A manifestação da extrema direita em Copacabana teve adesão menor que o esperado, mas discursos radicais reforçaram ataques contra o STF e o governo Lula


No dia 16 de março de 2025, neste domingo (8), a extrema direita realizou mais um ato público em Copacabana, no Rio de Janeiro, reunindo milhares de manifestantes. A mobilização teve como propósito declarado pressionar pela anistia dos envolvidos nos ataques às sedes dos Três Poderes, ocorridos em 8 de janeiro de 2023. O evento foi convocado com ampla mobilização da base bolsonarista e teve como eixo central discursos contra o governo Lula e o Supremo Tribunal Federal (STF), com ataques direcionados especialmente ao ministro Alexandre de Moraes.

Os organizadores projetaram uma adesão massiva, estimando a presença de 100 mil pessoas no evento. No entanto, a contagem realizada pelo Monitor do Debate Político no Meio Digital, vinculado à USP, apontou que, no pico da manifestação, havia 18,3 mil participantes. Esse número ficou bem abaixo de eventos anteriores, como os atos de 7 de setembro de 2022, sugerindo uma redução na capacidade de mobilização do bolsonarismo após a derrota eleitoral e o avanço das investigações judiciais contra seus principais líderes.

No entanto, se o número de participantes pode ensejar uma aparência de fragilização do campo, em termos políticos o ato obteve resultados interessantes, interditando qualquer narrativa de fracasso que nos leve a crer que a extrema direita está fragilizada. Até porque, em virtude dos processos de alteração na dinâmica de formação da opinião pública, cada vez mais fragmentada, o principal propósito desse tipo de ato é produzir material para as redes sociais. Nesse material, os cortes produzidos mostram uma Copacabana lotada de pessoas de verde e amarelo.

O segundo propósito do evento foi mostrar a força de Jair Bolsonaro e sua capacidade de mobilizar políticos que se mantêm sob sua liderança. A lista de presentes evidencia isto. Foram quatro governadores de três partidos diferentes, Cláudio Castro (PL-RJ), Tarcísio de Freitas (Republicanos-SP), Jorginho Mello (PL-SC) e Mauro Mendes (União Brasil-MT), dois deles representam os maiores estados em termos eleitorais e econômicos, com especial destaque para o governador de São Paulo, tido como principal alternativa a Bolsonaro, que demonstrou reverência e submissão ao líder em sua fala.

O poder Legislativo também esteve representado por parlamentares do Partido Liberal como Flávio Bolsonaro, Magno Malta, Nikolas Ferreira, Sóstenes Cavalcante, o deputado federal Maurício do Vôlei e o deputado estadual Bruno Engler. Também esteve presente o deputado federal Rodrigo Valadares (União-SE), relator do PL da anistia.

No tocante à sociedade civil, destaca-se o protagonismo da maior liderança religiosa do país, o pastor Silas Malafaia, que teve papel central na organização e na condução dos discursos.

A manifestação ocorreu às vésperas do julgamento no STF sobre uma denúncia da Procuradoria-Geral da República (PGR), que pode tornar Bolsonaro réu em um processo de tentativa de golpe de Estado. Esse contexto ajudou a moldar os discursos do ato, nos quais a anistia foi defendida como uma necessidade para a “pacificação do país”, ao mesmo tempo em que críticas severas eram dirigidas ao STF e ao governo Lula.

O evento revelou diferentes posturas entre seus principais líderes: enquanto figuras como Malafaia e Flávio Bolsonaro usaram tons mais agressivos contra Alexandre de Moraes, governadores como Tarcísio adotaram um discurso mais moderado, sugerindo a necessidade de revisar eventuais “excessos” na punição dos condenados.

O montante numérico da manifestação em termos de público não significa, no entanto, que sua pauta tenha sido esvaziada. O foco do bolsonarismo desloca-se progressivamente das ruas para as instituições, com tentativas de articulação política no Congresso Nacional em torno do projeto de anistia, enquanto Bolsonaro e seus aliados preparam-se para os próximos desafios jurídicos e eleitorais.

