O julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, da denúncia contra o ex-presidente Jair Bolsonaro e outros 33 envolvidos em um plano de golpe de Estado é uma oportunidade histórica para a sociedade brasileira dar um basta a conspiradores e adeptos de ditaduras. É o momento de consolidar a democracia e punir os extremistas de direita que ainda acham poder atuar impunemente contra o Estado de Direito.
Para entendermos a importância do julgamento, é preciso recuperar fatos históricos. Bolsonaro é da mesma facção de extrema-direita militar que tentou um golpe em 1977, em plena ditadura, comandada pelo então ministro do Exército, general Sylvio Frota, cujo ajudante de ordens era o hoje general Augusto Heleno, ex-ministro de Bolsonaro e agora na lista daqueles que serão julgados pelo STF.
Frota, Heleno e Bolsonaro, só para citar alguns, sempre tiveram relações umbilicais com o pérfido coronel Brilhante Ustra, jogado na lata de lixo da história como um dos maiores torturadores que o Brasil conheceu. Apelidado de “Major Tibiriçá” no DOI–Codi, Ustra foi escalado por Frota como motorista para buscar generais na Base Aérea de Brasília para uma reunião, que não houve, a fim de tentar evitar sua demissão, efetivada em 12 de outubro de 1977 pelo então presidente, general Ernesto Geisel. Os sequazes de Frota, contrariados pela abertura política “lenta e gradual” de Geisel, continuaram a fazer ameaças violentas contra opositores, dando início a inúmeros atentados a bomba País afora. Entre 1978 e 1987, o antigo SNI listou mais de 260 atentados da extrema-direita. Apenas entre 1979 e 1981, houve ao menos 40 explosões contra bancas de jornal, livrarias, universidades e sedes de jornais como O Estado de S. Paulo, Hora do Povo, Em Tempo e O Pasquim. Em 27 de agosto de 1980, uma carta-bomba enviada à sede da Ordem dos Advogados do Brasil no Rio de Janeiro explodiu e matou a funcionária Lyda Monteiro da Silva.
Em 30 de abril de 1981, no Riocentro, realizava-se um show em comemoração ao Dia dos Trabalhadores, com milhares de espectadores, a maioria jovens. Pouco depois das 9 da noite, uma grande explosão aconteceu no estacionamento. Uma bomba explodira no colo do sargento do Exército Guilherme Pereira do Rosário, dentro de um carro, no qual havia outro ocupante, o capitão Wilson Dias Machado. O primeiro morreu, o segundo ficou gravemente ferido. Ambos queriam explodir o artefato no Riocentro, provocando pânico e a morte de centenas de jovens, para atribuir depois o atentado à esquerda. A meta era retardar ou impedir o processo de abertura política em curso. O capitão Machado nunca foi punido, a exemplo de outros que cometeram crimes bárbaros na ditadura, entre eles os assassinos do ex-deputado Rubens Paiva em janeiro de 1971, nas dependências do Exército.
Em 1955, militares golpistas tentaram impedir a posse de Juscelino Kubitschek e nos anos seguintes promoveram revoltas, mas não foram punidos, apesar dos conselhos a JK do íntegro e legalista general Henrique Teixeira Lott. Impunes, menos de dez anos depois os mesmos personagens promoveram o golpe de 1964, deixando o Brasil nas trevas por 21 anos.
É esta fonte que nutre Bolsonaro e sua súcia, com ódio à democracia, à tolerância e às divergências políticas, normais em uma sociedade democrática. Formam uma facção política nas Forças Armadas, cuja imagem tentam manchar. Portanto, a impunidade pode continuar a estimular os lunáticos amantes da ditadura a atacar a democracia.
Não se pode esquecer que em 24 de dezembro de 2022, com o presidente Lula eleito, um terrorista bolsonarista tentou explodir um caminhão-tanque no aeroporto de Brasília. Com certeza, a impunidade pretérita o levou a planejar o atentado que, só por um milagre, não se concretizou. Em 12 de dezembro daquele ano, apoiadores do ex-presidente depredaram carros, ônibus e a sede da Polícia Federal em Brasília. Espalharam o terror na capital federal, estimulados pela impunidade e inação do governo local e do próprio capitão, que um dia lamentou que o regime militar no Brasil não tenha assassinado mais de 20 mil opositores, como nas ditaduras da Argentina e do Chile.
Está na hora de romper com o inesgotável ciclo de golpes e tentativas no Brasil
Bolsonaro é representante dos adoradores dos porões da tortura do regime militar. E assim deve ser encarado pela sociedade brasileira. O jornalista Luiz Maklouf escreveu um livro sobre o plano de Bolsonaro para explodir bombas em quartéis e no sistema de água do Rio de Janeiro, o Sistema Guandu, nos anos 1980. Infelizmente, não foi punido e ao longo dos anos deu vazão a seus instintos golpistas e ditatoriais. Sempre foi um “mau militar”, para usar a expressão de Geisel.
Os atentados ocorridos no fim da ditadura não foram investigados e seus perpetradores nunca sofreram quaisquer consequências jurídicas, ao contrário de hoje. As investigações da Polícia Federal, nas quais a Procuradoria-Geral da República se baseou para encaminhar ao STF a denúncia contra Bolsonaro e seu bando criminoso, são rigorosas e mostram que vivemos outro tempo. Os golpistas devem ser punidos. É inadmissível anistiar os terroristas do 8 de Janeiro de 2023 e também aqueles que ao longo do governo passado, como Bolsonaro, conspiraram contra a democracia. É o caso dos envolvidos na Operação Punhal Verde Amarelo para o assassinato de Lula, Geraldo Alckmin e o ministro Alexandre de Moraes, do STF, no fim de 2022. Anistiá-los é dar condições de continuidade às articulações golpistas.
O bolsonarismo é uma facção de extrema-direita que utiliza métodos violentos e ações terroristas. Como os direitistas do passado, vale-se também da mentira e do engodo contra adversários políticos. Como pretendiam fazer no Riocentro, tentam hoje, grotescamente, jogar nos ombros da esquerda a culpa pelos atentados do 8 de Janeiro. Os direitistas do passado continuam a agir, só mudaram a forma.
Os terroristas que atacaram as sedes dos Três Poderes têm de pagar com a prisão, assim como seus mentores. Pela primeira vez na história, vamos ter o julgamento, pela Justiça Comum, de militares que cometeram crimes. A democracia é um bem essencial. O futuro de Bolsonaro e de seu bando criminoso é a cadeia. Se permanecerem impunes, como os golpistas do passado, a violência voltará para tentar destruir nossa democracia. •
*Deputado federal (PT–RJ) e líder do partido na Câmara dos Deputados.
Publicado na edição n° 1354 de CartaCapital, em 26 de março de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Encontro com a Justiça’