“Conhecer nosso próprio corpo nos dá poder. Um poder amigável.”
— Giulia Enders
Para quem tenta acompanhar a política internacional, os tempos se aceleraram muito. Novos atores entram em cena, poderosos saem — muitas vezes sem querer…
A guerra na Ucrânia fica mais clara: são os minérios. O Ocidente [leia-se Estados Unidos da América (EUA) e União Europeia (UE)] nunca quiseram outra coisa: a riqueza alheia, que sempre consideraram deles.
Com a nova administração republicana nos EUA, o verniz foi dispensado, desvelando os verdadeiros interesses em jogo: o subsolo e as alfândegas ucranianas. De fato, Trump e Zelensky negociam petróleo, gás e a infraestrutura portuária do país, avaliados em 500 bilhões de dólares — um fardo ainda mais pesado do que aquele imposto à Alemanha pelo Tratado de Versalhes ao final da Primeira Guerra Mundial, como CartaCapital bem assinalou.
Porém, não nos percamos nessa gigantesca caverna de Ali Babá: o botim mais importante — como sempre — não é branco, mas negro, africano.
Na verdade, resolver a questão ucraniana é instrumental para que os EUA possam avançar sobre o tesouro principal: a República Democrática do Congo (RDC).
O que há na RDC? Diamantes, ouro, terras raras, minérios e… coltan.
Para que serve? Entre outras coisas, ele é essencial para as baterias de carros elétricos.
Qual o maior produtor de carros elétricos no Ocidente? Elon Musk, o atual presidente, de facto, dos EUA.
Quem já fechara “acordos” com a RDC para ter acesso ao coltan? A União Europeia.
Quem anunciou na semana passada que irá buscar o minério da RDC sob o subterfúgio de promover a “paz” no país? Os EUA.
Business as usual.
Por que os EUA não querem a UE na negociação com a Rússia? Porque querem deixar claro o divórcio e não dividir a presa. Eles sabem — como nós, latino-americanos — que a UE conhece mais de rapina, não por ser mais inteligente, mas mais velha. E partilhar o objeto do roubo com quem há mais tempo está no negócio não é prática inteligente.
Coração nas trevas, a obra-prima de Joseph Conrad, não era sobre isso? Não descrevia o horror promovido pelos europeus na exploração das riquezas da RDC no século XIX, que levou à morte, por exaustão e execução, 5 milhões de habitantes? Em maior número ainda não foram os amputados, violentados, aleijados, feridos como animais etc.?
O Solilóquio do Rei Leopoldo, do maior autor estadunidense de todos os tempos, Mark Twain, também não tratava do mesmo tema? O horror promovido pelo rei da Bélgica no Congo, um país que ele considerava sua propriedade pessoal?
Sempre permanecendo no olhar amoroso e reparador ao continente africano, recomendo vivamente a exposição da fotógrafa sul-africana Zanele Muholi, no Instituto Moreira Salles (IMS), em São Paulo.
Muholi é uma fotógrafa preta, lésbica, que retrata a dor de ser homossexual no país onde o apartheid foi lei por quase meio século. Definindo-se como ativista visual, ela documenta também a superação da segregação sexual sob a Constituição sul-africana de 1996 — a primeira do planeta a suprimir constitucionalmente o preconceito baseado em orientações sexuais diversas.
Entretanto, a reação da extrema-direita sul-africana a esse dispositivo legal fez a violência contra a comunidade LGBTQIAPN+ escalar ainda mais, como a artista dolorosamente documenta em sua obra fotográfica.
Parabéns ao IMS, que, além da sensibilidade em promover exposição tão relevante para a tolerância e a democracia, tem banheiros unissex, não se rendendo ao fundamentalismo da extrema-direita no Brasil. Essa extrema-direita, useira e vezeira em explorar o conservadorismo dos costumes, mascara seus fins políticos com discursos moralistas.
Encontrarmo-nos, mulheres e homens, utilizando um mesmo serviço, é uma lição de civilidade insubstituível.
São tantos os preconceitos que ainda precisamos enfrentar que todas as artes — da literatura à arquitetura — são indispensáveis para superá-los. Em O discreto charme do intestino (Editora Sextante), Giulia Enders, que já vendeu mais de 6 milhões de exemplares, traz verdades incontestáveis:
“Passamos a vida inteira em um corpo que mal conhecemos. Até então, muitas vezes eu chegara a sentir vergonha do intestino. Mas isso mudou: a cada informação nova que eu aprendia sobre esse órgão, eu ficava impressionada e até grata… A curiosidade e a compreensão dissolvem a vergonha. Mais do que isso: permitem que tratemos a nós mesmos de forma diferente. De forma mais inteligente, mais bondosa.”
O conhecimento de nós mesmos não se confunde com autoritarismo, pretensão ou autossuficiência. Pelo contrário: só podemos servir ao outro inteiros, não divididos ou partidos, embora carentes sempre estejamos — pois a incompletude é condição humana, suprema graça.
Em O pescador ambicioso e o peixe encantado (Editora Vozes), Leonardo Boff nos lembra uma verdade essencial:
“Um sábio muçulmano do século XIII disse acertadamente: ‘a vida é um equilíbrio entre o apegar-se e o deixar ir’.”
Boff também aborda nossa ambição ao universal sem consciência de nossos limites, inclusive religiosos e filosóficos. Ele relata o diálogo de 12 missionários franciscanos com sábios astecas em 1524, ao qual os indígenas mexicanos reagiram da seguinte forma:
“Só de pecado se fala; eles nos infundiram o medo; vieram para amassar as flores para que somente sua flor florescesse. Arrancaram nossa flor e castraram o sol.”
Talvez menos certezas e mais buscas nos propiciem os maiores e mais amplos horizontes — até quando não temos consciência de que os perseguimos.