Mahmoud Khalil e a perseguição contra muçulmanos nos EUA
por Eduardo Vasco
Os meios de imprensa internacionais noticiam a prisão e tentativa de deportação do estudante palestino Mahmoud Khalil como uma medida específica de Donald Trump, motivada pela islamofobia do presidente dos Estados Unidos. Se fosse só isso, já seria algo extremamente grave e perigoso.
Mas se ignora o vasto currículo repressivo das autoridades dos EUA e as verdadeiras motivações dessas perseguições. Trata-se de perseguições políticas não apenas contra a solidariedade ao povo palestino, mas contra a própria organização das massas oprimidas dentro dos Estados Unidos.
Não é por acaso que esse histórico de perseguição sistemática a muçulmanos tenha iniciado na década de 1960. Foi justamente quando os negros estadunidenses, vítimas de um sistema de apartheid que continuou mesmo com o welfare state do pós-guerra, tomaram consciência de seus direitos civis e se radicalizaram para lutar por eles. O ambiente externo também era propício e influenciou a criação de diversas organizações negras, em particular as revolucionárias. Os povos do então chamado “Terceiro Mundo” se rebelavam e arrancavam a independência na marra contra as potências coloniais. Foi uma época de crise da dominação imperialista e de intensa agitação política e social nos Estados Unidos e no mundo – expressas sobretudo pela Guerra do Vietnã e as manifestações de 1968.
O componente de classe era o mais fundamental: aqueles negros vivam nos bairros operários mais empobrecidos das cidades industriais. O racial era também essencial: após séculos de escravidão, as autoridades e os próprios cidadãos brancos se acostumaram a tratar os negros como subumanos. Mas o religioso também tinha uma importância significativa: muitos dos povos que estavam se rebelando contra a opressão colonial eram muçulmanos, tanto da África quanto do Oriente Médio e da Ásia.
Uma onda de conversões ao islã se abateu sobre ativistas dos bairros negros das urbes norte-americanas. Muitos consideravam o islã a religião original dos africanos trazidos como escravos para a América e queriam retomar a tradição, incentivados pela empatia com os povos que se rebelavam naqueles anos. Malcom X adotou o nome de el-Hajj Malik el-Shabazz, Cassius Clay o de Muhammad Ali. Os Panteras Negras – com muitos membros convertidos – se tornaram a principal ameaça ao regime, de acordo com o FBI, que tratou de suprimir a vanguarda do movimento, assassinando dezenas de militantes e desorganizando as comunidades negras através de infiltrações.
Antigos ativistas negros estão presos até hoje, como Mumia Abu-Jamal (desde 1981 e hoje com 71 anos) e Jamil Abdullah al-Amin (preso por cinco anos no início da década de 1970 e novamente desde 2000, hoje com 81 anos). Muitos negros se converteram ao islamismo na prisão, como o próprio Malcom X e Mike Tyson.
Em 2019, a organização Muslim Advocates publicou um relatório que estimou em 9% o índice de presidiários adeptos do islã (136.000 presos), apesar de muçulmanos serem pouco mais de 1% da população dos Estados Unidos.
Fica evidente o caráter classista, vinculado ao racial, por trás da adesão de estadunidenses ao islã. Em 1996, os negros representavam 42% da comunidade muçulmana nos EUA, contra apenas 1,6% de brancos. O restante eram imigrantes provenientes de países de maioria islâmica. Um outro dado, de 2019, apontou números diferentes: 20% de muçulmanos negros. O curioso é que, desses, metade haviam se convertido. Não espanta que os muçulmanos convertidos tenham uma presença destacada entre círculos de rap, hip hop, boxe e basquete, estilos musicais e modalidades esportivas tradicionalmente negros e proletários.
Após a bonança do pós-guerra, que gerou a crise do início dos anos 70, o novo ciclo de bonança e crise pós-guerra fria também ficou marcado pelo aumento da repressão à comunidade muçulmana nos Estados Unidos. A famigerada “guerra ao terror” de George Bush Jr. utilizou o ataque às Torres Gêmeas e a mentira das armas de destruição em massa de Saddam Hussein não apenas para invadir, devastar e roubar os países de maioria islâmica. A “guerra ao terror” também foi interna.
O próprio FBI reconheceu que os crimes de ódio contra os muçulmanos dentro dos Estados Unidos explodiram após o 11 de setembro. Em 2008, Shukri Abu-Baker e Ghassan Elashi foram condenados a 65 anos de prisão cada um, além de outros companheiros da Fundação Terra Sagrada, acusada de pertencer ao Hamas. Foi a primeira vez na história dos EUA que se permitiu como testemunha do suposto crime um profissional não identificado, que era agente do governo de Israel.
Entre 2002 e 2022, ao menos 779 muçulmanos (inclusive crianças) foram presos pelos Estados Unidos na prisão da base naval ilegal de Guantánamo, em Cuba. Quase todos eles foram presos sem acusação ou julgamento. Muitos foram torturados, alguns até a morte.
Um relatório publicado em 2021 pela Coalizão pelas Liberdades Civis apontou que mais da metade dos casos de suposto terrorismo foi manipulada pelo FBI através de uma rede de 15.000 informantes pagos para se infiltrar em comunidades muçulmanas a fim de forjar provas ou incidentes.
O aparato montado pelas administrações anteriores de democratas e republicanos é a base para a política de perseguição, repressão e deportação anunciada por Trump. Ainda que ele esteja realizando um pente-fino para que seu grupo consiga assumir o controle do “deep state”, as mudanças não deverão prejudicar o aparato ligado ao lobby sionista.
A guerra de libertação do povo palestino, acentuada no final de 2023, surtiu grandes efeitos na política interna dos Estados Unidos, em especial no ânimo de milhões de jovens, trabalhadores e ativistas. Milhares de estudantes foram presos pela repressão desencadeada pelo governo Biden às ocupações de universidades no ano passado. O rechaço ao patrocínio de Biden ao genocídio ajudou a derrotar Kamala Harris.
Mas esses milhões de cidadãos, herdeiros das lutas estudantis, negras e operárias dos anos 1960, tampouco são adeptos do trumpismo. À medida que a política econômica “salvadora” de Trump não gera resultados para essas massas, e à medida que ele aprimora a repressão para conter a insatisfação popular – com as políticas neoliberais e com a sanha imperialista –, a oposição ao regime tenderá a aumentar. O regime sabe disso e por isso intensifica a perseguição aos ativistas pró-Palestina. Eles representam um sentimento enraizado nas classes populares, que está voltando a despertar.
Eduardo Vasco – Jornalista especializado em política internacional, foi correspondente na guerra da Ucrânia e escreveu os livros-reportagem “O povo esquecido: uma história de genocídio e resistência no Donbass” e “Bloqueio: a guerra silenciosa contra Cuba”.
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