A fabricação da loucura como utopia máxima do neoliberalismo nas cidades

por Marcelo Karloni

Constituindo o “vilão”, punindo a pobreza e o sofrimento psíquico no Brasil

        A luta pela humanização das ações em saúde no Brasil é antiga. Luta essa com instantes importantes, como o movimento da reforma psiquiátrica na década de 1970, que coincidiu com a luta contra o regime civil-militar. A criação da lei Paulo Delgado, em 2001, foi considerada um avanço, pois ajudou a constituir a ideia da proteção dos direitos de brasileiros sob tratamento na área de saúde mental.

Ainda que a lei tenha passado por doze anos de tramitação, sua criação representou um avanço significativo, pois ajudou a situar a responsabilidade do Estado na área, ao mesmo tempo em que impulsionou a migração do tratamento via isolamento para o tratamento com inclusão na família e formação de redes de apoio.

        Porém, há um aspecto que limita o alcance dessa lei, bem como ameaça a sua efetividade. Aspecto esse que não se remedia por decreto, mas por uma mudança cultural no modo como a sociedade brasileira enfrenta a questão. A sociedade moderna – para sustentar-se como tal – necessita da construção de grupos que ocupem o espectro da vilania em suas narrativas. Incapaz de lidar com a ideia de que é essa sociedade marcada pela castração de subjetividades, limitadora de vocações, opressora de corpos, homicida de vidas e destruidora de todo traço de humanização, os grupos estabelecidos precisam de, tempos em tempos, escolher um grupo para assumir o papel de culpa pela barbárie que cria.

        Há na sustentação desse argumento duas perspectivas cruciais. A primeira, segundo o sociólogo Loic Waquant, caminha pari passu com a questão urbana e as periferias das cidades capitalistase a segunda, de acordo com os estudos do psiquiatra norte-americano Thomas Szasz, descortina o papel da psiquiatria institucional na perpetuação da narrativa do vilão.

        Loic Waquant aponta um processo iniciado nos EUA na década de 1980 e que teve entre seus elementos definidores a redução do orçamento do Estado para programas de assistência aos mais pobres. O declínio dos valores de orçamento do governo norte-americano ao longo dos anos oitenta para programas sociais foi acompanhado pelo aumento dos recursos mobilizados para a construção de unidades prisionais como resposta ao problema da insegurança e como cabeça de ponte, no que ficou conhecido como guerra às drogas. Os efeitos imediatos sentidos, sobretudo nas periferias das cidades norte-americanas, foram o aumento das ações de policiamento ostensivo nos espaços habitados por negros e latinos.

        Uma verdadeira campanha de higienização, subsidiada pela mobilização dos recursos do Estado e assegurada pela imprensa,  ajudou a construir uma narrativa em que a pobreza e sua materialização no espaço urbano eram vistas como as grandes vilãs. A tradução de tal empreendimento pode ser resumida como a utopia máxima de uma sociedade que reproduz o ideal burguês-autoritário: não conseguindo eliminar os indesejáveis ocupantes empobrecidos da cidade, opta-se por encarcerá-los sem abrir mão do abono da proteção de seus signos de moralidade ao inscrevê-los como criminosos.

        Criando barreiras legais e institucionais para o acesso aos programas de assistência, o lobby empresarial de construção de presídios privados com ações negociadas em bolsas de valores findará por reduzir os moradores das periferias – em maior parte formado por negros e latinos – à mão de obra em trabalhos precários e de baixa qualificação. Um dos efeitos dessa política será a demarcação dos limites, identificados por meio da descrição de Loic Wacquant, entre pobre merecedor e pobre indolente. Nada mais neoliberal, importa dizer.

