Para enfrentar a ofensiva da elite financeira
Setores que tutelam o presidente desde o início apertaram o cerco. Ataque contra o gasto público é ladainha diária nos jornais – com apoio da Fazenda e Planejamento. Resposta pode estar em movimentos pela Saúde e Educação. Mas é preciso rapidez
Na atual conjuntura política, o terceiro governo do presidente está passando por um momento crítico, de pressões e ataques sistemáticos por parte da elite financeira (vulgo a “Faria Lima”) e de seus representantes no Parlamento e na mídia corporativa.
A ladainha é a mesma de sempre: para eles o ajuste fiscal permanente resolverá todos os problemas do país; particularmente é “a” precondição incontornável para que se possa ter maiores taxas de crescimento de forma sustentável.
No entanto, agora, a campanha agressiva da direita neoliberal para que o governo corte gastos escalou, de forma ousada, alguns degraus, algo que já foi tentado, sem sucesso, em vários momentos e governos anteriores.
Exige-se que os benefícios da Previdência (aposentadorias) e Assistência Social (Benefício de Prestação Continuada – BPC) sejam desvinculados do salário-mínimo.
Cobra-se o fim dos pisos mínimos criados pela Constituição de 1988 para proteger os gastos públicos em Saúde (15% da receita líquida da União) e Educação (18% da receita de impostos). Ameaça-se, assim, o financiamento de ambas.
Está-se diante de uma verdadeira blitz da elite financeira e de seus representantes e prepostos contra os interesses da maioria da população.
Embora não seja surpresa, esse comportamento das frações hegemônicas do grande capital e da burguesia brasileira, desconectado do mundo real das classes trabalhadoras e populares, impressiona pela rudeza e estupidez no trato da questão social.
A pandemia da Covid, que colocou de joelhos todos os países do mundo, teve o seu auge há pouco, em 2020.
No Brasil, apesar do comportamento genocida do presidente e de seu governo (que implicou em mais de 700 mil mortes), o SUS (Sistema Único de Saúde) teve um papel fundamental no combate ao vírus, elogiado por todos (exceto os bolsonaristas-neofascistas), inclusive pelos que agora querem cortar os recursos destinados à Saúde.
Um sistema que, apesar de ser subfinanciado, é reconhecido internacionalmente como uma política pública universal de excelência.
O mesmo valeu para o papel das Universidades Públicas Federais no enfrentamento ao vírus, em especial através de sua capacidade de pesquisa, ainda que também subfinanciada, e de produção de equipamentos.
Não é segredo para ninguém de que o terceiro governo do presidente, mais do que os anteriores, está sendo, desde o início, tutelado pelas forças políticas do capital financeiro.
Elas impedem que o programa econômico-social aprovado nas urnas em 2022 seja posto em prática. E os dois instrumentos que possibilitam que isso aconteça são o Banco Central independente (não em relação ao capital financeiro) e o denominado Novo Arcabouço Fiscal (NAF).
E aqui chegamos ao centro do problema: o NAF é incompatível com a manutenção dos pisos constitucionais da Saúde e da Educação.
Com a regra, nele estabelecida, de que o gasto público, a cada ano, só pode crescer 2,5%, mesmo que o crescimento das receitas ultrapasse esse percentual, a tendência é de que, dinamicamente, os gastos com a Saúde e Educação passem a absorver uma parcela cada vez maior do total dos gastos — porque eles sobem tanto quanto as receitas.
Em resumo: ao longo do tempo, as outras despesas correntes (Habitação, Transporte, Ciência e Tecnologia, Meio Ambiente etc.) tenderão a ter um espaço cada vez menor no orçamento geral do governo; podendo, no limite, os gastos com saúde e educação se igualarem ao total das despesas, excluindo todas as demais.
Para o capital financeiro e a direita neoliberal, a solução é acabar com os pisos.
Para a Saúde e a Educação a solução é acabar com o NAF ou, alternativamente, retirá-las dessa camisa de força.
Entre essas duas soluções, não pode haver qualquer compromisso, ou eufemisticamente “flexibilizações”, por um motivo muito simples: em qualquer tipo de acordo que encontre um meio termo, a Saúde e a Educação do povo brasileiro sairão perdendo.
O mais grave nesse processo é que os ministérios da Fazenda e do Planejamento do Governo Lula estão conspirando, sem disfarces, contra os pisos.
E isso em uma situação em que o argumento da existência de uma correlação de forças desfavorável é reiteradamente ressaltado pelo governo Lula e o seu entorno, para justificar um comportamento passivo e acovardado frente às forças políticas do capital.
Não há qualquer iniciativa por parte desse governo de mobilizar as suas bases sociais organizadas, que foram decisivas no enfrentamento à extrema direita neofascista, na defesa da democracia nos quatro anos do governo Bolsonaro e na vitória eleitoral de Lula.
Nada se faz para pressionar e confrontar, nas ruas e nas redes sociais, a maioria reacionária do atual Congresso Nacional, simbolizada e representada na figura do presidente da Câmara de Deputados, Arthur Lira.