Além da dimensão institucional, a extrema direita também investe na ressignificação de conceitos historicamente associados à esquerda. Isso ocorre em populismos de direita ao redor do mundo, mas no Brasil ganha contornos específicos em virtude do retorno dos debates sobre anistia. Esse retorno é produto da recuperação do imaginário da ditadura militar e seus desdobramentos, enquanto núcleo discursivo das performances de Jair Bolsonaro, ao longo de seus sete mandatos consecutivos como deputado federal. No entanto, a apropriação de significantes discursivos caros à esquerda vai além da ideia de anistia, abarcando também conceitos como liberdade de expressão, censura e tortura, como veremos ao analisar as falas de alguns dos presentes na manifestação.

Tarcísio e o paradoxo entre moderação e extremismo

O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, vem desempenhando um papel difícil na cena da extrema direita brasileira: o de líder moderado. A dificuldade vem do fato de que moderação e extremismo são termos antitéticos.

O recurso utilizado para performar dessa maneira é fazer sinalizações distintas ao longo de seus discursos. Ora acena ao mercado, indicando que o governo atual é irresponsável pois “gasta mais do que arrecada”. Ora ataca a institucionalidade liberal, vociferando contra o Supremo Tribunal Federal. A despeito destas modulações, o personagem aposta em um perfil de eleitor lava-jatista do que bolsonarista, porém entende que não pode abrir mão de nenhum dos segmentos caso tenha pretensões de governar o país. Sugerindo que os acusados do 08 de janeiro seriam menos criminosos por não estarem envolvidos em corrupção, o governador acenou a esse público que também se encontrou representado pelo bordão lavajatista vociferado pelo senador Flávio Bolsonaro: “Lula ladrão, seu lugar é na prisão”.

O discurso de Tarcísio, todavia, foi marcado por uma inflexão econômica, na chave de um segundo bordão, este mais recente e de marcação bolsonarista: “tá tudo caro, volta Bolsonaro”. Sobre esta virada discursiva da extrema direita para o âmbito econômico, talvez seja possível encará-la com otimismo, na medida em que, esse é um tema no qual o campo progressista consegue navegar com seus números, fatos e explicações oriundas de uma racionalidade instrumental, cada vez mais ameaçada por uma política que tem passado por um processo de dessecularização. Como fica nítido na proeminência de outros dois protagonistas do ato em Copacabana: Silas Malafaia e Nikolas Ferreira.

“Esse país não é da esquerda, é das pessoas de verde e amarelo”

O pastor Silas Malafaia ocupa um papel estratégico dentro do bolsonarismo, não apenas como líder religioso, mas como articulador político de grande influência sobre a base evangélica. Malafaia é presidente da Assembleia de Deus Vitória em Cristo e há décadas construiu uma carreira como televangelista, empresário do setor religioso e influenciador de massas dentro do meio religioso.

Desde o início do governo Bolsonaro, Malafaia se tornou um dos principais aliados do ex-presidente, operando como um elo entre o bolsonarismo e o eleitorado religioso. Sua atuação extrapola o púlpito. O pastor utiliza sua rede de comunicação para disseminar discursos contra o STF, a esquerda e a “ameaça do globalismo”, estruturando uma narrativa de resistência cristã diante do que chama de “perseguição ao povo de Deus”.

No ato de 16 de março, Malafaia esteve no centro da organização e da condução dos discursos. Ele elevou o tom contra o ministro Alexandre de Moraes, chamando-o de “criminoso e ditador”, e buscou mobilizar a indignação da base evangélica contra o Judiciário, argumentando que os condenados de 8 de janeiro estão sendo perseguidos por sua fé e patriotismo. Sua participação no evento reforçou seu papel como um dos principais articuladores da frente religiosa do bolsonarismo, mantendo seu discurso alinhado com a tese de que há uma “guerra cultural” em curso no Brasil, na qual a religião deve desempenhar um papel fundamental.

