Nós, mulheres, ainda estamos longe de alcançar o respeito aos nossos direitos humanos. Ainda somos excluídas de vários espaços de poder, ainda morremos por violência, ainda nos faltam direitos básicos, ainda padecemos sem isonomia salarial em relação aos homens. Para se ter uma ideia, o Brasil ficou em 70º lugar no ranking do Global Gender Gap Report 2024, realizado pelo Fórum Econômico Mundial, com uma queda de 13 posições em relação ao ano anterior. O relatório avalia a paridade de gênero em quatro dimensões principais: participação econômica e política, nível educacional e saúde.

Um dos dados mais alarmantes é a redução do empoderamento político das mulheres, com a queda da representatividade feminina em cargos políticos de 26,3% em 2023 para 22% em 2024. Além disso, a participação de mulheres em posições de liderança continua em declínio, dado que revela a persistência de desigualdades estruturais no mercado de trabalho.

A situação da igualdade de gênero no Brasil, destacada pelo documento, evidencia desafios significativos que persistem apesar dos avanços conquistados nas últimas décadas. A queda no ranking global é um sinal preocupante e que demanda políticas mais eficazes para promover a inclusão das mulheres em todas as esferas da sociedade.

A representatividade feminina na política, um dos indicadores mais críticos do relatório, reflete um retrocesso preocupante. Essa diminuição não apenas aponta a falta de incentivos e de apoio para candidaturas femininas, mas a existência de um ambiente inóspito na política. Ambiente que frequentemente marginaliza as vozes das mulheres, indica a vigência da violência política de gênero e limita nossa participação na tomada de decisões.

Nesse cenário, o ano de 2025 desponta como bem significativo para a população feminina, com o marco dos dez anos de implementação da Lei do Feminicídio (Lei 13.104, de 2015), no dia 9 de março. Também em 2025, o 30º aniversário da 4ª Conferência Mundial sobre as Mulheres pode servir como uma oportunidade para que o país revise e fortaleça os compromissos assumidos pelas nações signatárias da Plataforma de Ação de Pequim. A Plataforma é um marco global que estabelece diretrizes e um plano de ação para alcançar a igualdade de gênero e o empoderamento feminino em todo o mundo.

O Brasil, como uma das 189 nações que aderiram aos acordos da Conferência, ainda enfrenta dificuldades para implementar políticas eficazes que promovam a igualdade de gênero e o enfrentamento à violência contra as mulheres. O Capítulo J da Plataforma, em particular, oferece recomendações valiosas para combater a reprodução de estereótipos sexistas nas comunicações, propondo ações concretas e colaborativas entre diferentes setores da mídia e da sociedade.

Entre as recomendações do Capítulo J, destacam-se a necessidade de uma avaliação crítica dos conteúdos veiculados na mídia e na publicidade, identificando e monitorando a presença de estereótipos sexistas; a promoção de campanhas de educação e sensibilização para conscientizar o público sobre os impactos negativos desses estereótipos e da violência de gênero; e a inclusão de programas educacionais nas escolas que tratem de questões de gênero e liderança feminina.

Além disso, é essencial fomentar o diálogo e o debate por meio de fóruns e seminários que discutam abertamente a representação feminina na mídia e propostas para mudanças estruturais. A promoção da diversidade na indústria da comunicação também é imprescindível, com políticas que rompam com os tetos de vidro nas redações e incentivem a participação de mulheres em cargos de gestão e tomada de decisão. Todas essas ações podem favorecer a realização de coberturas equilibradas e livres da culpabilização das vítimas de violência, por exemplo, algo tão presente nas produções brasileiras.

MPPE publica nota técnica para profissionais de comunicação

Uma ação significativa para fortalecer o enfrentamento à reprodução midiática dos atentados contra as mulheres foi a publicação, pelo Ministério Público de Pernambuco, no final de 2024, de uma nota técnica direcionada para profissionais da comunicação que atuem em cobertura de casos de violência contra a mulher. O documento se assenta em artigos da Constituição Federal, em leis nacionais, em convenções internacionais das quais o Brasil é signatário, como a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra as Mulheres (Convenção de Belém do Pará), e na atualização da Lei Maria da Penha, em vigor desde 18 de novembro de 2024, que determina o sigilo sobre o nome das vítimas.

A medida tem o objetivo de resguardar a memória das vítimas, protegê-las das consequências da exposição midiática, diminuir o impacto dessas narrativas na vida de mulheres em situação similar ou sobreviventes, além de evitar a exposição de vítimas indiretas, ou seja, de familiares e conhecidos dessas mulheres, incluindo crianças e adolescentes. Trata-se de uma iniciativa fundamental já que ainda temos programas policialescos que violam insistentemente os direitos humanos das mulheres.

A nota técnica, ao se dirigir a profissionais e meios de comunicação, ressalta o poder dos símbolos, dos sentidos e da cultura no enfrentamento (ou manutenção) da violência contra a mulher e traz à tona a intersecção entre questões que envolvem os temas da mídia, direitos humanos, raça, classe e gênero.

