Michel-Rolph Trouillot, nascido em 1949 em Porto Príncipe, capital do Haiti, publicou Silenciando o Passado em 1995, quando já era um bem-estabelecido professor universitário nos Estados Unidos.

Nesses quase 50 anos que separam um ponto do outro, houve uma miríade de acontecimentos: o início da ditadura de Duvalier, “Papa Doc”, em 1957; a fuga e o exílio da família Trouillot em 1968; e o início de seu doutorado em Antropologia na Universidade Johns Hopkins em 1978.

Na época do doutorado, Trouillot trabalhava como motorista de táxi e também fundou uma companhia de dança e teatro com outros expatriados. Batizou a trupe com o nome “Tanbou Libète”, ou seja, “Tambor da Liberdade”.

Silenciando o Passado: Poder e a Produção da História, que a Cobogó lançou recentemente no Brasil, é um estudo de referência sobre a Revolução Haitiana (1791–1804), o colonialismo e a escravidão. Trouillot reflete sobre esses temas a partir da perspectiva crítica de fins do século XX. É por isso que faz referências à sua trajetória e de sua família ao mesmo tempo que mescla, em sua argumentação, ferramentas da Antropologia, da ­Ciência Política, da Filosofia e da Sociologia.

Por ter sido bem-sucedida, resultando na independência do Haiti, a revolta de escravos e ex-escravos contra o domínio francês em São Domingos colocou em questão, como escreve Trouillot, “as premissas ontológicas e políticas dos escritores mais radicais do Iluminismo”. Mais que isso: foi um evento da ordem do “impensável”, pois “questionava o próprio quadro referencial dentro do qual proponentes e oponentes haviam examinado temas como raça, colonialismo e escravidão nas Américas”.

Silenciando o Passado: Poder e a Produção da História. Michel-Rolph Trouillot. Tradução: Sebastião Nascimento. Cobogó (264 págs., 92 reais)

Para Trouillot, os eventos revolucionários no Haiti não são matéria inerte do passado. Eles seguem vivos justamente porque deslocam as premissas da razão política ocidental. É possível, a partir do Haiti, retomar o “fracasso das categorias” e o “fracasso da narração”, como aponta Trouillot no terceiro capítulo de Silenciando o Passado: “O que ocorreu no ­Haiti contradiz muito do que o Ocidente conta de si mesmo, para si e para os outros”.

Não se trata, da parte de Trouillot, apenas de uma denúncia do silenciamento. O autor oferece o diagnóstico e, paralelamente, uma argumentação propositiva a respeito do que pode ser feito. Em resumo, é preciso trabalhar para além da zona de conforto da lógica ocidental do “pensável”.

O autor, por exemplo, apresenta o 12 de outubro de 1492 – data da chegada de Colombo às Bahamas, em busca de uma nova rota para as Índias – não como ponto inicial de uma narrativa do “descobrimento”, e sim como um eco tardio da complexa “interpenetração cultural” ocorrida entre “cristãos, muçulmanos e judeus” nos séculos anteriores.

Trouillot multiplica as variáveis e embaralha as referências, recusando o pressuposto de que apenas “a partir do momento em que é descoberto por europeus” o “Outro” finalmente “pôde entrar no mundo humano”.

Ele usa, portanto, a Revolução Haitiana como ferramenta para ampliar a dimensão ética da escrita da história. No processo, ele revisa uma série de categorias fundamentais – arquivo, memória, narração, ideologia – e frisa que o passado não é um campo exclusivo de especialistas, mas uma matriz para a produção de sentidos e identidades para todos nós. •


VITRINE

Por Ana Paula Sousa


Em Todas as Crianças do Mundo (Ars et Vita, 208 págs., 82 reais), seu primeiro romance, a poeta e tradutora israelense Tal Niztná narra a história de dois adultos, uma criança e um gato que tentam lidar com a aspereza da Tel-Aviv contemporânea.


As 408 páginas de Brasil Africano: Orixás, Sacerdotes, Seguidores (Pallas, 77 reais) reúnem uma grande variedade de textos, em diferentes formatos, publicados ao longo de 50 anos pelo sociólogo Reginaldo Prandi, referência nos estudos sobre religião no País.


Narrador afeito a tornar poesia a prosa, o escritor português José Luís Peixoto revolve suas memórias e seus afetos nas 162 breves crônicas reunidas em Abraço (Record, 680 págs., 174,90 reais). Especialmente tocantes são suas descrições da paternidade.

Publicado na edição n° 1354 de CartaCapital, em 26 de março de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A reescrita da história’

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Last Update: 20/03/2025