        Por outro lado, quando o professor norte-americano de psiquiatria Thomas Szasz afirma que “o comportamento das pessoas que difere do apresentado por seus semelhantes – seja por ficar abaixo dos padrões do grupo, seja por superá-los – constitui um mistério semelhante e uma ameaça; as noções de posse pelo demônio e loucura dão uma teoria primitiva para explicar esses acontecimentos(…)”

        Aqui aparece a primeira dificuldade da sociedade moderna com origens na era da inquisição empreendida pela igreja católica: lidar com o diferente. Segundo Thomas Szasz, durante a Idade Média, a feitiçaria ocupava o lugar de “bode expiatório” na sociedade. Por meio de manuais de caças às bruxas, inquisidores caçavam e eram os sentenciadores autorizados a imputar o que era considerado crime de bruxaria. Nesse sentido, diagnose era o que os inquisidores praticavam.

        As razões para que essas mulheres fossem chamadas de bruxa aparecem em documentos da época: preguiça, desobediência aos pais, insubordinação a maridos e, até mesmo, doenças contraídas por pessoas próximas. Segundo se dizia, o gênero feminino  era preferido pelo diabo por ser suscetível à luxúria. De acordo com esse verdadeiro manual de caça às bruxas, ser homem era garantia de ser intocável pelas tentações do diabo.

        O livro famoso dos dominicanos inquisidores Sprenger e Kramer, chamado MALLEUS MALEFICARUM, afirmava: “toda feitiçaria decorre da luxuria carnal e, nas mulheres, isso é insaciável”. em Bula de 1484. o Papa Inocêncio ordenava explicitamente: “ decretamos e ordenamos que os já mencionados inquisidores tenham o poder para proceder à justa correção, ao encarceramento e ao castigo a quaisquer pessoas(…) a quem sejam nomeados”.

        A lucidez de Thomas Szasz sobre o assunto vem quando este estabelece um paralelo entre essas práticas de inquisição e o modo como os sujeitos acometidos de sofrimento psíquicos têm ocupado exatamente o papel de vilania e anomia nos termos da psiquiatria institucional e manicomial.

        No Brasil, encarcerar e privar de liberdade por meio de uma arquitetura que mascara a violência é a diretiva que guiou por muitos anos os cuidados em saúde mental e que, com o corte de recursos para a área a partir de 2020, tende a se tornar a principal marca da politica de saúde mental.

        Nota publicada pelo portal Sul 21 sobre essa ação demolidora dos direitos em saúde de dezembro de 2020 é esclarecedora.

O governo do presidente Jair Bolsonaro (Sem partido) está preparando um revogaço de 100 portarias sobre saúde mental, o que atingiria diversos programas e serviços do Sistema Único de Saúde (SUS) e ocasionaria um desmonte nas políticas de saúde mental da rede pública do país. As informações foram divulgadas neste domingo (6) pelo jornalista Guilherme Amado, da Revista Época. Segundo fontes consultadas pelo jornalista, as portarias foram editadas entre 1991 a 2014. Dentre os programas que correm risco com o revogação estão o programa anual de reestruturação da assistência psiquiátrica hospitalar no SUS; as equipes de Consultório na Rua; o Serviço Residencial Terapêutico; e a Comissão de Acompanhamento do Programa De Volta para Casa. Ainda, a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas também seria atingida pelo desmonte.” (FONTE: https://sul21.com.br/ultimas-noticiaspolitica/2020/12/governo-bolsonaro-pretende-encerrar-programas-de-saude-mental-no-sus/)

        O desmonte de programas sociais – por meio dos cortes de orçamento – destinados ao socorro dos mais vulneráveis na cidade capitalista e a constituição do “anômico”, do “anormal” e do “doente mental” como vilão é acompanhado de três outros processos, sem os quais ambos não se dariam. 1) A promoção em nível institucional do autoritarismo nas práticas de cuidado em saúde; 2) O estabelecimento de uma cultura de vigilância dos vulneráveis da cidade; e a 3) pressão para a privatização de presídios. Essas são apenas as primeiras pontas da criação de uma cidade que seria a utopia máxima do neoliberalismo, na qual pobres são encarcerados e “doentes” são isolados em edificações saneadoras.

Professor Marcelo Karloni é doutor em Dinâmicas Territoriais do Desenvolvimento e Regionalizações pela UFPE e membro da Rede Brcidades.

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Last Update: 12/03/2025