Nikolas Ferreira consolidou-se como uma das figuras mais expressivas da nova geração bolsonarista, combinando retórica agressiva, forte presença digital e um discurso alinhado às pautas conservadoras. Nascido em Belo Horizonte, foi criado na Comunidade Evangélica Graça e Paz, onde seu pai atua como pastor presidente do ministério. Com apenas 26 anos, conquistou 1,47 milhão de votos, sendo o terceiro deputado mais votado da história da Nova República, atrás dos deputados Eduardo Bolsonaro (PL-SP), com 1,84 milhão de votos, em 2018, e Enéas Carneiro, que em 2002 conquistou 1,57 milhão de votos. Esse ranking ilustra a capilaridade da extrema direita no país e a importância de que seu discurso seja analisado e respeitado por aqueles que desejam ser seus adversários políticos.

Voltando a Copacabana, Nikolas fez uma fala fortemente emotiva e conduziu o discurso para a humanização dos acusados, chamando atenção para suas trajetórias de vida e para o impacto das prisões sobre suas famílias. Este tom emotivo também esteve presente na fala de Bolsonaro, que se concentrou nas mulheres presas, em uma fala voltada para atrair o segmento feminino do eleitorado, no qual a extrema direita tende a ter menor penetração.

Nikolas demarcou o apoio de uma das principais autoridades institucionais do país ao pleito da anistia, mencionando que o presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta, recebeu o pai de um dos presos pela tentativa de golpe. Acredito, entretanto, que dois elementos da fala de Nikolas mereçam destaque pois são representativos do discurso de seu campo político. O primeiro é o ataque ao Supremo Tribunal Federal, que foi o mote central da fala de Malafaia, que se orientou para questionar diferentes aspectos da denúncia, usando um léxico propedêutico, enumerando supostas inconsistências na denúncia.

Nikolas, contudo, demarcou algo que não se faz usualmente presente nessas falas, mas que é ilustrativo daquilo que subjaz a contenda, afirmando que o ministro Alexandre de Moraes não recebeu nenhum voto. Essa acusação é interessante pois aponta para a própria função da corte suprema, agir para garantir a constituição, em face de ataques por parte de forças políticas capazes de ameaçá-la exatamente por estarem amparadas em apoio popular. É isso que o Supremo faz ao indicar que uma determinada lei, proposta por um parlamentar eleito e muitas vezes apoiada por inúmeros cidadãos, é inconstitucional, ao violar direitos civis, por exemplo. A corte é uma instituição contra-majoritária, cujos membros possuem mandatos não eletivos e vitalícios, exatamente para não estarem sujeitos a pressões populares. O princípio subjacente é que a opinião pública é volátil e, por vezes, pode se voltar contra direitos de minorias e garantias constitucionais.

O segundo ponto ilustrativo da fala de Nikolas também gira em torno dessa dinâmica majoritária, isto é, da soberania popular, quando ele questiona quem é o povo, isto é, “de quem é o Brasil?”. Isto é feito quando ele afirma que este país não é do STF, nem da esquerda, mas de pessoas de verde e amarelo, dos cidadãos de bem.

Esse é o ponto central do momento em que vivemos, um questionamento acerca da identidade do povo brasileiro, outrora associada aos pobres, aos marginalizados, aos excluídos. Agora ela é disputada pela massa embranquecida que se identifica como classe média, como empreendedora, batalhadora e vitoriosa, não como oprimida pelos patrões, mas como parte do patronato.

Nosso governo fez o seu trabalho

A estrela da manifestação, Jair Bolsonaro, fez uma fala que amarrou os diferentes eixos do discurso da extrema direita brasileira, ao mesmo tempo em que reforçou sua inserção internacional. Subiu ao palanque ao lado de uma bandeira dos Estados Unidos e de um cartaz com uma foto de Donald Trump, de punho em riste, no qual estava escrito: “FIGHT, FIGHT, FIGHT!”. O público gritava: “mito, mito, mito”.