No recente episódio, patrocinado por esse oportunista, da aprovação a “toque de caixa” do criminoso e inacreditável “Projeto de Lei do Estupro” (PL-1904), ficou evidente, de forma didática: a única forma de confrontar o chamado “Centrão”, a extrema direita e a direita neoliberal é por meio da mobilização e ação política nas ruas, denunciando-o e afirmando que barbaridades desse tipo, maiores ou menores, não serão aceitas.
A rápida e contundente mobilização social, sobretudo das mulheres, contra esse PL, denunciando que “criança não é mãe e estuprador não é pai”, obrigou o presidente da Câmara a recuar. Colocou na defensiva os deputados que formularam e apoiaram a proposta.
E o mais sintomático, é que só após essa mobilização, Lula e o seu governo saíram de seu silêncio constrangedor para condenar a iniciativa grotesca de obrigar as mulheres e crianças estupradas a carregarem e assumirem os filhos dos criminosos que as violentaram, sob pena de serem condenadas a 20 anos de cadeia.
A mensagem deixada foi clara: correlação de forças desfavorável não é destino, para ser aceita passivamente; muito pelo contrário, há de se agir politicamente para modificá-la.
Estamos em um momento decisivo para o presente e o futuro da Saúde e da Educação dos brasileiros, em particular de sua esmagadora maioria que necessita de serviços públicos de qualidade e em quantidade suficiente, que possam atender a todos.
A luta em defesa dos pisos constitucionais é a luta maior a ser travada na conjuntura presente e imediata, enquanto parte do esforço mais geral de redução das desigualdades estruturais que caracterizam, secularmente, a sociedade brasileira.
Não se pode perder mais tempo, esperando, passiva ou apenas reativamente, o que as forças políticas reacionárias do capital, do Centrão, da direita neoliberal e da extrema direita farão; ou acreditar e confiar na infinita capacidade de negociação de Lula.
A hora exige uma mobilização imediata e permanente, essa urgência não pode ser postergada. A Saúde e a Educação de qualidade são dois pilares fundamentais para redução das desigualdades sociais, cuja importância é facilmente reconhecida pela maioria da população.
Portanto, o objetivo de defesa dos seus pisos constitucionais será facilmente entendido e assumido; mas para isso faz falta um instrumento organizador, coordenador, ágil e mobilizador que tenha por tarefa a constituição de um movimento de massa voltado para esse objetivo.
Existem inúmeras organizações na sociedade civil, dos mais variados tipos, que estão voltadas e mobilizadas, direta ou indiretamente, para questões de todo tipo relacionadas à Saúde e à Educação – mas que estão fragmentadas, isoladas umas das outras.
Também é verdade que existem fóruns nacionais permanentes institucionalizados, que tratam do conjunto das questões relacionadas à Educação e à Saúde, a exemplo da “Frente pela Vida”, que desde a aprovação do NAF em 2023, vem denunciando o risco de desconstitucionalização do piso da saúde, tendo cobrado recentemente do Ministério da Fazenda, sua posição e manifestando sua oposição a qualquer iniciativa do governo nesse sentido.
No entanto, a conjuntura imediata está exigindo a constituição de um instrumento mais ágil. Ele precisa unificar e articular todas as organizações (inclusive os fóruns permanentes já existentes) ligadas à Saúde e Educação públicas; e mobilizá-las especificamente na luta pela manutenção dos pisos, apontando o caminho a ser perseguido no atual momento.
Esta ação tem alto potencial mobilizador, nas ruas e nas redes sociais, e terá, sem a menor dúvida, o apoio da esmagadora maioria da população.
A constituição de um Fórum Nacional, com caráter político mobilizador imediato e focado em torno da defesa e luta pela manutenção dos pisos, é uma proposta que foi aprovada pela última assembleia dos professores em greve da Universidade Federal da Bahia, em 27/6.
A assembleia propôs que seja colocada em discussão para todas as organizações relacionadas à Saúde e à Educação. Não se trata de substituir ou concorrer com as organizações já existentes, mas sim de dar visibilidade à importância dos pisos e de concentrar especificamente ações e esforços em defesa da sua manutenção — ameaçada nessa conjuntura inclusive de dentro do próprio governo Lula.
Mas para isso acontecer, é preciso que algumas entidades tomem a iniciativa. Elas podem iniciar uma campanha nacional, utilizando todos os meios necessários — redes específicas já existentes, redes sociais em geral, mídias antineoliberais e antifascistas, mobilizações coletivas, abaixo-assinados, manifestações de ruas.
Se seguirem o exemplo dos movimentos recentes, como a greve dos trabalhadores da Educação pública federal e a mobilização contra o PL 1904, voltarão a mostrar como é possível enfrentar o poder neoliberal e neofascista.
*Luiz Filgueiras é professor titular da Faculdade de Economia da UFBA.
*Graça Druck é professora titular da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA.
*Este texto não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.