Parte considerável dos veículos de comunicação, que deveriam cumprir a sua função social de disseminar uma cultura em direitos humanos, viola esses direitos, sendo palco de discursos misóginos, racistas e classistas. Não raro a mídia, em especial a hegemônica, reproduz sentidos e ideologias que ratificam padrões em consonância com o discurso de elites econômicas, religiosas e políticas, as quais controlam os meios de comunicação tradicionais no país, em detrimento dos interesses e necessidades das classes subalternas.

A nota técnica do MPPE destaca que:

“Preservação do nome, da imagem, da privacidade e todos os demais direitos das vítimas diretas e indiretas de violência em contexto de violência doméstica ou familiar ou de outra forma de violência contra o gênero feminino, respeitando tais direitos em qualquer hipótese, entendendo como direitos personalíssimos e, diante dessa natureza, disponíveis tão somente pelas vítimas diretas e indiretas, na forma da lei civil.”

A iniciativa também tem interface com o trabalho que o Intervozes tem desenvolvido na Paraíba, com a formaliazação, junto ao Ministério Público Federal (MPF), o Ministério Público do Estado da Paraíba (MPPB) e a Defensoria Pública do Estado da Paraíba (DPE) da assinatura de recomendações que tratam da comunicação sobre a violência contra a mulher e do lançamento do Guia de Enfrentamento da Violência contra as Mulheres: Diretrizes para uma Cobertura Responsável para a Mídia em casos de violência contra as mulheres. A publicação foi produzida em parceria com a Secretaria da Mulher e da Diversidade Humana da Paraíba, a Rede Estadual de Atenção às Mulheres em Situação de Violência Doméstica, Familiar e Sexual (Reamcav).

Nunca é demais citar que estamos tratando de um fenômeno de grande magnitude social. De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2024, as autoridades nos estados registraram 1.238.208 casos de mulheres que sofreram algum tipo de violência de gênero apenas em 2023. O feminicídio, que, em geral, é a linha final de uma perversa e longa estrada de violências, roubou a vida de 1.467 mulheres. Esse é o maior número já registrado desde que a lei do feminicídio foi criada. As principais vítimas do feminicídio eram negras (63,6%) e tinham entre 18 e 44 anos.

Já a pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública aponta que a violência doméstica no Brasil aumentou em 2023 em relação a 2022: 778.921 mulheres vivenciaram e registraram casos de ameaças (um crescimento de 9,8%); 38.507 sofreram violência psicológica (aumento de 33,8%); e o crime de perseguição (stalking) foi denunciado por 77.083 mulheres (aumento de 34,5%).

Quando observamos os altos índices de atentados contra as mulheres estampados na mídia podemos dizer que, quando os veículos produzem coberturas machistas, misóginas, vazias de crítica consistente e estereotipadas, colaboram com a manutenção do ideário que justifica, diminui a importância e/ou naturaliza a violência sexista, ocorre uma infração à Lei Maria da Penha, ironicamente presente na maior parte das matérias jornalísticas sobre violência contra a mulher que menciona legislações.

“Ao noticiar um feminicídio, raramente a imprensa estimula a reflexão sobre as causas da violência contra as mulheres. Sabe-se que muitas dessas mortes envolvem um contexto de desrespeito e menosprezo à condição feminina, por vezes até de misoginia e ódio. Fora do contexto de violência doméstica, são exemplos de feminicídio os assassinatos de mulheres acompanhados de violência sexual e/ou mutilação dos corpos, especialmente em áreas do corpo como seios, genitais e rosto”. (dossiê feminicídio, IPG)

Vale lembrar que, no artigo 8º, sobre as políticas de prevenção da Lei 11.340/2006, popularmente conhecida como Lei Maria da Penha, está prevista a necessidade dos meios de comunicação de “coibir os papéis estereotipados que legitimem ou exacerbem a violência doméstica e familiar”.

A luta por justiça social também é travada, cotidianamente, no campo discursivo, do simbólico, ainda mais neste período histórico em que as mídias se colocam no centro do poder e da construção do debate público. Sem uma comunicação emancipadora, não sexista e antirracista perdem as mulheres e toda a sociedade. Os veículos de comunicação, em todos os seus formatos e suportes, precisam ser inseridos nesse debate, pois, de forma alguma, estão à margem da responsabilidade com a efetivação (ou não) de direitos e da equidade de gênero.

E nunca é tarde para lembrar de Audre Lorde, no texto “A transformação do silêncio em linguagem e ação”, que nos convoca a travar uma guerra contra a tirania do silêncio. Ela diz que nossos silêncios nunca nos protegeram. E que há muitos silêncios para serem quebrados. Que quebremos todos os silêncios, inclusive os da mídia.

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Last Update: 18/03/2025