Começou o discurso em tom choroso, falando dos inocentes, primeiro elencando as mulheres, para, em seguida, falar de quem importa: ele mesmo. Se disse perseguido por uma acusação absurda relativa à reunião com embaixadores e por ter subido em um carro de som com Silas Malafaia. Negou qualquer tentativa de golpe, com uma alegação interessante, dizendo que havia se encontrado com um representante do Mossad, a agência de inteligência de Israel, que lhe confirmou que não houve golpe, pois, caso tivesse havido, o Mossad teria sido avisado.

Sabendo que o absurdo sozinho não ganha eleição, a fala reforça os vínculos internacionais da extrema direita, para os quais o Israel é um símbolo, ao mesmo tempo em que acena aos evangélicos que se sentem contemplados pela alusão à terra de Javé.

Questionou a denúncia da PGR e a acusação de golpe com um argumento que demonstra as consequências nocivas da dinâmica de insulamento comunicativo que está na raiz da extrema-direita, cujo relacionamento com seus apoiadores é construído a partir de canais de comunicação diretos, seja pelo WhatsApp, seja através de formadores de opinião voltados à disseminação do discurso produzido pelos líderes. “Se nosso governo fez seu trabalho, por que não fui reeleito? Se o agro estava fechado conosco, se os cristãos estavam fechados conosco, se nós aumentamos o Bolsa-Família, por que perdemos a eleição?”

A resposta, ensejada pelo discurso do presidente, é a mesma que já antecipara na tal reunião com embaixadores, por ele mencionada: fraude nas urnas.

O ataque às instituições eleitorais e ao Supremo são a tônica de seu discurso e isso se mantém consistentemente em todas as manifestações realizadas pela extrema direita até agora. Esses ataques seguem o script internacional, um líder que se afirma o representante do povo em detrimento das mediações que fazem parte do sistema liberal-democrático: a mídia, os Poderes Constituídos, os processos eleitorais, etc. No Brasil, entretanto, esse script ganha referências próprias em virtude da nossa história recente: a ditadura e uma história política marcada pelo envolvimento dos militares, que também se veem como portadores de um interesse nacional não captado pelas estruturas da representação e pelos Poderes constituídos.

O interessante é observar como, em um momento no qual esse envolvimento volta a ser questionado, em que o país volta a demandar a investigação dos crimes cometidos pelos militares, o tema da anistia torna-se a principal bandeira da extrema direita. A mesma anistia que permitiu que estes crimes permanecessem sem punição, mantendo-os seus executores na ativa, reproduzindo um discurso de negação das atrocidades cometidas. Uma anistia que impediu um processo de reflexão e responsabilização, no qual as fronteiras entre democracia e ditadura ficassem nítidas. O bolsonarismo é um produto desta anistia e a tentativa de golpe, em janeiro de 2023, é o seu curso natural. Ou interrompemos este curso, ou ele se completará por meio da implosão destas fronteiras em um futuro próximo.

Esta é uma função que precisa ser desempenhada pelas instituições liberais, em particular, a mídia e o Judiciário, que devem ser palco de um profundo processo de reflexão sobre a ditadura, sobre a censura e outros componentes do autoritarismo, engendrando processos de entendimento sobre a importância das garantias democráticas. O Executivo, todavia, deve desempenhar outra função, como alerta o próprio Bolsonaro, ao afirmar que a defesa da democracia é o único programa do governo. Sua tarefa é ter um programa e produzir um discurso que traduza em ações concretas os ideais de igualdade e liberdade, ameaçados pelo projeto patriarcal e excludente da extrema-direita.


Mayra Goulart é professora do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro*

Categorized in:

Governo Lula,

Last Update: 17/03/2025