que a safra agrícola deste ano aumente a oferta e tenha efeito positivo sobre o controle dos preços.
O estoque governamental de medidas populares não se restringe à economia. A segurança pública também está na mira. Em janeiro, a violência tinha sido apontada como o principal problema brasileiro, conforme pesquisa Genial/Quaest. Após meses de maturação, Lula e o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, fecharam em 13 de março uma proposta que basicamente amplia poderes e atribuições federais na segurança pública, área que, pela Constituição, está na esfera dos estados. Ainda não há, porém, data para enviar a proposta ao Congresso. O aumento do roubo de celulares nas grandes cidades é um dos combustíveis da preocupação do governo, e Lula falou a respeito em um evento no Ceará na quarta-feira 19. “A gente não vai permitir que a república de ladrões de celular comece a assustar as pessoas nas ruas deste país”, declarou.

As medidas econômicas são centrais, mas a segurança pública também terá destaque. Sarrubbo promete enfrentar as facções – Imagem: Robson Alves/MJSP e Rovena Rosa/Agência Brasil
O presidente mencionou a necessidade de enfrentar o crime organizado, aspecto mais importante da proposta do governo. O diagnóstico do Ministério da Justiça é que o avanço das organizações fez o crime nacionalizar-se. “As facções atingiram o estágio de máfia, na medida em que se infiltram na sociedade e nas relações com o Estado, em que dominam territórios. É uma situação insustentável que precisa de medidas urgentes”, diz Mario Sarrubbo, secretário nacional de Segurança Pública. Por isso, vem aí uma lei antimáfia, para atacar as facções onde mais dói: o bolso. “O tiro certo é interromper o fluxo financeiro, é ir em cima das finanças, do dinheiro, do ciclo econômico.”
A refundação comunicacional é o “tiro” do Planalto para tentar recuperar a imagem de Lula e do governo como um todo. Falta saber o saldo final desse enfrentamento com aquilo que é visto como uma poderosa máquina (a bolsonarista) a serviço do desencanto nas redes sociais. •
Publicado na edição n° 1354 de CartaCapital, em 26 de março de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Sacode a poeira’