O novo panóptico
por Felipe Bueno
Um marco na análise dos sistemas penitenciários – e da natureza humana em sua forma repleta de convenções, medos e ressentimentos chamada sociedade – completa cinquenta anos: Vigiar e Punir, de Michel Foucault.
Para quem não conhece a obra, trata-se de uma proposta de entendimento do que está por trás do mecanismo de punição adotado, no século XX, como uma revisão aprimorada e humanizada de procedimentos anteriores de pena e reinserção social. Para sustentar a exposição de suas teses, Foucault nos entrega uma fundamentação histórica que tem como base a realidade francesa. Independentemente das particularidades nacionais, o estudo serviria para explicar realidades muito parecidas, no mínimo em todo o mundo ocidental.
O recorte no tempo é definido a partir do século XVIII, época moderna ainda com inúmeras tradições medievais, e chega ao pós-1945.
A vigilância, a detenção, o julgamento, o afastamento e a punição – à parte do restante da sociedade – são aparatos do que Foucault entendeu como biopoder, um conceito que iluminou os debates das décadas seguintes, estabelecendo um degrau, por exemplo, para os estudos de Achille Mbembe, que escreveu A Necropolítica.
O objeto central é o condenado e, especificamente, seu corpo: esse combo será primeiramente supliciado; depois, num momento histórico posterior, terá a violência física da sociedade substituída por outra, mais formal, fundamentada em leis escritas – portanto impessoal – mas de modo algum menos insidiosa, que em vez de destruir fisicamente adestra e transforma cada interno do sistema em peça útil/descartável: a classificação do ser desajustado, seu silenciamento, sua submissão e seu isolamento são ferramentas de domínio e de controle do corpo com o propósito de atingir a “alma”.
Charmoso, bem vestido e de modos elegantes, Foucault foi uma das estrelas de um momento histórico distinto do nosso, no qual intelectuais – de verdade – eram vistos com frequência em debates sérios e propositivos, tinham suas vozes ouvidas por interlocutores e não por paredes e possuíam espaço e relevância nos meios de comunicação e nos cafés das cidades mais civilizadas.
Falando em outros tempos, termino com uma reflexão que poderia ser um delírio, mas infelizmente não é: cinquenta anos depois, vivemos um momento histórico em que, no limite, qualquer pessoa se permite vigiar e punir, ainda que nas efêmeras cortes das redes sociais. Cada um de nós vive uma fusão da ficção com a teoria: somos todos versões potenciais do juiz-penitente de A Queda, de Albert Camus, vigiados incansavelmente por um novo e mais poderoso modelo de panóptico.
Felipe Bueno é jornalista desde 1995 com experiência em rádio, TV, jornal, agência de notícias, digital e podcast. Tem graduação em Jornalismo e História, com especializações em Política Contemporânea, Ética na Administração Pública, Introdução ao Orçamento Público, LAI, Marketing Digital, Relações Internacionais e História da Arte.
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